Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
14 min readJun 18, 2021

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IX — Levando para Passear

No meio do ano passado, quando as coisas pareciam estar indo de mal a pior (estavam), o Caio Henrique descolou um bico com algumas pessoas aqui do prédio:

por um precinho camarada, ele levava os cachorros delas pra passear pelo quarteirão alguns dias por semana. Claro que quando eu digo que ele levava os cachorros pra passear eu quero dizer que eu levava ele pra levar os cachorros pra passear, porque afinal de contas, qual a chance do Caio Henrique sair na rua desacompanhado e voltar sem que ele e o cachorro tenham sido mordidos por um cachorro, por um mordedor, ou por um cachorro mordedor (sim, infelizmente)?

No fundo era bom, porque ajudava um pouco na economia doméstica e obrigava a gente a sair na rua, respirar um pouco de ar puro (sic) e tomar sol. De modo geral, com a minha prontidão e a disposição do CH de catar merda de cachorro e buscar e trazer os bichos na porta do apartamento dos donos, nós nunca tivemos problemas mais que um pouco inconvenientes. Mas com o fim do ano e o otimismo bastante infundado das instituições que puxam as cordinhas, as pessoas voltaram a sair por conta própria com seus cachorros e o pequeno plano de negócios do meu irmão foi por água abaixo.

Mas, ocasionalmente, quando as coisas ficam Realmente Feias, do tipo que a tevê diz: tudo está Realmente Feio e Ficando Ainda Pior, a caixa de mensagens do CH enche de pais e mães de pets dando desculpas esfarrapadas (tenho uma reunião, meu filho pegou uma gripe, minha vó está com uma dor nas costas Daquelas) e clamando pelos nossos serviços.

E então eu e meu fiel escudeiro tomamos as ruas do quarteirão para prestar esse Serviço Essencial à nossa pequena comunidade de unidades verticais.

As vítimas de hoje são um border collie do terceiro andar, chamado Rufus, e um shih-tzu com vira-lata na família, que a gente chama de Cheetos. Um cachorro hiperativo e um super pentelho. Uma combinação que não devia fazer duplinha, mas como vai chover daqui a pouco a gente aceitou fazer uma corrida super rápida com eles.

“Isso é cachorramente impossível, cara… Sem condição.” Caio Henrique olha perplexo para a terceira pilha de presentes deixada pelo Cheetos, enquanto o Rufus vai se enrolando com a coleira ao redor de um poste.

Eu tô no meio da rua, só de olho naquela mordedora no fim do quarteirão, parada em pé. Às vezes isso acontece mesmo, os mordedores vão ficando sem energia porque não comem há dias (eles só mordem as pessoas, não mastigam), e aí eles só ficam parados e parados, até que uma das duas coisas vença: a exaustão ou o sistema imunológico. No primeiro caso, já era, e em algum momento, com sorte, o serviço de recolhimento vai passar pra apanhar o corpo na rua. No segundo caso, dependendo dos efeitos colaterais, a pessoa tenta voltar pra casa ou achar alguém disposto a telefonar pra família dela. Só mais um dia normal no pior apocalipse de todos os tempos.

Havia um tempo em que existia um serviço só pra ajudar nisso. Mesmo que falho, era melhor do que nada. Agora, com a quantidade de casos explodindo os gráficos dia após dia, as autoridades simplesmente fazem ¯\_(ツ)_/¯.

Realmente faz você pensar no papel que as instituições ocupam na nossa vida, e no papel que elas deveriam estar ocupando.

Se eu pareço amarga, acho que é porque você não tá prestando atenção.

Não que dê pra culpar ninguém por não prestar atenção numa época em que prestar atenção em qualquer coisa dói.

Infelizmente não tenho a capacidade de não prestar.

Mas já faz um ano disso, então não é que eu esteja sofrendo em particular… É só um estágio da vida agora. Um estágio além do alguém me mata agora, e mais perto do bom, acho que é isso mesmo, nada a ser feito… O futuro não existe e o resto sei lá. Vamos lá, uma respiração de cada vez.

“É seu aniversário daqui a pouco, não é?” Caio Henrique interrompe meu curto devaneio, estendendo sua coleção de cocô de cachorro ensacado na minha frente. Levanto uma sobrancelha pra ele e volto ao meu trabalho de vigiar a rua. “Não, pô, sério,” ele diz, tentando desenrolar Rufus do poste ao mesmo tempo em que impede o Cheetos de mastigar um canteiro de planta. “Eu sei que é, tô só puxando assunto. Eu sei até que dia é.”

