Capítulo 01

Sunça
Eu Mato Fuscas
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15 min readJul 31, 2020

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Tel abriu os olhos. Não se recordava da noite anterior e não tinha ideia de onde estava. Olhou em volta e ficou feliz, era em um lugar familiar. Sua casa, para ser mais específico, estava no sofá da sala. Ponto! Olhou para a mesa de centro e lá estava seu celular ao lado de sua carteira, mais dois pontos! Com o placar de três a zero e se sentindo bem sobre aquela manhã tentou levantar, e falhou. Tudo doía. A única explicação plausível para a forma como se sentia, era ter sido atropelado na noite anterior. Olhou para seu corpo, não havia sangue em suas roupas e aparentemente nenhum de seus ossos estava quebrado. Então não desistiu. Resolveu ser mais cuidadoso, agora tinha uma noção melhor do seu estado deplorável. Devagar sentou e tentou ficar de pé, falhou miseravelmente e bateu de testa no chão. Menos um ponto. Ao seu lado estava Salsicha, seu cachorro, em um sono extremamente pesado. O animal sequer notou o barulho e a vibração da pancada de seu dono a centímetros de distância de seu focinho. Sem se levantar, Tel pegou seu telefone para olhar as horas, estava sem bateria e não era o seu celular. Perdeu mais um ponto. Começou a se sentir mal, a manhã tinha começado bem. Porque a repentina virada no placar?

Se esforçou para lembrar seus compromissos, mas não sabia em que dia estava. Juntou todas as suas forças, ficou de pé e procurou um calendário. Encontrou, e como não estava marcado, não lhe ajudou em nada. Deu de ombros e partiu em direção a cozinha na esperança de comer algo. Depois de desperdiçar trinta minutos na inútil tentativa de abrir um pote de azeitonas, a única coisa comestível em sua casa, resolveu tomar um banho. Caminhando pela sala, na ponta dos pés e saltando entre alguns entulhos e garrafas vazias, pisou em seu master tazo, o qual ele carinhosamente pega e parte para o lavabo.

No banho, assim como na vida, os seres pensantes mantém um de seus comportamentos mais comuns e cotidianos, sua busca implacável e ininterrupta pelo sucesso. Ser bem sucedido é de crucial importância, e aquela manhã não estava ajudando. O chuveiro sabe disso. Durante um agradável e demorado banho o humano comum se preocupa com os problemas do dia (causados pela busca incessante do sucesso) e com as contas a pagar. Ironicamente esse tipo de banho longo e relaxante é um extremo agravante no valor das contas a pagar. Tel utiliza sua concentração e habilidade máxima para atingir a temperatura ideal da água. Gira milimetricamente as torneiras de um lado para o outro. Visto de longe, até parece um habilidoso ladrão de cofres na inútil tentativa de encontrar a sintonia perfeita entre a torneira da água quente e a torneira da água fria. Etapa que normalmente consome a maior parte do tempo destinado ao banho, e quase sempre, culmina em uma grande e humilhante derrota. Celebrada com gritos histéricos e agonizantes quando atingido pela água gélida ou gritos de dor e tortura quando atingido pela água tórrida. Nesse momento o “ladrão de cofres” agonizava em completa histeria.

Esse rito é um esforço do chuveiro para mostrar a seu usuário como a busca demasiada pelo sucesso, leva apenas a infelicidade e a frustração. Busca também informar Tel, de que ele deveria estar em outro lugar. É triste que a preocupação do chuveiro seja entendida como uma falha mecânica. Os chuveiros sabem das coisas. Naquele momento o rapaz brigava com as torneiras que teimavam em não deixar a água em uma temperatura agradável. Estava nervoso, definitivamente o jogo virou e já perdeu mais pontos do que podia contar. Decidiu gentilmente consertar seu chuveiro a pancadas, e depois de uns dois ou três tapas bem dados, parou e pensou. Pegou seu master tazo e correu desesperado. Ao passar por seu quarto bagunçado e fedido, coloca a primeira roupa que vê e sai de casa. Passando pela sala acordou Salsicha e partiram juntos.

Era uma bonita e agradável manhã. Uma senhora aposentada se deleitava com um saboroso café com leite acompanhado de um grande e apetitoso pão de queijo. Era uma padaria tradicional. Em uma confortável mesa na calçada de uma esquina da zona sul de Belo Horizonte. A senhora satisfeita aprecia seu desjejum. Ela está certa de que aquele seria um bom dia e a semana prometia bons acontecimentos. O que ela não esperava, era ter sua mesa derrubada por um jovem, em roupas amassadas e mal colocadas, correndo desesperado. Também não esperava ser derrubada, assim que fica de pé por um vira-lata caramelo que segue o rapaz. Esparramada no chão em uma poça de seu delicioso café com leite e sangue, ela conclui que definitivamente aquele não seria um bom dia e que a semana tinha começado de mal a pior.

