Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
15 min readApr 14, 2021

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III — Supermercado

Eu odeio ir no mercado, mas eu também meio que gosto.

Antes era só uma coisa casual, que eu não particularmente gostava nem desgostava, uma tarefa corriqueira e necessária da vida que eu só fazia, tipo escovar os dentes. Mas nos dias de hoje ir no mercado é estressante ao extremo, e às vezes até emocionante. Não necessariamente do jeito bom, mas quando você tá há um ano presa na sua casa e se sentindo completamente dormente por dentro, qualquer coisa é emocionante do jeito bom. É um jeito de se sentir viva.

Então é isso, eu vou no mercado pra me sentir viva.

A que ponto de desastre entediante nossa sociedade chegou.

Parabéns aos envolvidos.

Enfim.

Parece mesmo o início de um filme distópico. No estacionamento, os carros ficam parados bem longe um do outro (na teoria), e todo mundo tem que seguir pelo mesmo caminho, um corredor longo e tedioso de grades e mais grades, com um simples e fortificado sistema de comportas. Você entra no corredor de ferro, vai até a primeira cabine disponível e fecha a porta atrás de si (trancas automáticas, mas os funcionários têm chaves pra quando a energia flutua). Quando alguém sai do supermercado, a primeira comporta abre, quem estava nela vai pro supermercado, quem estava na segunda comporta vai para a primeira, fecha a porta atrás de si, a segunda comporta abre, et cetera. Dependendo do horário, transforma uma tarefa casual num programa de horas.

E isso num supermercado grande, com estacionamento e poder aquisitivo pra instalar comportas. Nos mercados menores, eles colocam fitas na calçada para criar comportas imaginárias de distanciamento, e torcem pelo melhor. Tem sempre alguém na porta organizando a entrada aos poucos e pronto pra baixar a grade ao menor sinal de mordeção do lado de fora. Esse é o tipo de coisa horrível que fazia sucesso no youtube um ano atrás, quando tudo estava começando, e agora virou tão casual e exaustivo que ninguém nem se dá ao trabalho de filmar. A espera na fila precisa ser atenta, e você sempre precisa ter uma rota de fuga em mente. E a sua arma na mão, claro.

Aliás, quando eu falo arma, eu quero dizer tipo um taco, um cabo de vassoura, algo assim. Os tacos de beisebol são uma exceção: quem tinha ou comprou cedo se deu bem — quando eles acabaram nas lojas, não voltaram mais. Os mais populares foram os tacos do jogo de taco, aquele com as casinhas de três pés e a bola de borracha, sabe? Infelizmente eles não aguentam muito impacto, e muita gente resolveu colocar pregos na ponta, o que além de ilegal não é uma ótima ideia pra madeira compensada. A criatividade do ser humano enveredou pra muitos lados, então é normal ver gente por aí com raquetes adaptadas, pés de mesa e cadeira, escudos de madeira ou de arame, lanças improvisadas, martelos. Na verdade, combinado com a quantidade de equipamentos de esportes que se tornaram itens essenciais de proteção… A vida parece um filme de apocalipse de baixo orçamento com apoio de uma loja de esportes famosa.

É triste.

Não vou entrar na polêmica questão do porte de armas de fogo ou da liberação parcial das armas brancas… Só vou dizer agora que continua sendo crime dar uma facada, arrancar a cabeça de alguém ou dar um tiro, mesmo que essa pessoa seja um mordedor. Você pode usar suas armas em legítima defesa, mas preferencialmente elas têm que ser concussivas, não cortantes ou perfurantes. Isso tudo na teoria, claro. Na prática, ninguém é preso por atacar os mordedores, exceto em flagrante absurdo, mas esse é o tipo de coisa que só se vê em vídeos do youtube hoje em dia. Não vou nem começar a falar sobre os vídeos tipo “Joguei um Mordedor NO BUEIRO!! Veja o que Aconteceu!” porque não vale a pena.

