IV — Voltas no Quarteirão

Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
6 min readApr 23, 2021

Dirijo de volta no fim de tarde, ouvindo os trovões que anunciam uma tempestade de fim de verão.

Eu não ligava muito pra dirigir até o Lyssa, mas a possibilidade de me movimentar um pouco pra além dos metros quadrados limitados da minha vida deu um novo significado pra coisas casuais como essa. Infelizmente, como a gasolina parece estar cada vez mais cara, só dirijo quando é estritamente necessário sair pra alguma coisa. Vez ou outra, se eu estou me sentindo mais pior (sim, mais pior, porque só pior é um estado básico agora, e eu falo do jeito que eu quiser), arrisco dar algumas voltas a mais no quarteirão pra ver a paisagem em movimento e desanuviar um pouco a cabeça.

Não que a paisagem do meu quarteirão seja linda, mas pelo menos ela não é o teto do meu quarto.

É numa dessas voltas que eu vejo o Thiago. Ele tá passando de skate pela rua de trás, levando uma sacola de compras e tentando evitar contato visual com um mordedor na esquina da frente, que tá deitado na calçada de um jeito que seria poético se não fosse trágico. Paro o carro do lado dele e abro uma frestinha na janela.

“Tá limpo?”

Ele olha pra mim com estranhamento. “Oi?”

“Você foi mordido ou tá infectado?”

“Alice? E aí, beleza?”

“Sim ou não?”

“Não, cara, quê?”

Abro a porta pra ele. “Entra aí.”

“Oi?”

“Mano, só entra, eu já passei três vezes nessa rua, aquele ali tá só esperando alguém passar pra correr atrás… Você pode até fugir dele, mas não sem largar o skate ou derrubar as compras. Entra aí, vai, tô indo pra casa.”

Ele olha pra frente, olha de volta pra mim, olha pro céu, como se tivesse todo o tempo do mundo, então entra no carro e fecha a porta soltando a alça do capacete. “Beleza, valeu.”

O Thiago mora no mesmo prédio que eu. Ele é mais ou menos da minha idade e a gente brincava junto no prédio quando era criança. Depois que a gente cresceu e parou de brincar lá embaixo, a gente nunca mais conversou, tirando umas conversas ocasionais de elevador. Ele cresceu pra se tornar alguma coisa que eu não faço a menor ideia do que é, com cabelos cacheados, barba mal-feita e uma cara de bobo, e eu quase não cresci pra me tornar eu, essa garota revoltada presa em casa salvando gente no supermercado. Tipo isso.

Examino ele rapidamente e, apesar de desprotegidos, os braços e o pescoço dele parecem seguros e sadios.

“Sem falar que vai chover,” digo, saindo com o carro de novo.

“Ah, pode crer,” ele parece um pouco distraído. “Você cresceu ou é impressão minha?”

Olho pra ele um pouco surpresa. “Oi? Tipo agora?”

“Não, tipo em geral… Você era mó baixinha, parece mais alta agora, sei lá.”

“É, depois que eu fui mordida eu cresci uns vinte centímetros.” Ele arregala os olhos, processando a informação devagar… “É brincadeira, cara, eu não fui mordida. É só o carro que é grande. Eu continuo medindo um metro e sessenta.”

“Ah,” ele abre um sorriso bobo, mais confortável, e tamborila os dedos na janela. “Pode crer. Pode crer.”

“Pode crer.”

Seguimos em silêncio, passando pelo mordedor da esquina.

“E aí, o que você tem feito? Como tá a vida?”

Olho pra ele, sem ter certeza se foi ele quem desaprendeu a conversar ou se fui eu. Provavelmente ambos.

“A vida no inferno cotidiano? Nada mal, nada mal… Tô trancada no quarto há um ano, meu futuro parou de fazer sentido, meu corpo e minha mente estão numa corrida pra ver quem atrofia primeiro… Minha alma em algum momento se jogou da janela… E, ah, hoje eu lutei com uma mulher no supermercado… Então, bom, não posso reclamar, tudo dando certo por aqui.”

Thiago balança a cabeça devagar, com uma expressão atordoada.

“Foi mal,” digo. “Tô tendo um dia ruim. Nem lembro como se conversa com as pessoas também.”

