PONTE SECA

“Ponte Seca” é o conto três, do mês de março de 2019.
Escrito por Gean Paulo Naue para o projeto “EU CONTO: um conto por mês durante um ano”. Esta publicação foi elaborada pelo autor, valendo a ele todos os direitos autorais. O texto foi revisado por Leonardo Brockmann, criador da editora Casa das Letras.
Venâncio Aires / Rio Grande do Sul — Brasil

Ao chegar, pela manhã, apertei o botão para iniciar o computador. Sendo um modelo ultrapassado e superlotado de arquivos que insisto em não apagar, a máquina demoraria cerca de cinco minutos para estar com suas faculdades processuais em condições dignas de uso. Enquanto isso, fui até a cozinha pegar um café, cruzei com Cris, também jornalista. Conversamos sobre as pautas da próxima edição. Ele com a reportagem de capa, mais um roubo de carga de tabaco. Eu, a festa das orquídeas, página seis, dentre outras matérias que, segundo o editor, “necessitam de uma sensibilidade maior”.

Cinco cliques no mouse e o programa para redigir o texto, os sites de notícia que sempre costumo acessar e o e-mail estavam abertos. Na caixa de entrada um recebido às duas horas e quarenta da manhã. Péssimo horário para se enviar uma mensagem, “só pode ser vírus”. O assunto dizendo: “Importante que leia, por favor. Obrigada”. Soava como uma típica chamada tentadora, “clique aqui”, de vírus.

Jorge já havia explicado para todos do jornal sobre as infecções cibernéticas, como elas podem estragar as máquinas e serem responsáveis por vazamento de informações. Vírus, disse ele certa vez, estão na moda em 2001.

Horário de recebimento atípico, remetente duvidoso, assunto apelativo, tudo parecia compactuar com um filhote de hacker. “E se não for? Só abrindo-o para descobrir”. Dedo indicador posicionado no botão e cliquei em cima da palavra “obrigada” com a mãozinha virtual. Abri!

O computador não desligou de imediato, como Jorge avisou que geralmente acontece quando a máquina é invadida, e nenhum sinal do anti-vírus, ao invés disso:

Olá J!

Acompanho suas reportagens, mas não posso me identificar, pois preciso continuar pagando meu aluguel, garantindo uma casa para minha mãe morar.

Estou desde às dez da noite redigindo este e-mail na casa de uma amiga, ela me deixou dormir aqui e usar o seu computador, desculpa se demorei para enviá-lo. O processo foi longo. Primeiro, tive que aceitar a decisão de te escrever, depois tive que te escrever, e isso me custou muito tempo, porque queria usar as palavras certas. Depois da mensagem pronta, demorei mais uma hora ponderando se, de fato, enviaria ou não. Minha amiga já adormeceu faz três horas.

Escrevo por estar sem saída e vejo em você uma. Mas, não se preocupe, minhas expectativas são baixas. Trabalho na maior empresa da cidade. Como jornalista, você sabe de quem eu estou falando.

Meu chefe, como jornalista você sabe de quem estou falando, está acabando comigo. Não consigo nem escrever o nome dele.

Ele não é alguém que cruzou comigo na rua, que eu nunca mais vou ver, que eu possa delatar de imediato, eu dependo dele. É o meu chefe! E chefe de muitas outras funcionárias, também.

É o chefe de todos.

Fico pensando nas consequências de denunciá-lo. Eu não posso fazer isso, talvez você possa, por mim, por nós. Ele não é o seu chefe, é o meu.

Trabalho aqui há dois anos. Entrei por indicação de uma amiga. Os boatos eram que a secretária anterior engravidou e ele a demitiu. Creio que ela engravidou porque sabia que só assim seria demitida. Andei pensando em engravidar, inclusive, mas preciso do emprego. É o aluguel e minha mãe.

Na entrevista de contratação, me saí bem.

Nos primeiros dias ele elogiava minhas roupas. Eu achava que estava agradando, até me motivava a ir bem arrumada. Os elogios eram diários. Todo-o-santo-dia! Eu já nem tinha mais palavras para agradecê-lo.