Então aqui estou eu nas comportas, no estratégico horário de logo depois do almoço, esperando a minha vez, olhando por cima do ombro e coberta de equipamentos de esporte. No fim do ano passado, depois de quebrar meu taco de madeira remendado em uma situação desagradável (ele ficou preso numa porta), resolvi investir minhas módicas economias em um bastão retrátil de defesa pessoal. Felizmente eu nunca tive que usar, mas agora eu posso guardar minha proteção no bolso e não ficar presa nas portas quando preciso sair correndo (um problema tão sério e atual quanto patético, eu sei).

Tem só duas pessoas nas comportas da minha frente, e ninguém atrás, o que é um alívio. Eu não confio muito nas portas laterais de saída, já fiquei presa dentro de uma comporta aqui mesmo, ano passado, por quatro horas até alguém vir abrir a porta, período no qual eu acompanhei todo o processo de isolamento e contenção de um mordedor, primeiro pela segurança do supermercado, depois pelas autoridades oficiais. Foi tão desagradável quanto lento, e em nenhum momento eu tive coragem de tirar meu celular pra passar o tempo, pensando que eu tinha que guardar a bateria pro caso de uma emergência. Porque estar presa numa comporta de grades no meio de uma pandemia de Lyssa por horas sem poder voltar pra casa não é emergência o suficiente. Nada como ficar presa dentro de uma jaula pra te fazer sentir viva.

Duas duplas de pessoas saem meio que juntas do mercado (um risco desnecessário e lamentável) com seus carrinhos e acompanhantes, e eu avanço pra comporta final, esperando pacientemente minha vez.

Uma das complexidades da situação é o sistema de duplas. Tecnicamente é muito mais seguro sair em duplas, sempre ter alguém de olho nos arredores enquanto você faz as compras, ou passeia com o cachorro, ou qualquer outra coisa que se faça hoje em dia. A recomendação é fazer todas as coisas em duplas. E isso tem as suas vantagens inegáveis. Mas, como eu disse, é complexo. Minha mãe trabalha o dia inteiro, então não dá pra ela fazer essa tarefa. Meu pai já não ia no supermercado antes de ficar paralisado, e também nunca foi de grande ajuda — ele não sabe nem fazer compras nem ficar de vigia. E o Caio Henrique… Eu amo o Caio Henrique, e justamente por isso eu prefiro vir sozinha. Ele sabe que é importante fazer as coisas em duplas e se oferece sempre que eu tenho que ir no supermercado, mas quando consigo evitar (espero ele estar ocupado pra sair de fininho), eu venho sem ele. Porque honestamente ele é lento demais. Ele se distrai fácil, não é muito atento e portanto não serve de vigia (sem contar que os braços dele de gravetinho não são muito eficientes batendo com cabos de vassoura), e ele é insuportavelmente devagar fazendo as compras enquanto eu estou de vigia. Ele quer olhar os rótulos, procurar a validade dos produtos, pensar, dar voltas, não seguir nenhuma ordem. Então, se é pra eu ficar aflita e cuidar de tudo, sou melhor sozinha. Sou rápida de comprar, tô sempre olhando pros lados e sou pequena e sem dignidade o suficiente pra me esconder em qualquer buraco. E, embora eu esteja passando por um período de pouca inspiração artística, eu ainda tenho pernas de dançarina.

Não estou dizendo que eu sou a máquina perfeita de compras e defesa pessoal, a neo-humana do apocalipse mordedor, mas pelo menos eu sou acima da média.

E o programa todo, que vai de me vestir pra sair até tomar banho depois de fazer as compras, me dá uma carga de adrenalina que faz com que eu me sinta um pouco mais Alice e um pouco menos almofada da sala… Então é meio que o ponto alto da minha vida agora.

Trágico, eu sei.

