E SE DE TÃO SALGADO O MAR SE FEZ DOCE?

“E se de tão salgado o mar se fez doce?” é o conto extra do projeto “Eu conto”. Escrito por Gean Paulo Naue para o livro “E se” da Editora Metamorfose. Este arquivo digital foi elaborada pelo autor, valendo a ele todos os direitos autorais. Venâncio Aires / Rio Grande do Sul — Brasil

Corri ao mar por ser ele que me trouxe até aqui, por ser o caminho de volta à minha casa. Enquanto na areia, pés descalços como sempre, deixava para trás o país onde, como forasteiro, estava. Não se dança massemba sozinho, mas comecei a batucar sem instrumento algum.

Fiz areia levantar com os pés, e se tivesse o cabelo de antes aposto que estaria sendo lambido pelo vento atlântico. Era como sair do umbigo do mundo, o buraco mais profundo, para ter a liberdade nos olhos de quem só consegue ver a escuridão e ainda se alegra por, de fato, ver.

Na areia, barulho do meu semba; na praia, o das ondas. “Odóia, odóia, odóia”. Saía de mim, da minha boca que há tempos não falava uma sílaba sequer e agora podia palavrear sem amarras. Foi um balanço de cabeça repentino que me fez parar de dançar.

Vi, de longe, um brilho incomum na beira d’água, onde a espuma do mar borbulhava. Sem dúvida era uma pessoa. Seria mais um, igual a mim, que depois da emboscada na casa grande fugiu rumo à imensa liberdade? Pelo visto, incomum não era o meu pensamento de que quando se é trazido pelo mar, somente ele pode te levar.

Me aproximei devagar do corpo deitado entre a areia e a água salgada. Ao perceber que gemia como quem geme de dor, corri para lá.

Tinha cabelos longos, logo vi, peito descoberto igual ao meu e uma bela cauda de peixe que brilhava com a lua. Não era dourada, tampouco prateada, era brilho branco, a mais simples cor.

Ajoelhei e peguei o ser em meus braços. Seus olhos timidamente abertos me viram e nem se assustaram, me olharam como quem olha no espelho. Me disse: “Calunga?”. E eu, sorrindo, respondi: “Ainda não”. Havia me confundido com aquele que recebe os mortos do fundo do mar. E continuei a dizer: “Deve chamar pela mãe, pois ainda está no mundo daqueles que vivem”. “É a espuma que cura”. “Se é, então está onde deve estar, entre a areia e as ondas do mar”. Depois me perguntou se havia algo doce para lhe pôr na boca. Era o alimento que lhe faltava para recuperar a força.

Achei estranho um ser do mar, salgado desde sempre, se alimentar do oposto. Me disse que estava à procura de algas doces que vivem pelos costados quando se perdeu. Doce não me era problema. Nunca é para quem trabalhou no canavial, para quem processou a cana até virar pó branco.

Farinha doce tão preciosa para os da casa grande deve servir, afinal parecia o açúcar ser mais precioso que o próprio ouro e a própria prata.

Tirei do bolso um pequeno saco de tecido amarrado por uma cordinha. Ali havia açúcar. Era roubado do engenho, sim, mas nem por isso deixava de ser doce. E o que é roubar um pouco de quem já me roubou a dignidade?

Joguei a brancura em minha mão côncava e aproximei dos lábios daquele ser, que o recebeu de olhos fechados, e logo depois cuspiu com tremenda força. “Este doce não é puro, é cheio de sofrimento. Como ousa dar algo tão amaldiçoado para mim?”. Havia açúcar salpicado em sua pele. O restante em minhas mãos deixei a água do mar levar.

Ao me desculpar, me explicou que tudo o que se come, se sente; o doce ofertado lhe causaria mais mal do que bem por ter nascido de pai e mãe sofridos. “Então, só a espuma do mar salgado é o suficiente pra te curar?”, perguntei.

Não me espantava de nada ter em meus braços alguém que no lugar de pernas tem rabo de peixe, só confirmava o que já sabia. Não recebi resposta, apenas novamente o pedido de doce. Mas todo o doce que conhecia já havia oferecido, nada mais restava.

Olhei para as estrelas e para a lua procurando respostas. Deixei a espuma estourar em nossas peles por um tempo e, como um clarão de raio de Iansã, algo me ocorreu. A ideia apareceu como relâmpago, só poderia ser obra de orixá. Pensei e sabia que não pensava sozinho. Se a água do mar é salgada, como são salgadas as minhas lágrimas quando choro, então só há um único lugar que se encontra a doçura. Encostei, sem licença pedir, meus lábios nos seus, e entreguei o meu mais doce beijo.

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