MORTE NA BIBLIOTECA PÚBLICA

“Morte na biblioteca pública” é o conto seis, do mês de junho de 2019.
Escrito por Gean Paulo Naue para o projeto “EU CONTO: um conto por mês durante um ano”. Esta publicação foi elaborada pelo autor, valendo a ele todos os direitos autorais. O texto foi revisado por Leonardo Brockmann, criador da editora Casa das Letras.
Venâncio Aires / Rio Grande do Sul — Brasil

As dúvidas em um assassinato existem só em alguns aspectos: quem morreu, quem matou, como morreu, a que horas matou? Mas duvidar se houve o crime é incabível. Ou foi assassinato ou não foi assassinato. Meio termo, aqui, não há.

A bibliotecária sabia muito bem disso, em todos os livros com a temática “assassinos” sempre houve quem morresse e quem matasse. Não havia outra forma.

A criatividade dos autores, em seus livros de assassinatos, é imensa. A bibliotecária sabia muito bem disso, também.

Essa bobagem de assassinatos que lhe invadiu a cabeça, assim que atravessou a Rua Assis Brasil, não fazia sentido naquele dia de verão. Havia motivos suficientes para dispensar qualquer carona e ir caminhando da sua casa até o trabalho.

Era um percurso de sete quadras. Quando faltava apenas uma, em frente ao Hotel Schmidt, cruzou com um dos frequentadores da biblioteca. Sabia que ele retirava livros periodicamente e era decidido nas suas escolhas. Nunca pediu recomendações. Fugia dos best-sellers norte-americanos e das obras literárias de autoajuda e espiritismo.

Parecia nervoso. Sorriu de lá pra cá, muito rápido. Olho no olho não tinha. A bibliotecária, depois do “bom dia” comum, perguntou se ele vinha da biblioteca. Ele disse que não, mesmo parecendo que sim.

O garoto estava inquieto a ponto de não querer parar para conversar. Não eram amigos, de fato, mas a biblioteca pública tem dessas coisas, você começa a frequentá-la e se tornar próximo de quem também a frequenta.

Deixou de estranhar o nervosismo do garoto, quando ele confessou: “Perdi o livro que retirei mês passado, por isso não tenho ido à biblioteca”.

A bibliotecária entendeu que a pressa era, na verdade, vergonha. Perguntou o título do exemplar perdido: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ela sabia que as pessoas que deixam atrasar seus livros por muito tempo, gerando multas monstruosas, ou pessoas que acabam perdendo e extraviado o exemplar emprestado, se sentem tão culpadas e envergonhadas a ponto de esconderem o fato delas mesmas. É nesse momento que a pessoa passa de uma simples devedora para uma criminosa.

Com a intenção de tranquilizar o jovem, a bibliotecária disse que não cobraria a multa que estava a correr dias e dias caso ele trouxesse um novo exemplar do romance de Machado de Assis, o mais rápido possível.

E ao dizer isso, sentiu que havia tirado um peso das costas do rapaz, que aquietou seus pés e mãos como se tivesse sido absolvido pelo júri.

Agradecido, ele seguiu seu caminho.

A bibliotecária, logo adiante, entrou na biblioteca. Não sentiu, como sempre sentia, o cheiro da salada de papéis.

Os acontecimentos noturnos de uma biblioteca são diferentes dos diurnos. A noite, os livros se juntam para contar uns aos outros as suas histórias. Os papéis mais novos abraçam os mais velhos. E de manhã, assim que a porta é aberta, o que se sente é o cheiro de todo esse alvoroço feito pelos livros.

Parece que na noite passada não houve conversa. Logo eles, que gostam tanto de deixar sua marca, resolveram calar-se. “Estranho”. O aroma também não era o mesmo de quando desligou as luzes, no dia anterior. Cheirava metálico.

Fechou a porta, mas só colocaria a placa de “aberto” quando tivesse ligado os computadores e as luzes.

Foi até sua sala, largou a bolsa em cima da mesa e iniciou. Liga aqui, liga ali, liga lá, liga cá.

Ouviu um barulho por entre as prateleiras do fundo da biblioteca. Com a obviedade de estar sozinha, perguntou, em voz alta, “tem alguém aí?”.

Silêncio.

Caminhou em direção ao barulho. Foi uma queda, sem dúvida. Poderia ser um animal da rua que deu um jeito de entrar. Um animal em uma biblioteca é perigoso. Os livros são capazes de fritar um cérebro e explodir um coração, mas se tem uma coisa que eles não sabem fazer é se defender. A menor das traças sempre irá vencer a batalha contra as páginas de um livro, mas só porque elas, as traças, não sabem ler.

Mal se aproximou da origem do barulho e já viu que algo estava errado. No chão escorria, feito lava, o vermelho.

“Sangue”, pensou a bibliotecária. Um dos mais presentes elementos em livros de assassinatos. Refletiu, rapidamente, se haveria um único livro na sala que não contivesse a palavra “sangue” em seu interior. Para ser vivo, precisa-se de sangue. Sendo assim, todos os exemplares haveriam de tê-lo.

Sangue presente. Restava o assassino e o assassinato para que a história fosse completa.

Quem sangrava ali adiante? Se pudesse arrancar do pescoço a cabeça e ter ela em suas mãos, esticar o máximo que pudesse os braços só para espiar… Mas não, tinha que encarar de corpo montado.

Se fosse para ser personagem de um livro de assassinato, assumiria essa responsabilidade, mesmo nunca tendo gostado do gênero. Gostava mesmo era dos contos de fadas.

Quanto mais se aproximava, mais sangue. Muito sangue. Respingado na parede e manchando alguns livros.

Lá estava ele. Atirado no chão. Aberto de cima a baixo. Não se lia nada. Dali que saia o todo esse líquido quente. Chegou ainda mais perto na intenção de identificá-lo, nem se preocupou com algum assassino à espreita.

Cutucou com o pé, sujou o sapato roxo de vermelho, e ao saber quem era, correu até o computador, buscou, encontrou e ligou. Quando atenderam, nem se apresentou, só disse, “encontrei o seu livro perdido, está aqui, na biblioteca!”.

Por detrás do conto

Já parou para pensar quantos assassinos existem em uma biblioteca? E quantos mortos? Tanto na literatura, quanto em uma simples roda de conversa o fim da vida é um assunto amplamente explorado. É que o ser humano adora falar sobre o que não sabe. Morte na biblioteca pública marca o meio do projeto “Eu Conto”. A pergunta a ser respondida aqui não é quem morreu, mas sim, alguém morreu? Existe a possibilidade de um assassinato sem que haja um assassino? Tradicionalmente não, mas a literatura não costuma seguir o óbvio. As bibliotecas desse mundo todo não guardam apenas livros, elas guardam, também, mistérios. Cabe aos leitores desvendarem eles.

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