II — A Esperança da Humanidade

Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
10 min readApr 7, 2021

Nos tempos de antes, eu costumava gostar de ficar deitada na cama olhando pro teto, pensando em nada. Agora, com absolutamente nada pra fazer sem ser ficar deitada na cama olhando pro teto, pensando em nada (ou em tudo, escolha o sofrimento da sua preferência), eu odeio profundamente o teto, o seu rodapé (eu li que chamam isso de rodateto, mas francamente), cada uma das rachaduras que antes eu achava charmosa, o barulho do ventilador, a lâmpada amarela… Basicamente tudo.

O que é uma forma de dizer que eu não aguento mais ficar presa em casa, sozinha. Não que eu esteja de fato sozinha — isso talvez fosse uma bênção por si só, mas estar com a sua família às vezes é tipo estar sozinha, só que um pouco pior. Mais uma das bênçãos infinitas do Lyssa, maldito vírus dos mordedores.

O Lyssa surgiu de repente, e as pessoas começaram a morder outras pessoas… Bom, até aí, vírus da raiva normal, ninguém ficou muito alarmado. E então as coisas começaram a degringolar um pouco, pra surpresa de todos, e então elas começaram a degringolar completamente, pra surpresa de absolutamente ninguém exceto os sub-capacitados representantes da democracia-e-variantes, que são praticamente todos… E agora nós vivemos em lugares gradeados, saímos só com equipamento de proteção para ir em lugares tipo essenciais (a não ser que você seja uma dessas pessoas que, tipo, tem ido no bar e acaba sendo mordido por amigos ou conhecidos ou por alguém de passagem), e nada mais faz sentido. Um ano depois o negacionismo continua, a epidemia de estupidez persiste, a cura e/ou vacina estão em lento desenvolvimento e eu não vejo meus amigos ou a minha namorada há mais tempo do que deveria ser humanamente aturável.

Eu não vou apontar dedos, até porque me faltam dedos por uma grande margem, mas as coisas poderiam não estar tão ruins. Acontece que o Lyssa é um pouco complexo. Basicamente, depende da sua saúde e de onde você foi mordido. Gente que é mordida nos braços e nos dedos geralmente fica bem, sofrendo de febres e, em pouquíssimos casos, crises de mordida, mas depois de um tempo os sintomas arrefecem e o vírus manda um valeu, falou. Claro que se essas pessoas acabam mordendo alguém, o dano está feito, mas parece que assim o efeito é menor. A gente chama isso de efeito de segunda-mão, o famoso 2m. Os pulsos são um pouco mais perigosos, o tórax pode causar longas crises de mordida e febres daquelas que fritam os neurônios e fazem as pessoas perambularem nas ruas procurando algo pra morder… Boa parte das pessoas sobrevive a esse estágio, e elas são encontradas dias depois nas ruas, se sentindo meio tontas, com fome, com efeitos colaterais diversos e muitas vezes graves, mas não fatais.

Agora, ser mordido no pescoço ou na panturrilha (o segundo-coração, alerta a OMS) é basicamente o fim. A não ser que seja de segunda-mão, mas os 2m tendem a ser mais fracos, lentos e fáceis de empurrar pra longe. O problema é tomar uma mordida de 1m no pescoço. Na verdade, gotas de saliva de 1m em contato com as mucosas também podem causar infecção. Os efeitos são rápidos, às vezes dando crises de mordidas em minutos. E aí não tem muito o que ser feito. A crise é forte e violenta, a febre frita mesmo a cabeça das pessoas e os poucos que sobrevivem ao processo, por meio de cuidados extremos mas incapazes de combater os vírus (os sortudos que encontram lugar nos hospitais), não voltam a ser mais do que uma sombra do que eram. Mas a maioria morre nas ruas, de fome, de exaustão, de outras doenças, ou, igualmente mortal, de golpes na cabeça. Todo mundo carrega alguma coisa pesada pra bater nos mordedores hoje em dia, e tecnicamente você só pode usar pra afastar eles e se defender. Mas tecnicamente não significa nada num mundo de pessoas incapazes de fazer mais do que uma leitura superficial das coisas.

Ou seja, o maior risco de mortalidade para os mordedores são humanos assustados.

E é por isso que a gente chama eles de mordedores, e não da palavra com z. Embora mordedores não seja muito melhor. Tem gente que chama eles de outras coisas, mas mordedores é a Nomenclatura Oficial™ da OMS. Tentaram usar infectados, mas por algum motivo isso alimentava ainda mais o comportamento agressivo das pessoas. Eu e os meus amigos chamamos as crianças andando sem proteção por aí de Lyssitos, mas é uma coisa nossa.

Tanto quanto uma coisa pode ser de alguém quando se fala ocasionalmente dela nos grupos de mensagem a cada dia mais e mais abandonados.

E aqui estou eu, de novo, olhando pro teto e pensando em tudo ao invés de não pensar em nada, o que seria com certeza mais saudável pra minha psique fragilizada. Mas minha cabeça veio da fábrica sem o interruptor de desligar, então eu sou basicamente que nem esses computadores novos, minando e minando pensamentos como uma dessas estufas de bitcoin.