Quando a comporta abre, eu corro pro carrinho que já escolhi de antemão quando estava dentro da grade. Pego ele num movimento só, empurro pra dentro e já vou pegando as coisas conforme a planta do mercado. Suco nas geladeiras de entrada, pego o sorvete (um pouco derretido é melhor do que nada de sorvete), corro pra pegar manteiga, faço a curva no fim do corredor onde está a cerveja (alguns diriam itens essenciais e outros diriam itens essenciais), pego umas bolachas sortidas, uma pilha de latas, uma barra de chocolate, arroz e feijão, óleo, pão… Mal cruzei com alguém. Olho a fila do açougue. Cinco pessoas paradas ali. Sem distanciamento o suficiente, sem proteção o suficiente… Eu vi uma delas meio que babando? Sem carne mais um dia. Recalculando. Volto, contra meus princípios mas pelas circunstâncias, pra pegar alguma coisa congelada. Uma caixa de hamburguer, uma pizza, aproveito e pego um saco de pão de queijo.

Vou fazendo as contas de cabeça por cima, não muito incomodada porque estou com o cartão da minha tia, que está sendo muito bem paga por instituições privadas pra neutralizar o Lyssa, e que nesse momento é uma boa ajuda nas contas de casa. Aproveito o desvio pra pegar um bolo de pacote que o meu pai gosta, então volto à rota inicial. Tenho quase tudo que eu preciso e mal se passaram cinco minutos. Sinto uma pequena fagulha de vida pulsando dentro de mim. Então me preparo pra seguir pra pior parte, as frutas e verduras.

Paro a uma distância segura para formular um plano baseado na ocupação atual das ilhas. Tem quatro pessoas por ali, o que seria quase no limite de ocupação dessa área, se alguém além de mim realmente se importasse. Elas estão distribuídas, com espaço entre elas… Olho pras outras pessoas por perto. Na minha experiência, com certeza vai encher de gente assim que eu começar. Humanos adoram uma aglomeração.

Primeiro eu pego os saquinhos, então corro pras batatas, pego cebolas e tomates, olho ao redor. Se aquela mulher de verde com o taco de pregos tiver saído dali, pego limões, senão vou pras abobrinhas, pego um pé de alface, uma abóbora inteira… Então corro pras bananas assim que o senhor sem proteção no pescoço sair dali, pego umas maçãs e um abacaxi, e dependendo da lotação volto pra escolher rapidamente um maço de espinafre. Parece um bom plano. Dali, volto pro carrinho e vou direto para o caixa, fecho a comporta e estou segura até estar com as compras embaladas. Tudo certo. A estratégia é muito boa, mas eu sei que tudo tem a possibilidade de dar errado, então fico aberta pra recalcular. A capacidade de se adaptar é a maior arma pra sobrevivência numa situação emergencial como essa. Não se apegar aos planos, mas reagir rápido. A prioridade é sobrevivência.

Eu sinto que esse ano me transformou num daqueles velhos doidos que têm um bunker nuclear em casa abastecido para anos, e vivem falando do apocalipse. Que inclusive devem estar felizes e seguros em seus bunkers, bebendo cerveja quente e falando pra si mesmos que eles estavam certos o tempo todo. Eu, por outro lado, preferiria um milhão de vezes estar errada. Eu só queria ter uma vida tipo normal. Fazer… coisas. Não tentar sobreviver ao apocalipse diariamente, intercalando com longos e tediosos dias presa no meu quarto.

Foco, Alice. Vamos lá.

Deixo o carrinho de supermercado entre as frutas e a geladeira da parede, o que inclusive bloqueia o caminho e impede uma rota de entrada pra a área. Então pego todos os sacos que eu preciso e um a mais (treze total é o que eu tenho à disposição) e inicio a operação vegetais.