Uma manhã fui desarrumada. Me elogiou da mesma forma. Depois, ele passou e encostar em mim. Colocava a mão no meu ombro, parecia ser um conselho, mas era angústia.

Elogios diários, toques no meu braço e no meu cabelo, nas pernas e no rosto. Até massagem eu ganhava, nos ombros. Como doía, queria quebrar meus ossos. Antes trabalhar com esses desconfortos do que estar desempregada.

Eu sei. A minha dependência econômica deixou a situação avançar e ele começou a me perguntar: “Qual sua posição preferida?”. Eu não respondia.

Depois dessas conversas começaram os convites. Aí eu já estava a um ano na empresa e comecei a me sentir terrível. Sempre neguei os chamados. Mas você sabe, em uma relação de poder o “não” gera consequências diretas quando se é a subordinada.

Ele não deixou que eu tirasse minhas férias no inverno, como eu tinha planejado. Disse que eu iria tirá-las no mesmo período que ele, para que pudéssemos viajar juntos e se fosse rejeitar, mais uma vez, eu iria conseguir tirar férias só no último dia do vencimento, dali mais um bom tempo. Eu disse “não”.

Um, dia em que falei “não” outra vez, ele me confessou que só consegui o emprego porque: “você é gostosa”. Então, comecei a me vestir feito um homem. Quanto mais roupa colocava, mais protegida me sentia. Como se fosse um guerrilheiro trajando sua armadura para enfrentar o inimigo.

Quando, há alguns meses, já estava insuportável ir ao trabalho eu pedi ajuda a alguns colegas, expliquei o que estava acontecendo. Ninguém quis ficar ao meu lado, nem as meninas. Uma delas me disse: “Você caiu nas graças do chefão, aproveita!”.

Isso quando não duvidavam de mim, como se eu tivesse motivos para inventar algo tão…

Sem querer, outra noite, assistindo televisão e estava passando um filme que mostrava a relação do dono da casa grande com o escravo. O dono falava umas coisas muito semelhantes às que eu tenho que escutar do meu chefe e aí entendi que isso é tão antigo quanto o próprio trabalho.

Até acho que hoje a coisa anda pior. Com os escravos o assédio era tão explícito que era fácil de encontrar o perverso. Hoje não. Hoje, é tudo por debaixo da ponte.

Semana passada foi terrível.

O meu chefe sairia de viagem e só voltaria em sete dias. Mas, antes de embarcar ele me chamou. Eu fui tremendo, como sempre. Estava irritado e disse bem assim: “Se você não deixar eu te comer quando eu voltar, eu vou te demitir”.

Ele volta depois de amanhã e eu preciso pagar o aluguel.

Só parei de ler, porque já não tinha mais texto. Da tela do computador saia uma fumaça escura e densa diretamente em meu rosto, por isso estava com as duas mãos tapando a boca e o nariz. Mas a fumaça dava um jeito, entrava pelos olhos e já estava intoxicando o meu organismo.

Cortaram-me as pálpebras para sempre ver o e-mail. O meu estômago virou uma sacola plástica de supermercado em dia de chuva, entupindo o bueiro.

Um homem poderoso e premiado. Sorriso largo e amarelado, olhos serenos e diabólicos, cabelos de palha na qual as galinhas ciscam e cagam e pele ácida, com textura de casca de limão. Sem filhos e com uma esposa marionete. Eu sabia quem era o dono da maior empresa da cidade.

“O que fazer com isso?”. Mandei o e-mail para a impressora e enquanto caminhava até lá vi meus dedos, das mãos, caírem. Um por um. Os deixei espalhados pelo chão da redação porque tinha assuntos mais importantes a ser resolvido.

Ignorei o editor-chefe e nem bati na porta da sala do diretor. “Recebi isso” e larguei as folhas em sua mesa.