Que mundo zoado do caralho que a gente habita.

Meu telefone toca do lado e eu finalmente sou tirada do meu transe hipnótico e autoinduzido de pensamentos constantes.

“Êêêêê,” digo, sem mostrar minha cara.

“Não tô te vendo!”

Esse era meio que o ponto. Pego o celular da cama e digo oi pra Layla, que mesmo usando um moletom em cima do pijama e com o cabelo preso pra cima ainda é a coisa mais bonita que eu vou ver no meu dia. O ponto alto da minha solidão diária.

“Tá frio, aí?”

“Ah, bom, mais ou menos! Agora à noite deu uma esfriadinha, sim. Tudo bem? Tá com uma cara.”

Encolho os ombros, suspiro, tento passar todas as informações sem dizer uma palavra, mas infelizmente ainda não consegui dominar essa técnica.

“O nosso entregador foi atacado… Quer dizer, o entregador fugiu, na real foi o parceiro dele, mas mesma coisa.”

“Puuuutz,” Layla faz uma cara de preocupada. “E você viu?”

“Vi! Eu tava lá, e o imbecil do — coitado, o panaca — enfim, o Felizberto não me deixou sair pra ajudar. O cara saiu mancando fugido dali, mas enfim, sei lá, não sei no que deu.”

“Bom… Você não ia poder fazer nada, né?”

“Eu podia tentar, Layla!”

Ela para por um segundo e balança a cabeça, pensativa. “Pizza do seu Anselmo?”

“Que diferença faz?”

“Nenhuma, só tô curiosa.”

“É… Uma pessoa foi atacada só porque meu pai queria comer a portuguesa dele no domingo… Mas na real, nem foi isso, agora que eu tô pensando. O entregador que foi atacado foi da outra entrega. Eu que fiquei lá conversando com o Feliz pra mulher do sétimo andar subir no elevador. Mas mesmo assim, a culpa não é pessoalmente nossa, mas a questão social persiste mesmo assim.”

“Ah sim, com certeza…”

Aproximo da tela, franzindo a testa. “Cê tá desenhando?”

Ela dá um sorrisinho culpado. “Tô… Desculpa, eu preciso terminar essa encomenda aqui pra amanhã, e ainda falta muita coisa…” A Layla desenha, e tem vendido seus desenhos na internet como encomenda pra ajudar a pagar as contas da casa dela, agora que a mãe não pode mais trabalhar. São principalmente desenhos de putaria, mas ninguém na casa dela fala nada porque ajuda a manter as grades firmes e as barrigas cheias. Às vezes eu me deparo com a ideia da mãe dela sendo sustentada pela arte pornográfica da filha lésbica… Eu juro que de vez em quando esse mundo de merda até que dá umas dentro. Bem-feito pra ela.

Mas mesmo assim.

“Isso quer dizer que não vai rolar um sexy time da madrugada?”

“Hm… Não… Acho que vou ficar fazendo direto até de manhã, gatinha. Desculpa.”

“Nah… Tudo bem. Não é a mesma coisa, mesmo. E de qualquer jeito eu posso fazer meu sexy time sozinha.”

Isso captura a atenção dela. “Ah é? Me conta mais?”

“Você não tem que desenhar, não?”

“É, mas você pode me entreter enquanto eu desenho…”

“Bom, eu provavelmente ia deitar debaixo do edredom, acender o abajur e imaginar uma praia bem deserta…”

“Na areia, é? Bem desconfortável…”

“Exato. E bem longe de tudo, só eu e… talvez você, talvez não,” dou uma piscadinha.

“Ah, é? E daí?”

“E daí a minha tia ia chegar e eu ia ter que parar tudo de repente e ser transferida pra sala e tentar dormir no sofá, tentando sobreviver ao cheiro de pizza e de mofo humano.”

Em defesa da Layla, ela tenta segurar a risada alta que ela dá.

“Tia Chica vai aí de novo hoje, é?”

“E ela não vem toda noite?”

“Se pá…”

A minha tia Chica é imunologista e uma das pesquisadoras-chefe envolvidas nos desenvolvimento da vacina Lyssa-71, num prédio muito bem seguro que não fica muito longe daqui. Ela passa metade do tempo livre dela por lá, dormindo na sua sala, e a outra metade aqui, dormindo em casa. Faz mais ou menos uns seis meses que o prédio dela foi invadido por uma horda de mordedores 1m, e ela se salvou se escondendo dentro da cama-baú por um dia e meio. Depois que conseguiram limpar a área — o que só aconteceu porque ela é crucial pra pesquisa e as autoridades não tiveram escolha -, ela pegou suas coisas e nunca mais quis voltar. Quando a mamãe descobriu que ela tava morando no escritório, chamou ela pra pelo menos vir tomar um banho aqui, e foi assim que ela passou a dormir no meu quarto quase todas as noites. Ela se oferecia pra dormir na sala no começo, mas depois que eu descobri que ela não conseguia dormir ali, porque não se sentia segura sem um espaço completamente fechado pra si, eu cedi meu quarto pra ela. A pessoa, afinal de contas, tá se matando de trabalhar por uma cura pra humanidade, eu posso fazer um pequeno sacrifício pra ela dormir bem. Eu poderia dormir num colchonete e ela na cama, mas na real ela ronca demais, então vamos de sala mesmo.