“A-hã.”

“Bom, eu vou continuar falando como se você tivesse me respondido que nem gente… Né, Cheetos, né, amigão?” Ele finalmente recupera o controle dos cachorros, ajeita seu protetor de pescoço e nós continuamos pela rua meio deserta. “Tipo, sei lá, tava pensando que a gente podia fazer alguma coisa, de repente.”

“Ah, claro,” falo, revirando os olhos pra ele. “De repente a gente pode ir num parque aquático, ou então assistir um show e depois ir num rodízio japonês. Acho que a gente deveria convidar todos os meus amigos, então. Ótima ideia.”

“Iiiih, já vi tudo, amigão,” ele fala com uma voz boba pros cachorros. “A tia Alice tá naqueles dias…”

Eu… juro que às vezes tenho que me controlar pra não ir até o fim da rua, pegar a mordedora pela mão e levar ela pra dar um abraço cheio de dentes no meu irmão. Sem dúvida ele merece, às vezes. No meio de uma situação de vida ou morte dentro do apocalipse diário e hiper-estressante em que a gente vive, ainda ter que ouvir do machinho do meu irmão que eu estou naqueles dias — o que eu não estou, obrigada por não perguntar — é o fim da mordida, não é mesmo? Mas, como eu disse, já passei de todos os estados que não são A Mais Pura Aceitação do Inevitável. “Caio Henrique, você é uma pessoa muito merda.”

“Mano, relaxa aí,” ele começa a gracejar, mas é interrompido pelo latido do Cheetos, alto e irritante. “Eita, fica calmo aí amigão, fica calmo… Pois é Rufus, todo mundo fala que quanto menor mais raiva acumulada… Por isso eu e você temos que ser o caras tranquilos aqui, né?”

Rufus concorda enfaticamente, dando uma volta ao redor dele, que fica com o braço cruzado atrás das costas e tentando se desenrolar.

Observo a direção em que o Cheetos tá latindo, um monte de saco de lixo entre duas casas, mas não parece ter nenhuma ameaça ali. Olho pro céu ficando cinza e faço sinal pro Caio Henrique continuar seguindo.

“Enfim, como eu tava falando, dona Alice, e tentando ser legal… Tinha pensado na gente fazer um jantar em casa, em família… De repente abrir um vinho, a gente canta umas músicas no karaokê… Essas coisas.”

“A gente não tem karaokê, cara.”

“Cara, certeza que tem um aplicativo, isso é o de menos. Se liga, a mamãe e o papai e a tia Chica tão precisando se divertir um pouco, e a gente também na real, aí pensei que seria legal… Sei lá, foi só uma ideia. Pra gente agitar as coisas. De repente, se liga — baita ideia -, se liga… De repente a gente faz uns brownies aditivados e não conta pra ninguém… Baita ideia, hein?”

“Ah. Sabia que essa conversa tava indo pra algum lugar, seu mané. Você nem fodendo pensou isso agora.”

“Não… Mas também não não.” Ele dá uma piscadinha satisfeita.

“Que expressão idiota, não faz o menor sentido.”

“Aff, Alice se liga. Mas pensa, se elas já tavam rindo das pirocas aquele dia bebendo um vinho, imagina todo mundo chapadão… Papai vendo tevê e falando umas merdas… Abraçando a Layla e falando você é a melhor nora que eu já tive…”

Não usem drogas, crianças, vocês vão acabar delirando que nem o meu irmão. “Isso é zero por cento o que aconteceria numa situação dessas. Eles só iam falar mais merdas e todo mundo ia acabar se sentindo uma merda.”

“Não sei não, você não tá levando em conta o karaokê, o clima de festinha… Só pensa nisso, vai ser maneiro.”

Garanto pra ele que eu definitivamente vou pensar nessa ideia absurda enquanto ele apanha o presente número quatro do Cheetos. “Porra, amigão, na moral? Que estômago nervoso que cê tem hein… Vou começar a cobrar por cocô da sua mamãe, vou sim…”

Ando um pouco mais pra frente na rua, atenta na mordedora que agora sentou. Quando eles ficam parados é que eles são mais perigosos, porque é quando a gente presta menos atenção neles… E a gente nunca sabe quando um vai ter um surto de energia e correr pra tentar morder alguém. Então eu mantenho meu bastão retrátil à mão, porque vai quê.