No silêncio da leitura pensei no primeiro passo a ser dado enquanto dava os meus próprios dentro da sala. Até ele perguntar, e os meus pés pararam:

– Não, ninguém mais viu. — respondi com vontade de roer as unhas, porém nem as tinha mais ali — Por ser o que é, resolvi vir antes aqui. Preciso de uma opinião sua de como vamos fazer para apurar as informações e denunciá-lo sem cometer erros.

– Não vamos denunciar ninguém — respondeu abandonando as folhas na mesa. — Você sabe quantas pessoas dependem desse homem para sobreviver? Um escândalo desses representaria uma crise à empresa. Representaria setecentas famílias sem emprego, inclusive essa moça. É quase 1% da população da cidade. Não vamos apurar nada!

Respirei fundo e no momento em que iria expirar todo aquele ar, as paredes do meu nariz colaram-se umas nas outras. Em seguida, meus lábios derreteram e se fundiram tão rapidamente que não consegui usar a língua para fazer uma fenda. Meu peito estufado, carregado de ar aprisionado. Sabia que não iria demorar muito para minhas células reclamarem da falta de oxigenação.

– Ele é um dos maiores anunciantes desse veículo de comunicação, por sinal — Meu chefe se transfigurou na minha frente, virou o clarão do fim do mundo — paga, até mesmo, o seu salário. Se fossemos contra, não receberíamos esse rendimento mensal. E sem este dinheiro você e mais alguns de seus colegas de trabalho teriam que ser demitidos.

A pele que cobria todo o meu corpo foi ao chão feito roupa suja a ser lavada assim que ele levantou da sua cadeira, por detrás da mesa, colocou uma mão em cada ombro meu que estava em carne viva, afundou seus olhos de pregos nos meus e disse:

– Vamos esquecer! Volte ao seu computador e apague este e-mail. Vou, logo mais, até lá conferir se você fez isso. Ninguém precisa ficar sabendo. — Voltou a mesa, rasgou os papéis como se fossem rascunhos matemáticos de contas que deram erradas.

Depois, ele mesmo me pegou e me jogou no lixo debaixo de sua mesa, dizendo que não autorizava a investigação, nem a publicação. Era sua decisão final.

– Isso é um trote e se não for é caso de polícia, não cabe a nós levantar essa poeira. Pode ir! — Me tirou boca, nariz, olhos, menos os ouvidos e o cérebro, porque ouvia tudo o que dizia e entendia bem.

Os pensamentos me abandonaram. A coragem deixou de habitar em mim, nem o medo ousou ficar. Nada! Sem folhas nem raiz, só o tronco. Oco. Nem chamas para arder e por um fim nisso, nem insetos para me comerem viva.

Nem mais sabia o significado da palavra “ir”. Ir para onde?

De volta ao meu computador, fiz uma cópia do e-mail e enviei. Apaguei todos os sinais de que um dia ele esteve ali. E ao escutar a porta da redação se abrir, voltei às orquídeas.

Por detrás do conto

Depois que a gente começa a escrever e que as pessoas se identificam com os textos, as coisas acontecem de uma forma que autor nenhum consegue controlar.
Logo após ter publicado o segundo conto um e-mail surgiu na minha caixa de entrada, a qual deixo livre para os leitores expressarem-se. Além de me entregar palavras motivadoras com a intenção de me fortalecer nessa minha caminhada pela escrita, a pessoa, autora da mensagem (que não se identificou e parece ter feito um endereço eletrônico específico para me escrever), me contou a história que me inspirou a escrever este conto.
Eu li com olhos, coração e com outras coisas além. Um relato extenso de um acontecimento antigo, do começo dos anos 2000, que permanece atual. Que permanece no estômago de quem o viveu.
Depois respondi, precisava de mais informações, precisava do “e-mail original”. O recebi. Não o transcrevi, o re-inventei.
Como criador eu me sinto livre para dar ao conto a forma que eu considero justa tanto com a confissão recebida quanto com os leitores que reservam um espaço do seu tempo para a leitura.
Este conto não estava nos meus planos, não era para ser o terceiro da fila, mas se tornou real e por isso urgente.

Escreva para quem te escreve: geanpaulonaue@gmail.com

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