I — Meu nome é Alice

Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
11 min readMar 30, 2021

Antes que você saia por aí falando que eu tenho um problema de raiva, seria bom se você desse uma olhada ao redor e se perguntasse se o problema é realmente esse, ou se o mundo ao redor é o problema, e a raiva a única resposta possível pra tudo que tá acontecendo.

Se isso parece algum tipo de exagero, então me parece óbvio que tem alguém fechando os olhos e não querendo enxergar, e esse alguém não sou eu. Mas na real isso não é problema meu, e você provavelmente já é grandinho/a/e o suficiente pra tomar vergonha na cara e se esforçar pra ser uma pessoa melhor por si só. Eu não tô aqui pra educar ninguém, e só queria começar deixando claro que a raiva que emana da minha pessoa é perfeitamente natural levando em conta as circunstâncias, e que a culpa não é minha se eu preciso lidar com toda essa merda todo santo dia. Honestamente, se eu pudesse escolher uma realidade pra viver, eu escolheria absolutamente qualquer outra, mas de preferência alguma com menos grades, menos pedaços de madeira com pregos e menos medo de sair na rua e levar uma mordida no pescoço. Talvez aí, em um contexto que não envolvesse tanto tempo presa em casa com a minha família, uma pilha incomensurável de problemas sociais liderados por um governo composto majoritariamente por imbecis-neo-fascistas, e o estresse diário de um fim do mundo meia-boca, fosse possível medir a quantidade de raiva que eu sinto longe desses fatores e determinar se ela é realmente um problema ou se ela simplesmente desapareceu quando esses mesmos fatores ficaram para trás numa realidade que foi devidamente amassada e enfiada num saco de lixo reciclável pra ser levada de volta pros arquitetos do universo reutilizarem como artesanato nas suas mansões-mundo decadentes.

A minha opinião sobre o assunto é que numa realidade mais agradável não ia ter raiva desmedida, e portanto não existe problema de raiva por aqui.

Agora que nós tiramos isso do caminho, podemos começar de verdade.

Oi. Meu nome é Alice, e algumas pessoas que eu gostava do mundo antigo me chamavam de Lis. Meu sobrenome não importa, até porque eu não quero ninguém me stalkeando por aí. Eu tenho 22 anos, apesar de meu último aniversário ter sido de 21, e eu moro num apartamento com os meus pais, meu irmão e às vezes minha tia, o que é uma das inconveniências do pior apocalipse de todos os tempos, que é esse que eu por acaso habito.

Você pensaria que se o fim do mundo fosse servir pra alguma coisa, seria pra pelo menos dar fim ao mundo, como o nome sugere, ou pelo menos num nível que fizesse a sociedade dar alguns passos para trás e recomeçar de um checkpoint anterior mas com os itens que conquistou até agora, como tipo todos os filmes e séries do mundo sugeriram milhares de vezes… Mas não, isso seria muito conveniente. É mais fácil imaginar o fim do mundo capitalista do que uma sociedade que persista além dele, mas a realidade é pior que as duas coisas e envolve um capitalismo que não só sobreviveu, mas se adaptou a esse mundo meio-terminado, de um jeito que é conveniente o suficiente pra que as coisas não tenham previsão nenhuma de mudar por enquanto.

Por que recomeçar de um checkpoint anterior se a gente pode só trabalhar de casa como se nada tivesse acontecido, conviver pra sempre com as mesmas quatro pessoas e ter pizza entregue pra gente direto no portão de casa no domingo à noite?

Pois é. Entrega de pizza no apocalipse. Você pensaria que a humanidade teria outras prioridades.