Tel corria apressado, estava muito atrasado. Acordou tarde naquela segunda-feira, perdeu muito tempo com as azeitonas e com o chuveiro. Para completar, seu carro se recusou a ligar naquela manhã. Depois de uns quarenta minutos na tentativa frustrada de fazer o veículo funcionar, ele percebeu que o tanque do carro se encontrava vazio. Ao derrubar a mesa da senhora, tropeçou e bateu de testa em uma placa de trânsito. Ele se levanta e cogita pedir desculpas para a idosa e pagar por um novo desjejum. Mas vê seu ônibus encostar no ponto logo a frente. Sem pensar duas vezes chega a conclusão que seus problemas são mais importantes do que os dela e sai em disparada na direção do coletivo. Não chega a tempo. Resolve recorrer a um aplicativo de transporte, saca seu aparelho celular e constata mais uma vez que aquele não é seu telefone. Prestes a ter um faniquito sem muitas opções do que fazer e com Salsicha urinando em seu pé, avista um táxi. Ele faz sinal e o carro para. O rapaz e o cachorro pulam no banco de trás. O motorista não fica nem um pouco feliz e cobra uma taxa extra no final da corrida. Quer dinheiro para lavar o veículo, e uma gorjeta por ter aturado o cheiro do canino. Tel reclama que as janelas do táxi não abrem, ele não têm ar condicionado e segundo suas contas passou próximo da morte umas duas ou três vezes. Isso tudo regido por uma questionável música em um volume ensurdecedor. O taxista pega a nota de cinquenta reais da mão do jovem e bota os dois para fora. O carro sai cantando pneus como em um racha entre playboys. Sua mão esquerda faz um gesto obsceno e sua boca envelopada por um terrível bigode prolifera palavras tão obscenas, que são desconhecidas da maioria da população.

O jovem publicitário e o vira lata caramelo correndo adentram a emissora de rádio onde trabalha e se jogam pelos corredores. Acelerados se movem como em um labirinto. Desviam das pessoas que jogam conversa fora de pé nos corredores, as pessoas que tomam café (também de pé nos corredores) e os colegas que utilizam o celular (Mais uma vez de pé nos corredores.) Enfim chegam em sua área de trabalho. Uma pequena sala com as paredes repletas de posters, recortes e desenhos. Assim que ele senta em sua cadeira e liga o computador, sua chefe abre a porta.

- Onde cê tava? — Pergunta cismada.

- Passei a manhã na sala de reuniões. — Responde na maior cara de pau.

- Reunião? Sobre o que? — Desconfia a chefe.

- Cê sabe! Sobre o que a gente faz, como faz e sobre mudanças estruturais que nunca acontecem… A famosa reunião semanal onde nada de novo e importante acontece. Teve bolo de cenoura!

- Entendi. — A chefe pensa em questionar o porquê de não ter sido convidada para o encontro. É a melhor parte de seu dia, gritar com os subordinados, cobrar resultados é o que faz a vida valer a pena. Mas algo na poltrona atrás de Tel a faz esquecer completamente do assunto. — E esse cachorro na sua sala?

- É pra gravar. — Pensa rápido o jovem. — Preciso de um efeito sonoro de cachorro. Lambendo, fungando, latindo… Essas coisas! — Enrola descaradamente.

- Não pode usar o banco de efeitos?

- Poder, podia. Mas assim é mais personalizado. O Salsicha me entende, posso dirigi-lo. — Diz o rapaz e dessa vez, não convence nem a si mesmo.

- Tendi. — Constata a chefe, tudo o que ela queria era um dia de trabalho comum. Fumar, almoçar e ofender algumas pessoas. Se arrependeu de abrir aquela porta, isso só estava atrapalhando seus planos. — Mais uma coisa…

- Já sei, vai cobrar a peça do festival… — Tel interrompe a chefe, que olha para ele com cara de desprezo.

- Não. Queria saber porque cê tá de pijama? — Nitidamente ela já perdeu as esperanças e têm certeza que a cada minuto seu dia adentra mais a fundo para o brejo.

- Uma pessoa criativa tem que fica à vontade, as ideias fluem melhor. Acho que hoje é a segunda-feira do pijama. — Agora o jovem tinha certeza que sua demissão estava próxima.

