Capítulo 02

Sunça
Eu Mato Fuscas
Published in
8 min readSep 6, 2022

--

No banco traseiro de um Puma GTS uma menina brinca com seu canivete. Ela rabisca suas iniciais na lateral daquele admirável automóvel. Seu pai segue atento e preocupado na estrada, dirige em uma noite que se recusa ser agradável. Além da friaca, estava um breu mais escuro que as entranhas de um buraco de minhoca. Pai e filha seguiam rumo a uma fazenda. Procuravam uma lagoa na propriedade. O terreno fica a quarenta quilômetros de São João del-Rei. Zé sabia que lá era onde tudo ia acontecer. Os sinais eram claros: um estilingue, uma bibliotecária e uma salsicha empanada. Tudo estava conectado. Depois de algumas horas de viagem, os dois chegam na fazenda. O Puma amarelo abacaxi desacelera vagarosamente e encosta próximo a uma cerca ao norte do lote. Um grande vulto desce do veículo e, de forma rápida e ágil, pula a cerca, acende sua lanterna e caminha em direção a lagoa.

Zé sabe que o inimigo está próximo, o cheiro de óleo queimado não deixa dúvidas. Ele pega seu bilboquê e se prepara para um ataque iminente. Caminha até chegar a margem da lagoa, na lama o experiente caçador analisa as marcas de pneu. Ele conhece aquelas “pegadas”. Está atrás do fusca azul calcinha há algum tempo. Agora finalmente está perto, a justiça vai ser feita e a vingança será sua. O silêncio da noite é interrompido por um mugido louco, trotes nervosos e respiração ofegante.

A pequena Vanessa estava entediada. Não aguentava mais esperar por seu pai — Porque diabos ele a havia deixado ali? — o rádio estava sem sinal e a garota não aguentava mais reler o seu gibi. Olhou seu relógio de pulso mais uma vez e deu um salto. Trinta e cinco minutos era demais, não podia esperar a vida toda. Pegou seu ioiô, guardou seu canivete no bolso e saltou para fora do carro adentrando o buraco de minhoca que é a escuridão daquela noite gelada.

Nessa chega na beirada da lagoa. A cena é inacreditável, seu pai está no meio de uma luta. Uma batalha violenta e sangrenta contra uma vaca. O animal corre na direção de Zé, que desvia quase que exatamente como um toureiro profissional e ligeiramente parecido com uma vovó se jogando em uma pista de dança de salão. Assim dá um belo drible no bovino. Segurando na haste de seu bilboquê, ele gira o treco e nocauteia o animal com a esfera de madeira. A vaca cai desacordada na orla da lagoa. A menina corre na direção de seu pai e os dois se encontram em um abraço amoroso. Que é interrompido imediatamente pelo grunhido de um motor. Os dois se soltam e pulam em direções opostas. Deixam entre eles a distância exata para que um fusca azul calcinha passe em alta velocidade. Com muita habilidade Zé gira seu bilboquê e acerta o fusca na lateral, Nessa saca seu ioiô e de forma profissional começa a jogá-lo acertando e entortando o espelho retrovisor do lado esquerdo. O veículo freia dando um cavalo de pau e para de frente para os dois. O clima é tenso, se o Fusca tivesse uma expressão facial ela diria: “Tá na hora do pau!”. Os três se encaram como em um duelo de bangue-bangue, passam segundos que parecem horas até que iniciam novas investidas. A vaca desperta e de supetão, trotando desengonçada, ataca na direção do Fusca. Ela acerta em cheio a lateral direita do Fusca, Zé acerta um golpe na cabeça da vaca e o fusca, devido ao impacto da chifrada, derrapa e não acerta a menina. Nessa, acerta em cheio um marreco. No meio da confusão e barulho ensurdecedor, a ave acordou incomodada com a balbúrdia e tomou a decisão equivocada de sair da lagoa para passear sob o céu estrelado.

Tropeçando em zigue-zague o carro faz uma curva e tenta um novo ataque na direção da garota. O pai percebe as intenções do inimigo e parte em direção a filha. Ele parece um talentoso atleta em uma corrida com obstáculos, salta o corpo de uma vaca desacordada e emulando um drible dos melhores jogadores de basquete ele desvia do cadáver de um marreco e alcança sua filha a tempo. A tempo, de empurrá-la agressivamente para o lado e salvá-la do impacto do fusca, impacto que ele mesmo sofre. Atordoada com todo o acontecimento a menina abre os olhos e assiste o Fusca detonado indo embora aos trancos e barrancos. Ela fica de pé e observa a vaca acordar e partir a galope, manco e doído, na direção do Fusca. A garota gritando corre até o corpo morto de seu pai.