Mas o que é prioridade em tempos como esse, não é mesmo? Não é como se a gente tivesse alguma perspectiva de futuro, ou de mudança. A não ser que você acredite nas autoridades, o que você tem que ser bem burro pra fazer, principalmente porque as próprias autoridades não acreditam em ciência, e enquanto isso a ciência tá tipo eeeh…

Então a gente tem vivido num cada-um-por-si-e-deus-por-quem-pode, como exemplificado em grau menor por essa situação:

Meu irmão, sem bater, abre a porta do meu quarto. O nome dele é Caio Henrique, ele tem um metro e oitenta, dezoito anos, e está usando só um short de futebol e nada por baixo, o que sempre cria situações desagradáveis, obviamente. O peito dele com um chumaço de pelos tá mais branco do que jamais esteve depois de tanto tempo preso em casa, e o cabelo cacheado tá sem corte e ensebado porque ele toma muito menos banho do que deveria.

Ele para no batente da porta e apoia o braço enorme do outro lado. Caio é idiota, mas não idiota o suficiente pra entrar no meu quarto sem ser convidado.

“A pizza chegou, gênio,” ele fala, e então vira pra sair antes que eu responda, como se isso quisesse dizer alguma coisa por si só. Mas eu sou rápida e conheço o imbecil.

“Então vai pegar, caralho.”

Mas ele finge que não ouviu e já tá entrando no quarto dele quando eu salto da cama e corro até lá. “Sério, Caio Henrique, se liga, hoje é sua vez.”

“Eu já atendi o interfone,” ele diz, como se ele tivesse feito alguma coisa de relevância mínima pela humanidade ao dar três passos até a cozinha e falar alô. “Vai você.”

“Você é ridículo, eu fui buscar a comida as últimas três vezes, e todas as outras foram a mamãe, tá na hora de você fazer alguma coisa pra variar,” eu continuo, mas ele já colocou os fones de ouvido e sentou na escrivaninha. “Caio Henrique,” eu falo mais alto, e começo a andar até ele, quando sou interrompida por uma voz vinda da sala.

“Alice, vai buscar a pizza você. O seu irmão tem que estudar.”

Esse é meu pai, e ele sempre faz esse tipo de coisa, principalmente pra proteger seu filho favorito.

“Nem vem, pai, ele nem sequer tá estudando…”

“Alice, agora,” ele fala, como se dar ênfase no agora fosse um argumento válido. E eu estou pronta pra discutir, mesmo sabendo que a chance de perder é enorme, mas desisto, não pelos dois imbecis que assombram esse apartamento, mas pelos dois entregadores esperando lá embaixo e colocando a sua vida em risco por causa de uma pizza. Alguém tem que ser uma pessoa decente nessa casa.

Então eu coloco uma calça por cima do short, pego minhas botas e vou colocando o resto do equipamento de proteção enquanto eu espero o elevador: as luvas de patins, o neck guard, capacete, protetor de peito e de pernas. A maior parte deles é equipamento de esportes que a gente comprou numa promoção pouco mais de um ano atrás, mas a proteção é suficiente se você ficar esperta.

Quando o elevador chega, eu estou quase pronta, então entro, tranco a grade por dentro e sento pra colocar minhas botas na descida de treze andares.

O elevador para no sétimo, quando uma senhora de calça de moletom abre a porta e tenta abrir a grade duas vezes antes de me olhar sentada no chão. “Ah,” ela diz, soltando a grade e deixando a porta fechar. “Não te vi.”

“De boas,” respondo, enquanto a porta dentro fecha e o elevador volta a descer. A regra mais importante de todas pra sobreviver ao apocalipse é: nunca fique a menos de três metros de uma pessoa que você não sabe que não está infectada. Isso geralmente quer dizer todo mundo que não mora com você, porque a segunda regra é assuma que todo mundo está infectado. É melhor prevenir do que tomar uma mordida no pescoço. Por isso, os elevadores agora têm grades e são pra uso de uma unidade de cada vez.

Eu chego lá embaixo, destranco a grade e percebo que eu esqueci meu taco lá em cima. Não é algo que eu precise de verdade pra pegar a pizza, mas as recomendações da OMS são pra que a gente nunca saia de dentro de casa sem um suporte físico de proteção. Mas a luzinha do sete já tá acesa, então entre eu subir de novo e esperar o elevador descer e subir o entregador já vai tar exposto a muito risco. Então eu saio pelo saguão de entrada conformada e torço pela força da probabilidade do meu lado.