- Tendi. Cuidado com o setor de RH. Eles podem te suspender sob suspeita de insanidade.

- Podexa. — Tel Respira aliviado.

- No seu pijama é a Graúna do Henfil?

- Sim.

- Gostei. — Ela suspira — Cê pode enviar a peça do festival? — Pergunta confiante de que seu dia pode melhorar.

- Agora não, te envio hoje ainda. Talvez amanhã… Tá na minha hora de almoço. — Diz olhando para seu relógio de pulso fictício.

- Tá bem. Têm pressa não. — A patroa fecha a porta. E volta para seu escritório feliz de não fazer mais parte daquela conversa.

Tel pega sua carteira, o celular misterioso, chama Salsicha e sai para fazer seu merecido horário de almoço. No corredor encontra Orelha um amigo e colega de trabalho. Eles se comprimentam e, como de costume, partem para almoçar juntos.

Se conhecem desde o dia em que Tel foi contratado. O novato da empresa estava com um pequeno problema que gerou um transtorno para o setor jurídico. O recém chegado havia perdido sua carteira de identidade e apresentava como documento sua carteira de motorista que tinha o pequeno problema de estar vencida há cinco anos. O advogado tentou explicar gentilmente que o fato do publicitário estar dirigindo esse tempo todo não tornava a habilitação válida. Ambos concordaram em discordar agressivamente. Como se tornaram grandes amigos é um mistério para a maioria de seus colegas de trabalho. Eram irmãos por opção como gostavam de classificar. Além de almoçar juntos todos os dias, eram parceiros de balada nos finais de semana.

Caminhando pela rua em direção ao restaurante, no qual faziam suas longas e demoradas refeições, Tel compartilhou com o amigo os acontecimentos daquela manhã. Ficou feliz ao saber que estavam juntos no dia anterior e até lembrou de quando iniciaram a maratona etílica no buteco onde passavam a maior parte de seu tempo. Orelha também não lembrava da noite anterior, mas juntos foram capazes de resgatar parte do dia. Começaram com pingas e cervejas artesanais no bar, em determinado momento estavam em um churrasco com chopes e mojitos, teve algo envolvendo uma partida de futebol do Galo e por fim recordaram de um balde de vodka em uma boate. Ah! Lembravam também de um Fusca! Ambos detinham em suas memórias, a imagem nítida de um Fusca vermelho no meio da madrugada. E estavam certos de que ele falava portunhol. É uma pena que o álcool tenha apagado de suas memórias a conversa.

- Teve a vaca!

- Que cê tá falano, Tel?

- Acho que nos envolvemos em algum acidente com uma vaca.

- Oia, não entendo sua paranoia com vacas.

- Que culpa tenho se elas me perseguem?

- Tem base?! — O advogado diz rindo alto — Cê tem que tratar sua bovinofobia.

- Eu não tenho medo de vacas. Elas que cisma comigo.

- Procura ajuda vei!

No restaurante se acomodaram na tradicional mesa da calçada. Era um ambiente simples e aconchegante, as paredes internas eram de tijolos laranjas quebrados e sujos e as prateleiras repletas de garrafas de pinga. No balcão se enfileiram vários vidros de conserva, salsichas, jilós, cebolas e algo estranho com a aparência de um kibe em decomposição. Era um aconchegante boteco de salubridade contestável. Entre onze e meia da manhã e uma e meia da tarde refeições fartas e gordurosas eram servidas. No balcão entre a chopeira e uma antiga máquina registradora os pratos fumegantes eram atirados. Ao fundo, na cozinha, uma senhora cozinhava petiscos, pratos feitos e coisas estranhas que pareciam kibes em decomposição. Pediram uma porção de torresmo de barriga para abrir o apetite. Era uma tarde quente e calorenta, então uma cerveja gelada era obrigatória. Até porque, tinham que rebater a ressaca. Salsicha se acomodou ao pé da mesa bravo porque ninguém se lembrou de perguntar o que ele queria.

- Só uma. Diz Orelha com a inocência de um menino que abre um pote de balas antes da janta.

- Depois de meio dia é liberado. — Constata Tel

- Mas hoje é segunda-feira… Cê chegou no trampo meia hora atrás.

- Tá certo. Uma cerveja com petisco, almoço e bora pro trabalho! Afirma o publicitário.

Tel pega o celular de seu bolso, pluga o carregador e o coloca para carregar na tomada próxima a entrada do bar. Pega um prato na mesa, abastece com água e coloca no chão próximo a seu fiel companheiro. Salsicha imediatamente bebe água e depois de alguns goles deita aos pés de seu tutor semi satisfeito. O garçom se aproxima da mesa, pede licença, e começa a servir uma salada.