●●●

Nessa nunca sentiu tanto alívio em sua vida. Após um longo e extenso gozo urinário, saiu sem graça do lavabo masculino e pediu desculpas por agredir o porteiro. O trabalhador apenas queria exercer a sua função, mas recebeu um empurrão acompanhado de muitas palavras chulas. Ao sair do prédio, tudo parecia mais leve. A brisa da tarde era fresca, a temperatura agradável, o sol estava lindo e o dia maravilhoso. Tudo parecia perfeito, exceto a terrível cena de atropelamento que aconteceu a alguns metros de sua pessoa. Ao ver o Fusca assassino, ela fica feliz. Para humanos menos perceptivos, o sorriso em seu rosto, poderia ser entendido como a reação mais humana de todas: O regozijo de prazer pela desgraça alheia. Porém esses leigos estariam completamente errados. O sentimento de alegria era advindo de estar no lugar certo e na hora exata. Talvez uma pouco atrasada, mas estava certa.

O Fusca sobe a ladeira com uma velocidade impressionante para aquele tipo de veículo. Ao chegar no topo dá uma guinada e passa a descer ainda mais rápido, dizendo: — Donde diablos está o artefacto?.

Tel corre em direção ao corpo do amigo.

  • Orelha! Orelha! Fala comigo Orelha!
  • Tel, presta atenção. Tá tudo conectado…
  • Moço cê foi atropelado!
  • Tô ligado… — Geme o amigo — Cê tem que olhar como um todo…
  • Cê tá bem moço?
  • Presta atenção carai! Ali… — O advogado aponta para o veículo amarelo abacaxi do outro lado da rua — … e o Tazo…
  • Não Orelha! Puma, p-u-m-a.
  • Cuidado com o… — Gentilmente Orelha entra em espasmos involuntários e suas fraturas externas passam a sangrar mais. O vômito incontrolável do colega incomoda Salsicha que cheira curioso a calça borrada daquele corpo caído. — Argahgrh… — Após um longo grito de dor agonizante o advogado lentamente repousa sua cabeça no asfalto e com um exacerbado sofrimento morre.

Horrorizado pela cena, o publicitário fica de pé em um salto para trás, no susto o canino acompanha o movimento. Devido a esse fato, que muitos chamariam de coincidência, eles se salvam da segunda investida do Fusca. Que novamente acerta apenas Orelha. Sem reação e completamente sujo de sangue, Tel cai de bunda no chão e Salsicha amedrontado salta em seu colo. No fim da rua o carro vermelho dá um cavalo de pau e se prepara para uma nova investida. O publicitário e seu fiel amigo se preparam para o triste fim quando um puma amarelo abacaxi freia bruscamente ao seu lado.

  • Vêm comigo se cê quê vivê! — Diz Nessa.

Sem pensar duas vezes, o humano e o cão entram no veículo que dispara cantando pneus rua acima.

Em silêncio o jovem observa o interior do veículo. Bancos marrons de couro brilhantes, painéis redondos e reluzentes com detalhes cromados. Impressiona como por dentro o carro é surpreendentemente espaçoso. No volante uma mulher um pouco mais velha que ele, usando um top preto, calça jeans justa e rasgada e uma bota cano alto. Ela olha em sua direção e diz:

  • Nessa.
  • Nessa, o quê?
  • Não! Me chamo Nessa.
  • Ah! Me chamam de Tel…

Foi nesse momento que ambos perceberam que o cão amedrontado e encolhido havia mijado em toda a dianteira do veículo.

  • Não! Meu bebê… Bicho maldito!
  • Bicho não. O nome dele é Salsicha!
  • Caguei pro nome desse maldito mijão.
  • E eu caguei pra essa lata velha.

Nessa freia bruscamente o carro, deixando uma marca negra no asfalto fazendo fumaça e exalando cheiro de queimado.

  • Pede desculpa!
  • Oi?!
  • Cê chamou meu bebê de Lata velha!
  • Peço não.
  • Desce.
  • Mas e o Fusca…
  • Caguei!
  • Tem base?! — Diz Tel inconformado.