“Vamo dar uma volta pro outro lado,” digo, quando nos aproximamos da mordedora perto da esquina. É melhor dar uma volta maior do que correr o risco de levar um irmão ou um cachorro mordido de volta pra casa.

Ao invés de protestar, Caio Henrique só concorda. “De boas.” Acho que ele tá ficando maluco com a vida dentro de casa mesmo. “Sabe aquela mina da minha sala, a Tainá?”

Vou contornando a rua com ele, sem tirar os olhos da mordedora. Ela parece ter uns cinquenta e poucos anos, tem o cabelo longo todo bagunçado, tá usando um vestido que parecia de boa qualidade mas que agora tá todo esgarçado e cheio de sangue nas mangas… A perna dela tem um machucado feio, do tipo que parece infectado, mas infelizmente não tem nada que eu possa fazer em relação a isso. Só fico olhando com um misto de cautela e pena.

“Tainá é aquela mina que tem o cabelo azul?”

“Não, essa é a Jade. Tainá é a que joga futsal.”

“Mano, isso pode ser qualquer mina.”

“Não, é uma que joga futsal mó bem, que fica andando de joelheira pra cima e pra baixo…”

“Ah, a mina do binóculo.”

“Não, a mina do binóculo jogava vôlei, e ela nem é do meu ano. Não… Bom, foda-se, a Tainá. Não importa. É uma mina da minha sala. O que importa é que ela fez uma festa na casa dela semana passada. Pra cinquenta pessoas. Cinquenta. Pessoas. Na casa dela. E todo mundo colou.”

É foda, pleno apocalipse rolando nas ruas e a galera fazendo festa pra cinquenta pessoas. Não que eu não pudesse matar pra poder ir numa festa… Mas eu não mataria ninguém literalmente. Não quero matar ninguém, nem infectar ninguém e nem ser infectada. Então, bom, iei, que bom pra mim que eu consigo colocar o bem-estar da humanidade antes do meu. Isso me rende mais tempo de existencialismo barato e sofrido no meu quarto, e menos convites pra festas às quais eu não iria de qualquer jeito.

“Mano, tem que ser muito escrota.”

“Real… E quem colou também, né? Bem que eu queria ir, mas né… Porra, foda. Cinquenta pessoas. O Ruas colou.”

“Tá de sacanagem.”

“Tô nada, ele foi mesmo. Mandou um foda-se lindo. Falou que ficou só no cantinho, todo de EPI, mas duvido. Mas é que ele é amigo do irmão dela, né.”

“Ah, a Tainá é a irmã do César, pode crer.”

“Isso, ela mesma. Eu esqueço que você conhece ele. Eu esqueço que todo mundo se conhece hoje em dia.”

“Eu não conheço ele, Caio Henrique, eu sei quem ele é, é diferente.” Só um cara aleatório que estudava na escola um ou dois anos mais novo que eu. Se eu sei a cara e o nome dele, é muito.

“Enfim, foi isso. Festinha top. Todo mundo postando stories no insta, mandando o foda-se legal… Semana que vem tão na praia, é isso.”

“Nossa, como eu queria tar na praia.”

“Total, mano,” ele fala, e nós andamos em silêncio ao eco disso, como se tivesse sido uma coisa profunda a se dizer, sobre a qual muita reflexão fosse necessária. “Ou, a banquinha ali tá aberta, vamo passar ali?”

A gente tá prestes a virar e ele tá apontando a banca na outra direção, perto do mercadinho. Não tem ninguém na rua, exceto um carro vindo lá longe, mas mesmo assim. “Pra quê cê quer passar na banca, mano?”

“Sei lá, pra fazer alguma coisa? Falar com o tiozinho?”

“Não, mano, vambora.”

“Não, na moral, Alice, vamo lá. Vamo viver um pouco perigosamente e passar na frente da banca, deixa de ser medrosa. É só meio quarteirão, depois a gente volta.”

Vamos viver perigosamente. Passando na frente da banca. Durante a tarde. Levando os cachorros dos vizinhos pra passear.

Não existe realidade mais patética do que essa em que a gente vive.

“Beleza, vai.”

“Bora, matilha!”

E a nossa matilha anda os trinta passos que faltam pela rua vazia até a banca, chegando lá mais ou menos no mesmo tempo em que o carro vindo do outro lado, um desses pequenos e vermelhos, passa olhando pra gente. Encaro de volta mas ele não para. Só uns caras sem equipamento e de janela aberta. Mais do mesmo.

Caio Henrique chega perto da banca gradeada. “Daê, tio, beleza?”