- Claudão, tá louco? Esse pedido não é nosso não. — Diz Orelha sorrindo amigavelmente.

- Não? Tão de sacanagem? — Responde de forma petulante o atendente.

- Verdade moço! A gente pediu uma porção de torresmo de barriga e uma cerveja. — Tel diz tranquilamente.

- Tô certo de que o pedido é salada de bacalhau. Cês vão causar? — Claudão fica nervoso.

- Do que cê tá falando? — O advogado confuso e irritado pergunta em semi grito.

- Cês sempre aprontam essas coisa! — Claudão também aumenta sua voz.

- Verdade. — Confirma Tel. Nesse momento recebe olhares de ódio do amigo. — Mais cê têm que concordar que sempre traz o prato errado, né? — As palavras saem suaves e irônicas da boca do talentoso publicitário.

- Cês querem a salada? — Claudão nitidamente perdeu a paciência.

- Na boa, eu não pedi. Não vô comer porra de salada nenhuma! — Orelha se exalta.

- Pois devia. — Rindo o garçom avalia de cima a baixo a figura robusta de seu oponente.

Orelha se levanta nervoso, derruba sua cadeira e pisa no rabo do pobre cão que descansava debaixo da mesa. Salsicha chora sofrido e dá um salto dolorido. De pé ele olha semi interessado para o prato de salada. O advogado fica cara a cara com Claudão.

- Calma gente! Faz o seguinte, deixa a salada aqui e traz a porção também. — Tel tenta amenizar a situação.

- Eu não vô comer. — Grita Orelha.

- Tá bem, a gente dá a salada pro Salsicha. — Sorrindo o tutor do cão afaga o bichano.

Salsicha inicialmente olha animado para a bandeja, mas após algumas fungadas sua cauda que balançava agitada, diminui o ritmo até quase parar. Não era o que ele esperava, mas por outro lado, podia não ter outra oportunidade tão cedo.

- Não posso admitir isso. — Claudão fuzila o canino com olhares esnobes.

- Porque não? — Os amigos questionam ao mesmo tempo.

- Porque não é comida de cachorro.

- Eu sei! Só quero resolvê a situação. — Tel têm certeza de que não vai resolver nada.

- Essa comida é de gente. — Diz de forma intolerante o Garçom.

- Ninguém merece! — Afirma Orelha impaciente e assenta novamente.

- Tá bem. Deixa a salada que eu como e traz a porção também! — Situações extremas são a especialidade desse marqueteiro. Dizer coisas que não concorda com cara boa é parte fundamental de seu relacionamento com os clientes. E suportar seus chiliques e extravagâncias é obrigatório.

- Não.

- Porque? Perguntam os amigos juntos.

- Porque não parece que cês realmente querem a salada.

- Sério, eu quero. Afirma Tel

- Nem tenta.

- Quero sim! — Mente descaradamente, mais uma vez.

- Ô, vô volta com o prato para a cozinha. Às vezes parece alguém interessado, cansei de perdê tempo. — Vociferou o garçom, virou as costas e foi embora.

- Vai tarde. — Desabafa Orelha.

Uma senhora se aproxima da mesa, ela caminha devagar, manca de uma das pernas e seu rosto está adornado com inúmeros curativos. Olhando fixamente nos olhos de Tel, ela chega à mesa, senta em uma cadeira vaga e estende um master tazo roxo. Orelha olha para o colega sem entender nada e percebe no rosto do amigo a estranheza daquela situação. Durante muitos minutos ninguém fala nada. Apenas Salsicha, parece, não perceber o que está acontecendo e resolve lamber ferozmente o seu bilau. O jovem publicitário olha atentamente para o rosto da velha, que neste momento, está mais preocupada com a ojeriza que sente pelo cachorro.

- Como cê me achô? — O significado de perplexidade, neste momento, é o rosto desse comunicólogo.

- Não encontrei.

- Olha dona…

- Rute! — Interrompe a idosa que analisa o advogado. — Quem é?

- Um amigo. Dona Rute…

- Não tive o prazer de conhecê no café! — Sua voz além de senil e agressiva soa como unhas riscando um quadro negro. Rute acende um cigarro e dá uma baforada.

- Não sei como a senhora me achô…

- Não achei! — Mais uma vez o jovem é interrompido. — Tava voltano do hospital e parei pra ver aquela vaca ali no canteiro central. Aí cê tava aqui. — A velha pigarreia de forma feroz e doída. Tosse como alguém que fuma descontroladamente a quase um século e aponta para uma vaca no meio da rua.

