V — Uma metáfora pra alguma coisa

Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
9 min readApr 28, 2021

Eu deixo as compras em casa, guardando só o que é essencial

de guardar agora (tipo o sorvete já todo derretido da minha aventura no supermercado e das voltas no quarteirão), e deixando o resto pro Caio Henrique se virar depois. Meu pai tá deitado na poltrona da sala, assistindo algum filme na tevê.

“Pai, eu vou ajudar o Thiago do 12 a consertar uma grade da porta dele agora, ok? Não sei que horas eu volto, mas vou estar aqui no prédio e qualquer coisa só me ligar.”

Meu pai não tira os olhos da tevê, então demora um pouco pra ele assimilar e franzir a testa.

“E desde quando você sabe consertar grade, Alice?”

“Não sei, mas vou ver se aprendo. Não é como se eu tivesse nada melhor pra fazer mesmo, então…”

“É, não é mesmo. Quem sabe você não aprende alguma coisa e arruma um emprego, ao invés de ficar aí pelos cantos…”

“Aí pelos cantos fazendo supermercado e almoço, você diz? Pode crer. Lavando roupa também. A louça. Passando pano na casa. Aspirador. Essas coisas. Pelos cantos.”

“Não seja dramática, Alice. Isso aí não é nada demais. A sua família precisa é de capital pra fazer supermercado e almoço e todas essas coisas, e você já tem mais que idade pra ajudar com isso. Acho que ia fazer bem pra você fazer alguma coisa e ocupar a sua cabeça… Ia te deixar mais calma.”

Infelizmente eu já passei do estágio de não acreditar no que estou ouvindo, então eu só viro as costas e saio sem falar nada. A minha vontade é de bater a porta, mas não sou eu que vou dar argumentos pra ele falar que eu estou descontrolada. Então fecho ela devagar, respiro fundo, estrangulo mais um grito dentro de mim e entro no elevador, trancando a grade da porta e apertando o 1.

Thiago abre a porta já me estendendo um copo alto cheio de uma bebida vermelha.

“O que é isso?” Pergunto, sentindo o cheiro doce de açúcar, melancia artificial e álcool.

“Vodka com suco de pozinho. Eu odeio pura. Mas se você não gostar tem outras coisas.”

Ele abre espaço para que eu entre. Encolho os ombros, bebo um gole da coisa horrível e passo pra dentro do apartamento. A planta dele é espelhada da minha, mas o apartamento é bem diferente. O chão é daqueles tacos antigos, e logo na entrada tem uma mesa de jantar de vidro. Atrás, uma sala com uma tevê e dois sofás em L, um pufe no chão e cortinas pesadas na janela. O apartamento parece que não toma sol há muito tempo, e também que não vê uma faxina desde antes da pandemia.

Em cima da mesa de jantar tem várias bebidas diferentes, alguns copos e um balde de plástico cheio de gelo. Vou até ali para examinar as garrafas enquanto ele passa todas as trancas na porta.

“Pode tirar essas coisas, se quiser, não tem ninguém aqui, só eu,” ele fala, gesticulando pros equipamentos de proteção. Eu deixei o capacete em casa, mas fiquei com as proteções na calça e embaixo do moletom, nos antebraços e no pescoço.

“Nah, de boa, me sinto melhor assim.” Digo, mas tiro o moletom e fico só de regata. Tá muito calor, e às vezes eu esqueço como é me sentir fresca, e não só bem protegida.

“Beleza,” ele passa por mim, apontando as garrafas. “Tem uísque, rum, vodka tem duas, essa meia garrafa de gim aqui… Tem cerveja na geladeira, mas não tá gelada ainda, acabei de colocar umas no freezer, e se você quiser acho que deve ter uma garrafa de vinho em algum lugar.”

“Você tipo assaltou um bar?”

“Mais ou menos. Aquele bar ali,” ele aponta um móvel atrás da mesa de jantar. “Relíquias pré-Lyssa.”

“Pode crer.”

“Você tá bem? Tá com uma cara de meio puta, foi o suco na bebida?”

“Quê? Ah, não, só…” Faço um gesto vago com as mãos, nem sei. Puxo uma das cadeiras velhas da sala e sento na mesa, apoiando todo o corpo nos cotovelos e percebendo o quanto tudo pendurado em mim pesa. “Sei lá, meu pai, só. Ele é um babaca, às vezes. Enfim. E eu tenho pena dele também, deitado no sofá o tempo inteiro e… Sei lá. Posso falar uma coisa horrível?”

Ele senta de frente pra mim e coloca uma dose de rum na sua bebida. Estendo o copo pra ele e ele mistura na minha também.

“Agora pode,” ele fala, com um sorriso meio torto. “Fala a coisa horrível.”

“Sei lá, é bem horrível. Eu… Ah. Bom, ele foi mordido faz uns meses, no trabalho… Que todo mundo tava falando pra ele não ir, aliás. Enfim, a gente achou ele umas semanas depois, na rua, eu e o Caio Henrique… E… E desde que ele voltou, ele tem estado… A convivência tem sido difícil. Então as coisas que eram ruins pioraram, sabe? Ele já não era fácil antes, já não era fácil durante tudo isso… Mas depois que ele foi infectado… Bom, ficou insuportável.”