“Não, cara… Tudo certo. Eu tô ligado. Eu super me identifico com o que você falou, na real. Tá foda mesmo. É como se o mundo tivesse quebrado no meio e as pessoas continuassem tentando viver como se nada tivesse acontecido, sei lá…” Ele faz uma pausa, fitando alguma coisa lá fora. “Tipo, sabe aquele prédio marrom do outro lado da rua? Então, tem um cara lá que sai todo dia pra trabalhar de manhã cedo… Eu vejo porque eu tô sempre acordado quando amanhece… Bom, ele antes saía de terninho naqueles patinetes elétricos, manja? Enfim, agora ele sai todo dia de terninho, só que com uma moto gradeada… É tipo, quando que isso virou uma coisa normal? Que tipo de trabalho que um cara de terninho numa moto gradeada precisa fazer num mundo como o nosso? Sei lá, tá tudo tão virado do avesso…”

Bom, a boa notícia é que não sou só eu mesmo quem esqueceu como se conversa. A má notícia é que tudo isso meio que faz sentido também.

“Talvez ele seja tipo um agente do governo, com umas lousas cheias de foto, sabe, tentando pegar a facção criminosa que tem operado das sombras e usado mordedores como capangas… Desculpa, sei lá, minha mente tá quebrada, eu tô vivendo nas ruínas dela.”

“Não,” ele responde, não abalado pelo desastre que é minha cabeça agora. “Tô ligado… Mas eu acho que ele é muito magrinho pra ser um agente do governo… E eu tenho certeza de que ele tá sempre de sapatênis…”

“Ah. É, deve ser algum trabalho de economia idiota.”

“Tipo isso. A gente tá indo pra algum outro lugar?”

“Ah, foi mal, eu às vezes dou umas voltas no quarteirão a mais pra me distrair, nem percebi… Vou dar a volta. Enfim, sem falar que a gente nem tem governo, então agente do governo é um conceito absurdo.”

“É, foda-se o governo.”

“Foda-se o governo real.”

“Quer dizer, não foda-se o governo conceito, mas só o governo que a gente deveria ter e não tem,” ele faz um gesto vago com as mãos. “Só pra deixar claro. Que eu não sou ancap e tal.”

“Ah, é, esse seu tênis de skate tava me passando total uma vibe de ancap.”

“É, esse sou eu, mesmo. Agora você sabe meu segredo terrível.”

“Eu deveria só te largar aqui na rua pra ser atacado por mordedores.”

Ele pensa um pouco enquanto passamos de novo pelo mordedor da esquina, que estende um braço preguiçoso para nós, rosnando do fundo da garganta, ou talvez mais pra ronronando. “Seria um fim digno, na real… Você sabia que os, hm, você sabe, originais, tinham toda uma metáfora pra sociedade do consumo e os medos da burguesia e… Bom, sei lá, alguma coisa assim.”

“Alguma coisa assim…”

“É… Sei lá, talvez os mordedores de agora sejam uma metáfora maldosa pra nossa sociedade onde as pessoas são deixadas à margem quando não se encaixam num padrão de perfeição e querem infectar os outros com sua… raiva? Sei lá, só uma ideia idiota. Parecia melhor na minha cabeça. Tem a burguesia em algum lugar dela mas eu ainda não descobri onde.”

Thiago está com a cabeça apoiada no vidro, olhando hipnotizado pra paisagem passando pela janela devagar: os prédios, os postes, o orelhão quebrado, as lixeiras lotadas… Toda essa melancolia abandonada ao som de uma tempestade iminente típica de março. Um lembrete geral de que a gente não importa nem um pouco. Mais um lembrete, aliás. Só mais um.

“Se pá a metáfora somos nós, e não os mordedores,” digo. “Tem algo aí sobre como a gente se isola e se prende… Ou talvez a metáfora seja pra uma sociedade que teve a cabeça cortada e continua andando por aí como uma galinha teimosa? Sei lá.”

“Não, não, isso é bom…” Ele contempla a ideia gesticulando de um jeito abstrato. “Quer dizer, a cabeça que foi cortada é a falta de liderança que é substituída por um corpo que anda sozinho e continua fazendo o que estava fazendo antes, andar pra frente sem direção… Ou é uma metáfora pro fato de que a sociedade como um todo faz as coisas sem pensar e só quer morder e espalhar a sua raiva pros outros, andando a esmo na ignorância?”

“Você tem conversado com o Feliz também, né?” Pergunto.

“É… Eu às vezes ficando andando pelo prédio de madrugada.”

Dessa vez eu faço a volta pro lado certo e estamos seguindo na direção da garagem triplamente gradeada do prédio. Ficamos em silêncio por um tempo, pensando.

“Escuta, Alice… Cê quer ficar bem louca?”

Olho pra ele enquanto espero uma grade fechar e outra abrir.

“Tipo mais do que a gente já tá?”

“Tipo do jeito que se ficava antes dessa merda?”

Eu normalmente seria contra isso numa situação assim por milhares de motivos de segurança… Mas a verdade é que eu já tô meio morta mesmo, então por que não?

“Bora.”

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.