O plano começa bem, pego cinco itens diferentes com só uma viagem de volta pro carrinho, mas assim que eu chego nas bananas, as coisas mudam. Vejo pelo canto de olho mais três pessoas entrarem juntas nessa área, ultrapassando o limite mas não sendo paradas por ninguém. As outras pessoas vão se realinhando pra lidar com a lotação. Olho rapidamente pros recém-chegados, e só faço isso pra poder entender qual é o plano deles. São três jovens, dois garotos e uma garota, andando juntos, conversando, um dos garotos sem capacete, o outro segurando uma espada e rindo. Que ideia idiota usar uma espada no supermercado. Até porque a maioria das espadas é só decorativa. A garota está empurrando o carrinho, que está meio vazio: eles acabaram de chegar.

Recalculando. Levo as bananas pro carrinho e decido que preciso priorizar. Não gosto da aglomeração, e sinto uma coisa estranha no ar. A intuição é uma ferramenta muito poderosa pra sobreviver ao apocalipse. Se seu estômago te disser pra não fazer alguma coisa, não faça. Mas o meu me diz que eu tenho tempo pra pegar algumas maçãs, que são a única coisa saudável que o Caio Henrique come, inclusive. Então eu faço justamente isso, paro na frente delas e começo a enfiar várias em um saquinho. Meu objetivo era pegar dez, mas quando eu estou na quinta, sinto uma presença pairando sobre mim. Pego mais uma, jogo no saco e viro, a tempo de driblar a garota recém-chegada, que me olha com uma expressão curiosa, como se eu fosse doida. “Fica calma aí, moça,” ela diz. Mas eu nem me dou ao trabalho, foco em fechar o saco com as maçãs… e quase caio de cara no chão quando um pé surge na minha frente pra me derrubar.

Consigo evitar o pior (mordedores adoram pessoas caídas no chão, mordedores adoram pessoas caídas no chão), mas o saco com as maçãs abre e todas elas se espalham pelo chão.

Lanço um olhar pro imbecil da espada, que finge que não acabou de me passar a perna e ainda tem a cara de pau de perguntar “Tá tudo bem, moça? Tá se sentindo bem?”. Todas as pessoas ao redor olham pra gente, e eu respiro fundo, avaliando a situação.

Por que alguém faria isso? Em muitos casos, o Lyssa em infecções menores, 2m ou 3m, quase não se manifesta, exceto quando as pessoas ficam muito bravas. Ou seja, muita gente é assintomática e só se descobre que estava infectada quando a pessoa tem um acesso de, bom, raiva, e se descontrola num ataque de mordeção. Então, a pior coisa que você pode fazer com qualquer pessoa que pareça saudável é deixar ela brava… É simplesmente uma questão de lógica.

Mas algumas pessoas obviamente são incapazes de pensar de maneira lógica, tanto que acabam trazendo uma espada para o supermercado e vindo em três… Ou elas só são babacas que não se importam, o que parece ser uma epidemia ainda maior que a de Lyssa, igualada somente pela epidemia de ignorância que cria raízes mais fortes a cada dia.

Me recomponho rapidamente, sentindo o rosto ficar vermelho de raiva (não de raiva infecciosa, só daquele aspecto muito comum da condição de ser humano). Como a raiva é um sintoma perigoso, basta alguém sugerir que você está enraivecida para que a segurança venha te retirar e te colocar numa jaula e você pode acabar sendo levada para ser examinada no hospital, onde a chance de infecção é muito maior, tudo isso porque um idiota sugeriu que você estava com raiva depois de passar o pé em você.

Mas eu sou uma sobrevivente em primeiro lugar, e não vou colocar tudo a perder por causa de um moleque estúpido. Pego as maçãs que estão ao meu alcance e sorrio para ele meu melhor sorriso. “Desculpa, amigo, eu tropecei, mas tá tudo bem. Você não se machucou não, né?” Falo em voz alta pra todo mundo ao redor ficar despreocupado. Espero uma resposta dele para baixar os ânimos.

Apesar de ser uma porra de uma pandemia mundial, as pessoas têm pavor de um sentimento de urgência, e preferem agir como se tudo estivesse normal, então é necessário sempre muita cautela em situações sociais hoje em dia. A não ser que você queira ser alvo de um taco com pregos ou uma espada. Estamos sempre a um passo do abismo do linchamento.