A situação toda é tão bizarra… As bancas de jornal costumavam… Sei lá, não parecer um forte gradeado pra se proteger do apocalipse, o que eu suponho que elas sejam agora. Não tem entrada, só muitas grades pelas quais dá pra ver o que tem disponível do lado de dentro. É como eu imagino que deve ser de repente uma loja de arma? Tem uma pequena fileira na frente com jornais e revistas, mas todo o fundo da banca tá cheio de coisas que você poderia precisar em um apocalipse e adoraria que tivesse alguém vendendo convenientemente numa esquina. É quase, quase, como se a gente vivesse no cenário perfeito pra algum jogo de videogame, mas que não tem graça nenhuma porque a vida é real e os riscos são reais. Mas as bancas também são reais: elas vendem facas, bastões, fósforos, protetores de pescoço, carregadores de celular, barrinhas de cereal, remédios que não precisam de receita, chocolate, chiclete, soco inglês… Além do de praxe: jornal impresso, revistas de viagem antigas, álbum de figurinha, palavras cruzadas.

O momento é tão poético/patético que eu quebro uma das minhas regras e pego o telefone pra tirar uma foto. A beleza do apocalipse cotidiano. Ou tipo isso. Aprecie minha tragédia pessoal.

“Não tem mais taco, rapaz,” responde o tiozinho.

“Não, que isso, tio, quero taco não… Tô só dando uma olhada…” Ele gesticula pra mim e eu, relutante, pego as coleiras dos dois cachorros enquanto ele abaixa pra dar uma olhada. “Quanto que tá essa palavra cruzada aqui?”

O tio da banca responde alguma coisa que eu não ouço, porque os dois cachorros estão latindo pra rua. Fico atenta, lançando um olhar de relance pro CH se apressar. “Pô, tio, dez é caro… Aposto que não tá vendendo muito, não faz por cinco?”

“Porra, Caio, Henrique, vai extorquir o tio da banca?”

“Não se mete, Alice, fica na sua aí. E então, tio? Minha mãe adora esses letrão…”

Seguro com mais força a coleira do Rufus, que tá latindo um monte, se sacudindo de um lado pro outro, enquanto o Cheetos rosna um pouco hesitante. Alguma coisa parece errada. “Caio Henrique, vambora, vai.”

“Calma, Alice, guenta aí um pouco. Cê tem carregador de iphone? Do velho, não do novo… Aquele menorzinho assim, sabe?”

Olho pra trás pra brigar com ele, mas o Rufus dá uma puxada forte na coleira, lutando pra ficar de pé, e eu quase caio pra frente com o tranco. Se o meu centro de gravidade fosse um pouquinho mais alto, já era… Por sorte eu tenho a altura que tenho e pernas fortes.

Mas os dois cachorros estão fixados na rua de trás, logo de onde a gente veio, o Rufus latindo e latindo, e o Cheetos estranho. Mas não vejo nada lá. Na verdade, a rua tá completamente vazia, exceto por nós e o tiozinho da banca.

É o cenário perfeito pra dar tudo errado.

“Caio Henrique — ”

“Relaxa, relaxa aí. Ó, tio, o carregador do iphone vinte e o letrão na amizade pra eu levar pra minha mãe que trabalha no hospital se arriscando todo dia, pode ser?”

O tio da banca deve concordar de alguma forma, porque o CH vira pra mim e fala: “Ô, Alice, me empresta o seu cartão aí.”

“Nem fodendo, vambora agora.”

“De boa, de boa,” ele fala, aproveitando que eu tô com as mãos ocupadas e enfiando a mão no meu bolso de trás pra pegar. Fico tentada a me esquivar ou dar uma cotovelada nele, mas não faço com medo de perder a pegada nos dogs. “Vou usar o da tia Chica, fica de boa. Aqui, ó, tio.”

Aqui, ó. Bem na hora em que o motivo da loucura dos nossos amigões vira a esquina. Aperto as coleiras com força e me preparo pra correr com tudo o que eu tenho, levando o Caio Henrique e os dois cachorros debaixo do braço se precisar.

Mas é só um cara andando com o cachorro. Um cachorro enorme, desses que são o terror de pessoas baixinhas que nem eu, mas que fareja o chão despreocupadamente, enquanto seu dono, sem nenhum equipamento de proteção exceto um taco de beisebol, anda pela calçada olhando o celular.

Eu juro que esse apocalipse ainda me mata de nervoso.