- Dona Rute, desculpa…

- Agora que cê tá com sua moedinha, vô embora. Tenho mais o que fazê!

- É um master tazo! Brigado. Que coincidência…

- Idiota! Não existe coincidência! — E da mesma maneira repentina que Rute voltou para a vida de Tel, ela saiu.

Os amigos pagam a conta, passam por um grupo de pessoas que analisa com estranheza uma vaca no meio da via e partem rumo ao trabalho. O caminho de volta foi marcado pelo silêncio. Os humanos tentam fazer algum sentido daquele dia, já Salsicha caminha alegremente e ligeiramente esfomeado ladeira acima.

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Desde o amanhecer um Puma GTS amarelo abacaxi repousa no acostamento do outro lado da rua da sede de uma emissora de rádio. Pacientemente uma mulher aguarda em seu interior. Ela se anima, o fim de sua busca parece próximo. Aos poucos sua ansiedade aumentava. E a vontade de ir ao banheiro também, não aguentava mais sua bexiga empanzinada. Queria tanto fazer xixi que nem reparou na enxaqueca colossal instalada em seu crânio. Porém, a pior agonia era a de não saber o que estava esperando. Não tinha ideia de como agir quando o momento se revelasse. E nem sabia quando ele ia acontecer. Não existe nada pior do que isso. A não ser, segurar muita urina durante muito tempo, isso é bem ruim também. E, naquele momento, parecia pior.

A única e real certeza era a de que tinha que estar ali. Qual a chance de na lanchonete onde tomava café receber o pedido de um senhor, que na verdade era parente da moça, com a qual ela dormiu na noite anterior após uma noite de pingas? E para confirmar a teoria, o dono do bar onde conheceu a garota, era amigo de funcionários da emissora na qual ela se encontra vigiando. O verdadeiro dono do pedido era ouvinte da emissora de rádio. Ele lhe descreveu com excessivos detalhes toda a programação e lhe deu o endereço de sua localização que segundo ele era “logo alí”. A pista final foi que ao sair do estabelecimento cantarolava uma moda de viola de Rolando Boldrin. Quando ligou na emissora, a mesma música no mesmo trecho começou a tocar. Era um sinal. Colocou o endereço no GPS do celular e partiu para a sede da rádio.

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Tel e Orelha ainda em silêncio se aproximavam do trabalho. O cérebro de ambos estava em pane tentando entender os acontecimentos do dia. Esse inteligente órgão humano sabia que se tentasse colocar em palavras tudo o que passava por seus neurônios não ajudaria em nada a compreensão dos fatos. Na verdade causaria espasmos involuntários, vômito e leves desmaios em seus respectivos donos. Então os amigos seguem calados. Já Salsicha sabia muito bem o que tinha acontecido, bebeu água e passava fome.

Em um raro momento de epifania, Orelha entendeu tudo. Ao ver um reluzente Puma amarelo abacaxi abandonado em frente a empresa, ele se lembrou de um momento na noite anterior. Estavam no mesmo boteco do qual acabaram de sair. Quando se retiravam, passaram por aquele veículo um pouco antes de Tel resmungar algo sobre uma vaca e, mais importante, antes de serem abordados por um fusca vermelho que falava portunhol. Meu Deus! Agora se lembrava de tudo, sabia o que estava acontecendo, era estranho, mas tudo fazia sentido.

- Tel! Lembra de quando a gente tava no buteco ontem?

- Mais ou menos.

- Então, aquele Puma…

- Puma, não lembro… Mas tinha a vaca…

- Você e essa sua mania de perseguição! Meu Deus, larga essa paranoia! Gritou o advogado para o amigo. — Ele estava lá ontem. Ele, o Fusca e o Tazo!

- Também tinha a vaca.

- Ah! Larga as vacas para lá.

- Eu queria que elas me largassem.

- Tel, eu entendi tudo!

Naquele exato momento Orelha encontrou um propósito em sua vida, um significado para suas ações e importância para suas atitudes. Ele poderia fazer algo de bom e positivo para deixar o mundo um lugar melhor. Foi nesse instante que um Fusca vermelho o atropelou.

O autor:

O Sunça é um atleticano calejado pela vida, publicitário e cartunista mineiro. Mestre e Doutorando em autossabotagem desde 1986.

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Sunça
Eu Mato Fuscas

Às vezes certo, às vezes errado, nunca com razão.