“Acho que você tá com muita pressa, moça, mais cuidado aí,” o garoto responde, dando um sorriso convencido. E embora eu fosse adorar responder alguma coisa à altura, eu só sorrio, aproveito que todo mundo está parado onde está pra pegar minhas maçãs no chão e volto pro carrinho com a dignidade ferida mas a saúde preservada.

Sobrevivência primeiro.

Então vou pro caixa, espero na distância adequada, e logo chega a minha vez. Estou quase segura dentro da comporta fechada quando alguma coisa chama minha atenção ali atrás.

“Ei, larga ela, sua doida!”

Viro pra encarar a seção de vegetais (como as mesmas pessoas ainda estão ali — elas não têm senso de autopreservação?), onde a mulher de verde com o taco de pregos na cintura está segurando a garota sorridente pelos ombros, falando alguma coisa pra ela, irritada. A garota tenta soltar a mulher, mas a essa altura eu já prevejo o desastre — a mulher está apertando ela, e tentando empurrar ela pra baixo. E ela não está falando, ela está… abrindo e fechando a boca. E salivando.

Viro pra moça do caixa. “A gente tá com uma 1m ali, liga pra segurança.”

Ela olha pra mim, assustada por trás do seu face shield gradeado e eu aceno com a cabeça pra ela fazer o que eu falei. Enquanto ela, nervosa, começa a pegar o telefone… eu abandono o meu senso de autopreservação junto com o carrinho de compras e marcho de volta pra seção de vegetais.

Tô ligada, tô ligada.

Ao contrário do que se esperaria do senso comum, as pessoas não fugiram… Elas se aglomeraram pra observar a situação. Cara, a gente nunca vai vencer essa merda desse Lyssa, né? Bom, eu sou alguém que pode falar alguma coisa mesmo, né, voltando pro olho do furacão ao invés de ficar segura no meu canto. Pois é.

O garoto de capacete tá parado do lado do carrinho, imóvel, enquanto o cara com a espada é o único próximo da situação, sem saber exatamente o que fazer a não ser gritar “Solta ela sua doida” e balançar a espada de um lado pro outro, bom homenzinho que é.

Encosto a mão no ombro dele, o que faz ele saltar pro lado com um gritinho.

“Fica calmo,” falo, verificando se o meu protetor de antebraço tá bem preso embaixo da blusa. “Não deixa ela te derrubar de jeito nenhum,” digo pra garota sorridente, que assente de um jeito que diz eu tô tentando, porra.

“Solta a espada, vai atrás dela,” falo pra ele, que hesita em receber uma ordem de uma garota equipada de um metro e sessenta. “VAI!”

Ele assente, corre pra entregar a espada pro amigo e vai atrás da garota, que está tentando segurar a mulher, que por sorte não parece forte o suficiente pra derrubar ela, ainda. Talvez ela seja uma 2m e eu esteja enganada. Menos mal. “Qual seu nome?”

“Julia.”

“Ok, Julia, segura os pulsos dela, vai,” falo, com a voz mais calma que consigo e mostro pra ela onde pegar. Ela faz isso, mas o aperto da mulher no seu ombro e roupas não afrouxa. Seus olhos estão cheios de veias vermelhas e a boca abre e fecha devagar. É quase como se parte dela estivesse lutando e resistindo ao ataque de mordeção. Estamos com sorte, por enquanto.

“Beleza, quando eu falar, você vai empurrar os pulsos dela pra fora e pra baixo, e se jogar pra trás. O seu amigo vai te segurar, beleza? Assim que ela soltar vocês correm daqui, e você vai num médico olhar esses arranhões, ok?”

