8 poemas para gostar de Drummond

Amanda Mazzei
Eu Lírica
Published in
5 min readMar 1, 2017

Ironia, cotidiano, metalinguagem. Pormenores. Trivialidades. E coisas grandes também, como amor e guerra, existência, vida e morte. Drummond resgata a complexidade do que aparenta não ter qualquer relevância no curso do tempo, quando em verdade é parte crucial para tecê-lo. Sua obra apresenta um mar de sentimentos acomodados em versos. E, costurando toda a genialidade, o estilo inconfundível garante que não banalmente seja considerado por muitos o maior poeta brasileiro.

Ele nasceu em Itabira, cidade mineira. Fruto de Andrades e Drummond’s, famílias tradicionais, passou sua infância na fazenda. Foi expulso do colégio em Nova Friburgo por insubordinação mental. Cursou Farmácia, o que não foi de todo inútil para sua carreira literária, já que eventualmente cita um composto ou outro em seus poemas.

Não só de poesia viveu Carlos: era contista, ensaísta, jornalista, cronista e tradutor (além de clássicos literários, traduziu algumas músicas dos Beatles). Também foi funcionário público: chefe de gabinete do Ministro da Educação durante o Estado Novo.

Apesar de jamais ter ocupado uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, uma vez que não apreciava o tal título da imortalidade e nunca candidatou-se, não lhe faltaram homenagens. No governo Sarney, Carlos estampou a nota de 50 cruzados novos. Ele também foi samba-enredo da Mangueira, no carnaval de 87. Martinho da Vila inspirou diversas canções no livro “A Rosa do Povo”, semelhante a Chico Buarque, com a canção Flor da Idade, que faz referência ao poema “Quadrilha”. Drummond foi o homenageado da Flip em 2012 e sua estátua na praia de Copacabana tem os (tão característicos) óculos roubados ocasionalmente.

A seleção de 8 poemas contempla algumas das mais diversas temáticas de Carlos Drummond de Andrade, apresentando-o assim ao novo leitor.

1.AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

2.CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

3.BALADA DO AMOR ATRAVÉS DAS IDADES

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais
Eu era grego, você troiana,
troiana, mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal…
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira…
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
Boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
Eu, herói da Paramount,te abraço, beijo e casamos.

4.ANEDOTA BÚLGARA

Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.

5. O ENTERRADO VIVO

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

6. INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu… Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro… que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

7. OCEANIA

Amo burra, burramente
certa menina enfezada
para lá dos mares do sul.
Ela vem por sobre as ondas
enfeitiçar minha vida,
atrapalhar minha mesa,
dizer que espere … esperarei.

Garota das ilhas Fidji,
ela canta a cantiga morna
do pescador que foi pescado
por um grande peixe vermelho,
ela sobe no coqueiro,
ela sacode o coco
na minha cabeça,
essa menina enjoada …

Ora, eu amo essa menina
que vem dentro de um romance,
áspera, nítida, úmida,
brincar no meu pensamento,
espantar esse mosquito
que pousou no meu papel,
acender esse foguinho
através da Oceania.

E eu lhe pergunto: Filhinha,
para lá da Oceania
decerto que há outras meninas
e outros coqueiros, decerto!
Por que você não me conta?
Eu queria tanto saber.

Ela diz que fique quieto,
que depois da Oceania
o mundo acaba … e que a praia
é só areia e silêncio.
O mundo acabou para nós!
Quebra coco, menina,
dança bem espalhada, menina,
canta bem machucado, menina,
com tua voz de Oceania.

8. CASAMENTO DO CÉU E DO INFERNO

No azul do céu de metileno
a lua irônica
diurética
é uma gravura de sala de jantar.

Anjos da guarda em expedição noturna
velam sonos púberes
espantando mosquitos
de cortinados e grinaldas.

Pela escada em espiral
diz-que tem virgens tresmalhadas,
incorporando à via-láctea,
vaga-lumeando…

Por uma frincha
o diabo espreita com o olho torto.

Diabo tem uma luneta
que varre léguas de sete léguas
e tem o ouvido fino
que nem violino.

São Pedro dorme
e o relógio do céu ronca mecânico.

Diabo espreita por uma frincha.
Lá embaixo
suspiram bocas machucadas.
Suspiram rezas? Suspiram manso,
de amor.

E os corpos enrolados
ficam mais enrolados ainda
e a carne penetra na carne.

Que a vontade de Deus se cumpra!
Tirante Laura e talvez Beatriz,
o resto vai para o inferno.

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