Felizberto, o porteiro marxista, está sentado na guarita lendo um livro, mas de porta aberta, o que é um risco desnecessário. Ele aponta pro cubículo gradeado onde o entregador de pizza está mexendo no celular, sozinho. Do lado de fora, outro entregador espera, atento, enquanto os vigias de apoio dos dois montam guarda na rua, com seus tacos e pregos de prontidão, conversando a uma distância relativamente segura.

“Boa noite, dona Alice.”

“E aí, Feliz,” eu retruco, ajeitando o velcro de uma das minhas luvas. Paro na frente da grade e destravo a gradezinha da pizza. “Boa noite,” falo pro entregador, acenando com a cabeça, e tentando não mencionar que ele deveria estar usando a proteção do pescoço, mas não está.

“Opa, boa noite,” ele responde, casual, pegando a nota fiscal do bolso e dando uma lida nela. “Ruy, do 131?”

“Issaí,” digo, mostrando o cartão pra ele, que vai digitando os números na maquininha. Ele me estende a máquina, eu insiro o cartão, digito a senha, toda essa burocracia contemporânea que a gente faz de lados opostos de uma grade. Às vezes a gente pede comida por um aplicativo, como pessoas decentes, e não tem que se preocupar com cartão e com o entregador esperando, porque ele só deixa as coisas na portaria e vai embora, mas meu pai gosta de pedir a pizza do Anselmo, e eles se recusam a se render a qualquer tecnologia mais moderna que um telefone com fio, então acabamos todos nós nos submetendo a esse ritual arcaico e arriscado semanalmente. Na real a pizza do Anselmo nem é tão boa assim, mas eu acho que meu pai gosta de ter alguém com quem conversar, já que ninguém dá bola pra ele em casa.

Pego o cartão de volta, recebo as duas pizzas (meu pai gosta que sobre pra não ter que pensar em comida no dia seguinte, o que é muito engraçado já que ele nunca tem que pensar em comida) e entrego dois reais pro meu amigo, que guarda suas coisas, deseja boa noite e sai do gradeado, dando lugar ao outro entregador.

A essa altura, a mulher do sétimo andar já está esperando, sem equipamento de proteção, e eu cedo meu lugar pra ela, parando pra trocar uma ideia com o Felizberto a uma distância segura de três metros.

“Tá lendo o quê, Feliz? Cinquenta Tons de Cinza?”

Ele emite um ronco de desprezo com o nariz. Felizberto odeia o que ele chama de literatura-baixa, e eu adoro encher o saco dele por causa disso. Um dos pequenos prazeres que a pandemia ainda não deixou sem gosto pra mim.. “Não, não, não. Tô lendo Crítica da Razão Dialética, do Sartre. Ou melhor, relendo.”

“Ah. Tá numa fase existencialista?”, pergunto, tamborilando os dedos na caixa de pizza. Não é que alguns minutos vão fazer muita diferença, e eu não quero correr o risco da sra.-sétimo-andar querer entrar no elevador junto comigo.

“Não estamos todos?”

“De certa forma…”

A sra. Sétimo lança um olhar afetado pra gente e segue com suas sacolas de papelão na direção do elevador. “Boa noite pra senhora também,” digo, mas ela é mal-educada ou escuta mal demais para me responder.

“E você, o que tem lido?”, Feliz pergunta, torcendo o biquinho em desaprovação antecipada.

“Ah, você sabe, romances lésbicos cheios de putaria, essas coisas.” A verdade é que eu travei lendo Cem Anos de Solidão há alguns meses e nunca mais olhei pra ele, então não tenho conseguido ler muito durante o apocalipse. Então eu pelo menos posso me divertir com as caras contorcidas do Feliz.

“Ah, sim, tenho certeza,” ele faz uma careta. “Tenho certeza…”

“Falaí, cê não devia tar com mais equipamentos de segurança? Sem proteção nenhuma e de porta aberta você é um risco pra todo mundo aqui.”