Não espero o ok, só avanço lentamente na direção das duas, e percebo os olhos da mordedora dardejando pra mim… Antes que ela possa mudar de estratégia, estendo meu antebraço com cuidado, mantendo a mão longe do alcance dela, e empurro contra a boca dela devagar. Ela instantaneamente morde, e eu sinto a proteção sendo pressionada contra a minha pele, torcendo com todas as minhas forças pra não ceder.

“Vai, Julia,” digo, e com um pouco de dificuldade a garota sorridente consegue empurrar os braços da mulher e se soltar para trás. Sinto eles se afastando, o olhar da mordedora fixo em mim. Então aproveito pra lançar uma mão atrás do pescoço dela pra fazer uma alavanca, e empurrar com o antebraço ao mesmo tempo. Ela perde o equilíbrio rapidamente e, antes que entenda o que está acontecendo, eu estou sobre ela, empurrando a cabeça com o antebraço e usando as pernas pra restringir os braços.

Queria deixar claro que vocês não deveriam tentar fazer isso em casa. É uma manobra arriscada, idiota, e que exige mais do que tudo sorte. Se a mulher fosse dez centímetros mais alta, teria dado errado. Se ela fosse mais forte, teria dado errado. Se ela soltasse a minha proteção de braço com a boca antes de eu derrubar ela, teria dado errado… Ou seja, é quase um milagre que deu certo. O melhor nessas ocasiões é esperar pela equipe de segurança, se esconder dentro de uma comporta, fugir correndo para algum lugar seguro. Se você tiver opção, faça essas coisas primeiro. Eu não tive opção, porque quando vi já tava fazendo a coisa idiota. Por que eu não sou capaz de deixar as pessoas idiotas serem mordidas é uma ótima pergunta.

Não é a primeira vez que eu faço isso. Embora definitivamente tenha sido a mais fácil. Por sorte. Eu não aprendo. Quer dizer, eu aprendo a fazer essas coisas, no youtube. Mas fora isso eu não aprendo de verdade.

Acho que isso deve ser por causa da minha vontade de morrer em qualquer lugar que não seja dentro do meu quarto, definhando. Ou talvez seja a carga de adrenalina que me faz sentir um pouquinho mais gente… Ou por causa dos aplausos.

Mentira, definitivamente não é por causa dos aplausos. Inclusive eles me irritam. Não vamos falar sobre aplausos, por favor. Nunca. Por favor não aplaudam se vocês virem alguém lidando com um mordedor de maneira adequada.

Mas dessa vez ninguém aplaude, pelo menos. As pessoas só se dispersam, e eu perco Julia e os espadachins na multidão. Continuo segurando a moça no chão, minhas mãos tremendo e o coração sacudindo freneticamente meu peito enquanto aperto a boca dela com meu antebraço, sentindo a pressão dos dentes e torcendo, torcendo, até que finalmente a equipe de segurança do mercado — dois humanos fortes usando armaduras completas com capacetes táticos, tacos pretos profissionais (tacos de lyssa) e armas de fogo na cintura — aparece com suas abraçadeiras pra restringir a mulher, me ajudar a soltar o braço e colocar um restritor na sua boca. Eles não são muito eficientes ou delicados, e eu ajudo como posso pra minimizar o risco à mulher, que continua sofrendo do ataque e sem responder a estímulos complexos. Normalmente crises de 2m duram uma hora ou algo assim.

Nenhum acompanhante aparece, o que significa que ou ela estava sozinha, ou quem estava com ela deu no pé — com sorte, antes de ser mordida. Mas normalmente as pessoas só fogem quando já é tarde demais.

Só volto pro caixa quando finalmente a Contenção chega e remove a mulher com cuidado pra dentro da ambulância/jaula. A essa altura, minhas compras estão todas embaladas e tudo o que eu preciso fazer é passar o cartão. Dispenso a ajuda pra colocar as compras no carro, me perguntando se eles não aprenderam nada, devolvo o carrinho pra fila, passo dez minutos no carro trancado, tremendo e tentando chorar ou gritar, mas nada sai.

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.