Ele fica em silêncio e estático diante de um canivete amigavelmente apontado para sua fuça.

  • Desculpa! O carro é lindo.
  • Brigada. — Ela guarda a arma — Seu bicho não é maldito.
  • Eh… Brigado. Que cê quer comigo?
  • Eu mato Fuscas!
  • Oi?
  • Salvo pessoas, caço Fuscas, o trampo da minha família.
  • Cê pode imaginar que sou um idiota e me explicar com calma que tá aconteceno?
  • Claro. Imaginar isso é fácil.
  • Brigado.
  • Oia Tel, Fuscas não são o que parecem ser. Pro jacu eles são apenas veículos fofos. Mas na verdade são seres sobrenaturais que afetam nossa história, e conduzem, à sua vontade, os rumos de nosso planeta. São opressores e os caçadores ao longo da história combatem os Fuscas e suas perebas.
  • Perebas?
  • É. Os trem que acontece quando eles tão perto, os jacus chama de coincidência. Mas é pereba.
  • Cê tá tomando os remédios direitinho? — Debocha o jovem.
  • Os Fuscas construíram impérios, conquistaram países, escravizaram pessoas e até criaram franquias de fast food. Um desses monstros até foi ator de cinema.
  • Herbie, era um deles? — Choraminga o publicitário.
  • Sim. Pai matô! — Diz orgulhosa a mulher ao volante.
  • Seu pai é caçador?
  • Ele era. Caçadores meio que tão em extinção, tamo perdeno a guerra. Só sei de dois.
  • Quem? — Pergunta o publicitário completamente embasbacado com a loucura daquela ressaca.
  • Eu e ocê.
  • Tá doida? Sou caçador de Fusca não.
  • Porque eles tão atrás docê?
  • Sei não.
  • Cê pode até não ser. Mais os Fuscas acha que cê é.

Durante alguns minutos ninguém diz nada dentro daquele acolhedor Puma que corre em alta velocidade pela cidade. Ambos tinham muito o que pensar. Nessa, com habilidade, conduz o veículo em ziguezague pelos quarteirões da capital mineira. Haviam saído da zona norte da cidade, neste momento passavam pelo centro da cidade. A condução frenética tinha um objetivo. Tentar despistar o Fusca, o que está funcionando. Passavam em frente ao Pirulito da Praça Sete. Tel observa aquele monumento que sempre lhe pareceu estranho, mas em meio aos últimos acontecimentos aquele ponto turístico fálico parecia bem normal e comum.

  • Tamo livre do Fusca. — Diz Nessa mais tranquila e levemente desacelerando o carro.
  • Pra onde vamos?
  • Temo que sair da cidade.
  • E minhas coisas? Minha vida? Minha casa?
  • A vida como cê conhece acabô. — A seriedade na voz da mulher causa arrepios em Tel.
  • Vamo passa na minha casa antes? Quero tira o pijama.
  • Seria bom.

O jovem publicitário passa a descrever a rota para seu bairro. O puma vira à direita para subir a rua da Bahia e segue em direção ao bairro São Pedro.

Um caçador ao perceber a pereba, passa a seguir suas pistas. Normalmente elas o levam a um evento envolvendo um Fusca. Esses acontecimentos podem ser dos mais variados, desde assassinatos e corrupção no governo, até produções em massa de salsichas empanadas, ou até mesmo uma performance ao vivo na Bienal dos Piores Poemas. Durante um confronto o caçador utiliza seu treco para abater o Fusca. As lutas podem durar desde segundos até horas, quando derrotado o Fusca sofre uma implosão reduzindo seu tamanho e perdendo a vida e virando itens colecionáveis. Os caçadores que perdem sofrem violentas e sanguinolentas mortes.

  • Peraí! Treco?
  • Um trem de valor. Algo que traz bons sentimentos e boas lembranças. Coisas bem boas têm poder!

Ambos param de conversar. Devagar, o Puma amarelo abacaxi encosta ao lado de um prédio em chamas.

O autor:

O Sunça é um atleticano calejado pela vida, publicitário e cartunista mineiro. Mestre e Doutorando em autossabotagem desde 1986.

Site/ Twitter / Instagram

--

--

Sunça
Eu Mato Fuscas

Às vezes certo, às vezes errado, nunca com razão.