“Eu tenho meu taco aqui do lado, o que é dizer mais que quase todo mundo que mora nesse condomínio. E os equipamentos me sufocam, do mesmo jeito que essa porta fechada. A sua pizza não vai esfriar?”

Eu começo a responder que estou esperando o elevador esvaziar, mas somos interrompidos por um grito de fora. Eu corro rápido pra grade pra ver o vigia do entregador da Sra. Sétimo engalfinhado com um mordedor do outro lado da rua, tentando acertar ele com seu taco. Não muito longe, o próprio entregador tá usando o capacete pra bater em um outro que se aproxima dele.

“Tem mais, tem mais!”, o vigia grita, acertando com tanta força a cabeça de um mordedor que faz ele cair no meio da rua. Ele vira pro lado e já dá de cara com mais um, o que faz meu estômago apertar.

“Bora, bora, bora, rapá,” grita o entregador, tendo se livrado momentaneamente do seu mordedor e ligando a moto. O vigia vira pra falar com ele, e nesse momento perde o equilíbrio e cai na calçada.

Se tem uma coisa que os mordedores adoram é subir em cima de quem cai no chão.

“Feliz!” eu grito pra trás, e sou cortada pelo barulho da moto acelerando alto pela rua, cantando pneu e desaparecendo de vista. O entregador deixou o seu vigia sozinho, na moral? “Feliz! Faz alguma coisa!”

O vigia, sem seu taco, luta pra se livrar de seu mordedor, dando o braço pra ele. Dar o braço é a melhor coisa, você não pode se deixar ser mordido no pescoço e nem na panturrilha, e os mordedores vão morder qualquer coisa que tiver perto dos seus dentes. Daqui, não dá pra ver se ele tem alguma proteção no braço, mas parece que sim.

“O que você quer que eu faça?,” Feliz pergunta. “Tem mais um monte vindo aí.”

E é verdade. Olho pro fim da rua através das duas grades e vejo cinco ou seis mordedores se arrastando na direção do vigia. Talvez a gente consiga trazer ele pra dentro antes dos outros chegarem

“Abre a grade, Feliz! Vai, abre a grade!”

“E se ele foi mordido?”

“Depois a gente pensa nisso, abre a grade, Feliz!”

Feliz assente gravemente com a cabeça, mas não faz nada.

“Feliz?”

“Protocolo de segurança,” ele diz, quando mais um mordedor cai em cima do vigia, que grita e golpeia. “E inclusive tarde demais.”

“Porra, Feliz, abre logo, eu vou lá ajudar ele!”

“Sem chance, Alice.”

“Feliz!”

“Seu pai me mata, sua mãe me assassina e eu ainda sou capaz de perder o emprego. Sem chance, infelizmente.”

“Feliz, abre a porta, caralho! O cara vai ser mordido, a gente precisa fazer alguma coisa!”

“Infelizmente não posso. Aí, ó, o cara tá levantando.”

Viro pra olhar de novo e o vigia levanta cambaleando, agora com o taco na mão e brandindo ele para os lados, afastando os mordedores. Ele recupera o equilíbrio, acerta um deles na cabeça e sai mancando, correndo pela rua como consegue, até desaparecer de vista, xingando alto.

“Pronto, passou.”

“Porra, Feliz, a gente podia ter ajudado!”

“Olha, Alice, eu concordo com você do fundo do meu coração, mas a verdade é que não ia adiantar nada de nada, e eu não ia colocar mais duas pessoas em risco… O rapaz sabe que esse é o risco do trabalho dele. Infelizmente o mundo é assim.”

Olho pra ele uma última vez, indignada, pego as pizzas que eu deixei cair no chão em algum momento e marcho de volta pro elevador.

“Você é um babaca, Feliz.”

“Talvez, mas graças a esse babaca você não vai sair por aí mordendo gente na rua essa noite, então de nada!”

Puxo a grade do elevador com força e subo os treze andares mostrando o dedo do meio pra câmera.

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.