“Aí, ó, falei? De boas.” Caio Henrique enfia o cartão de novo no meu bolso, agora segurando uma sacolinha com suas compras recentes. Entrego os cachorros de novo pra ele, e ele faz força pra puxar os dois na direção contrária.

“Cê precisava mesmo parar pra comprar um carregador vagabundo de celular? E a mamãe nem gosta de palavras cruzadas.”

Ele faz um gesto vago com as mãos. CH é cheio dos gestos vagos. “Alice, você não entendeu nada. Não é pelo produto, não é pela compra… É pela emoção da barganha. A interação social, o conflito… É sobre me sentir vivo. O tiozinho também sentiu, ele até me agradeceu com o olho brilhando no final, colocou umas balinhas na sacola. Isso foi vida, mulher, vida!”

Olho pra cara de bobo dele, mas a real é que eu não posso falar nada. Eu meio que sei como é, e a essa altura a gente faz o que pode. Se essa interação de risco médio-baixo serviu pra fazer meu irmão um pouquinho mais pessoa e menos controle de videogame… Então bom pra ele?

Um clarão forte seguido de um trovão lembra a gente da nossa posição precária. A gente se apressa pra correr pro outro lado da calçada e, escapando do homem sem proteção e do seu cachorro, voltamos arrastando o Rufus pela rua vazia. O cara nem olha pra gente, e nem pra nada, fica o tempo todo parado perto da esquina, de olho no celular. O vento começa a sacudir as árvores da rua, deixando de ser uma ameaça velada e ficando mais parecido com gritos irritados das nuvens. Eu pego o Cheetos no colo e apresso meu irmão, que mostra uma força surpreendente pra arrastar o Rufus, considerando os palitinhos de picolé que ele tem no lugar dos braços. Ou talvez o Rufus só goste mais dele do que de mim.

Sinto as primeiras gotinhas de chuva quando chegamos na rua de casa correndo. A essa altura o vento e os trovões fazem questão de me lembrar o quão pequena eu sou, e eu abaixo a cabeça e aperto ainda mais o passo pra chegar no portão. Assim que a porta abre, escuto o Caio Henrique gritando e meu sangue congela.

A mordedora da esquina.

É claro que você vacilou, dona Alice. Bem na hora que não podia.

Viro pro lado, a chuva grossa apertando e dificultando entender o que tá acontecendo, e meu peito dá um nó quando vejo o CH caído no chão. Jogo o Cheetos pra dentro do portãozinho de qualquer jeito e disparo pra lá, mas quando chego ele já tá ficando em pé, completamente encharcado.

“Cê tá bem?” Tenho que gritar por cima da chuva martelando em cima da gente.

“Tô! Eu só escorreguei!”

“Beleza, vamo lá!”

Começo a puxar ele, mas ele não se mexe. “Não, cara! O Rufus!”

Então eu percebo que ele não está mais segurando a coleira.

Poxa, amigão.

“Fudeu, Alice, fudeu!” Ele começa a sacudir os braços, e fala alguma coisa que é abafada por um trovão. Tento localizar o nosso amigão no meio da água, mas é difícil até enxergar qualquer coisa no meio do temporal.

“Calma, Caio Henrique, calma!” Começo a puxar ele, e dessa vez ele cede. “Vamo pra dentro e a gente pensa!”

Ele vem, protestando mas vem, e logo a grade já tá abrindo pro coberto. Empurro ele pra dentro e tiro um pouco o excesso de água do rosto. Meu irmão parece meio pálido.

“Cê tá bem?”

“Tô, só tomei um capote,” ele diz, mostrando o cotovelo ralado, o sangue misturado com água e com pedacinhos de pedra da calçada. “Não foi nada.”

Por tudo que é sagrado e nem existe… Ainda bem. Ainda bem que meu irmãozinho não foi mordido quando eu falhei em proteger ele.

Então eu escuto um latido vindo do lado direito, de fora, que com certeza é do Rufus. Uma, duas, três vezes, abafado pela água da chuva. Troco um olhar com meu irmão.

“Fica aí que eu já volto!”

“Alice…”

“Não, fica aí que você é alto e atrai mais raio!”

Então eu fecho o portão interno pro nosso porteiro poder abrir de novo o externo e sinalizo pra ele que eu vou sair. Mais um trovão me adverte de que essa provavelmente não é a melhor ideia. Como se eu não soubesse. Mas não tem jeito. Não vou deixar o Rufus na rua no meio dessa tempestade.

O portão abre.

Meu coração dispara.

Respiro fundo.

Vai, Alice.

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.