E é assim que eu pelo menos tô fazendo minha parte pra humanidade, ao contrário dos outros dois idiotas da minha família. Além disso, eu tenho tomado café da manhã com a minha mãe antes dela sair pra trabalhar, o que é um lado bom, e quando o Carro Fortificado Sinistro vem buscar a tia Chica de manhã, eu me arrasto pra cama, coloco um lençol reserva por cima do dela e durmo o quanto consigo, o que geralmente é até a hora do almoço, ou algo assim.

Alice no País das Maravilhas. Minha vida resumida em uma sentença.

“E aí, o que você fez hoje?” Layla pergunta, depois de um tempo de silêncio.

“Respirei, principalmente? Li um artigo na internet dizendo que está tudo perdido? Hã… Tomei um copo de água inteiro… Basicamente isso. E aí teve o incidente com a pizza. Que eu não comi depois, por motivos óbvios.”

“Então nada de dança?”

“Hm… É, eu totalmente esqueci que eu podia fazer isso.”

“Alice…”

“Eu sei, eu sei. Mas isso foi quando eu achava que a gente ia voltar a viver uma vida vivível… Agora não sei mais… Então não tenho tido muita vontade de tentar dançar… Ainda mais num espaço minúsculo desses.”

É, meu quarto já não é grandes coisas só com as minhas coisas, quanto mais com a bagunça da minha tia, que tem duas malas gigantes que ficam abertas no chão. Tem como anexar uma foto nisso aqui? Bom, acho que deu certo. Veja por si só.

Não é exatamente o lugar perfeito pra dançar.

“Eu sei, mas você precisa fazer alguma coisa,” como se isso tivesse lembrado ela, Layla solta a munhequeira de tendinite e dá uma alongada na mão. Fortalecer o pulso tem sido uma questão importante pra ela durante esse ano desenhando paus e copas.

“Eu sei, eu sei,” ela tá certa. Eu sinto meu corpo definhando aos poucos… Mas não é como se ele não estivesse também acompanhando o declínio inevitável da minha mente… E não é como se a minha mente não estivesse acompanhando o declínio inevitável do mundo em que vivemos. O que me faz pensar se o mundo não está acompanhando o declínio inevitável de alguma coisa maior que rodeia ele.

Que existencialista você tá hoje, Alice.

“Enfim, vou tentar amanhã de novo. Uma hora eu consigo.”

“Parece um bom plano,” ela sorri pra mim, finalmente parando por um momento pra me olhar direito sem fazer nada em paralelo. “Você tá bonita hoje.”

Coloco a mão na frente da câmera, revirando os olhos. “Tô nada, eu tô um lixo. Você tá linda, como sempre, mas eu só pioro. Enfim, taí um motivo, talvez eu deva voltar a dançar pra ver se você volta a prestar atenção em mim. E talvez a gente possa voltar a se encontrar, daí.”

Layla franze as sobrancelhas, me fitando com aqueles olhos castanhos enormes.

“Você sabe que não tem nada a ver com isso, Alice.”

“Eu sei, eu sei… Eu só… Queria fugir de tudo isso um pouco. Com você, pra algum lugar. Pra qualquer lugar. Sei lá. Longe daqui.”

“Eu sei, amor… Mas, tipo… Pra morrer? Qual é o ponto?”

“Sei lá… Morrer em algum outro lugar que não aqui?”

“Ai, Alice! Para com isso, você sabe que eu não gosto dessas coisas.”

“É. Sei lá. Enfim, foi mal. Só uma ideia. Eu só sinto que eu tô morrendo aos poucos aqui, sei lá.”

Layla já voltou pro seu desenho, mas ela arrisca um olhar rápido pra câmera. “Eu sei, Alice, eu sei. Mas tá tudo bem, vai passar. Uma hora isso tudo acaba.”

“É, uma hora, acho que sim.”

“Bom, eu preciso terminar esse desenho e ainda falta muita coisa, eu nem terminei de fazer as linhas ainda, ainda tenho que colorir e… Bom, você sabe. Falo com você amanhã?”

“Estarei aqui. Eu acho.”

“Alice!”

“Ok, ok, bom sombreamento de pau pra você. Te amo.”

“Bom sofá com cheiro de pizza pra você. Beijo!”

A Layla não é muito do tipo que aprecia um existencialismo, mesmo que em pequenas doses. Ou talvez ela só não aguente mais. Ou talvez nada disso seja existencialismo mesmo. Sei lá. Cada um lida como pode. Algumas pessoas desenham pornografia incessantemente, e isso ajuda elas. Eu infelizmente não sei nem desenhar uma cadeira.

O que eu sei fazer, na real… Bom, sei lá. Acho que ouvi a porta abrindo, deve ser a tia Chica. Melhor eu clamar o sofá da depressão pra mim antes que a minha energia vital se esgote completamente e eu só consiga escorrer para o chão e ficar lá para sempre, ouvindo os roncos da única esperança da humanidade.

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.