Bebo um grande gole da mistura de suco de pozinho com vodka e rum. O gosto ficou pior e mais amadeirado, mas não é como se o gosto de qualquer coisa fosse bom ultimamente. “Enfim.”

“Bom, até aí nada demais, acho que faz todo sentido. Você não é tão horrível assim, Alice.”

“Mas eu não falei a coisa horrível.”

“Então fala.”

“Sei lá.”

“Pode falar, só tem a gente aqui. Sem julgamentos. Real.”

“Tá.”

“Tá.”

“Sem julgamentos mesmo?”

“Mesmo.”

Respiro fundo. Eu sei que é um pouco injusto, e é só um pensamento que eu tenho, mas que tem passado mais e mais pela minha cabeça nos últimos meses. Apesar de eu nunca ter admitido. É mais fácil admitir isso aqui, num lugar desconhecido, com alguém que não me conhece direito, do que sozinha pra mim mesma… Ou pra alguma outra pessoa. “Às vezes eu preferia que ele só tivesse morrido.”

Thiago fica em silêncio, olhando pra mim por um momento, depois desviando os olhos.

“Eu sei,” digo. “Eu sou uma pessoa horrível, eu te falei. E a real é que agora que eu falei, agora que essas palavras são palavras reais… Sei lá, nem sei se eu queria isso mesmo… Mas é um algo que eu tenho sentido. Quase todo dia. E não tem nada a ver com o estado físico dele, não me entenda mal, por favor. É que ele tem tanta raiva o tempo todo, de tudo, do mundo, da minha mãe… Principalmente de mim. Provavelmente dele mesmo em algum lugar. Acho que eu só queria lembrar dele de um jeito que não fosse esse, e eu tenho medo que eu nem consiga mais isso. Mas sabe? Lembrar de um tempo que a gente não se odiava por várias razões. Sei lá. De um tempo em que o meu pai gostava de mim e eu não tinha que fazer um esforço pra gostar dele. Desculpa. Eu posso ir embora agora. Eu sei que isso soou terrível e provavelmente é mesmo.”

A expressão no rosto dele é um pouco fechada, então não tenho certeza do que ele tá pensando. Começo a cutucar o rótulo de uma das garrafas pra dar tempo ao que quer que seja.

“Não,” ele fala, finalmente, mergulhando o olhar no fundo do líquido rosa. “Faz sentido. Eu meio que entendo. Essas coisas são foda.”

“Foi mal, eu sou pior companhia que o Feliz, eu sei.”

“Não, não… Tá tudo certo. É só… Às vezes a gente só lembra que o mundo é deprimente, sabe?”

“Sei bem. Foi mal.” Termino meu copo, pego uns gelos do balde e sirvo uma dose de uísque. Nunca gostei de uísque, sempre me pareceu uma bebida de velho, mas hoje eu tô numa vibe de por que não. “E você, seus pais, como tão?”

Eu lembro vagamente dos pais do Thiago quando a gente era mais novo. A mãe dele era jovem e bonita e sempre fazia bolo no meio da tarde, e o pai dele eu só vi uma ou outra vez naquela época. Ao longo dos anos, vi os dois na garagem e no elevador algumas vezes, inclusive várias delas brigando… Mas foi meio que isso.

“Bom… Minha mãe morreu de câncer uns dois anos atrás.”

Porra, Alice.

“Nossa, mil desculpas. Que… Que hora pra ser insensível em relação a isso. Foi mal. Eu… Sinto muito. Eu não sabia.”

“Não, tudo bem… Você tá certa, eu acho. No fim foi meio que uma coisa boa? Sei lá, acho que teria sido pior… Eu leio todas essas histórias de gente que teve que ficar no hospital por agora… E eu não queria isso pra ela. Nem pra gente. Já era deprimente demais quando as coisas eram normais… E também eu acho que… Na real é isso que você falou, mesmo. Eu prefiro lembrar dela do jeito que eu lembro. Do que sei lá o que podia ter acontecido.”

“Que droga, cara. Foi mal. Eu me sinto péssima.”

Ele oferece a taça meio-cheia para um brinde. “Eu também sou péssimo, relaxa. Tá tudo certo, sem julgamentos, eu disse. Nós somos só uma metáfora pra alguma coisa.”

Brindo com ele. “Uma metáfora pra alguma coisa.”

“É isso.” Bebemos. “E o meu pai, bom, ele mudou pra praia assim que tudo isso começou… Uma casinha que a gente tem. Eu falo com ele de vez em quando no telefone. Ele parece feliz, na medida do possível.”

“E você nunca quis ir pra lá?”

“Ah… Não muito, na real. Eu fui pra lá no Natal, passei uns dias com ele e com a namorada dele. Mas no fim eu prefiro ficar aqui. Tem mais espaço pra pensar.”

“Bom, como alguém que não tem muito espaço pra pensar hoje em dia, eu te entendo.”

“Pode crer.”

Nós ficamos um tempo em silêncio, olhando pras garrafas, pra janela, bebericando das taças… Não era assim que eu esperava que esse dia se desenrolasse. Não que eu tenha alguma expectativa pra qualquer dia hoje em dia. Só, sei lá. Sinto que boa parte dos meus pensamentos foi reduzida a sei lás ultimamente.

“Isso ficou deprimente rápido,” Thiago fala, se servindo de mais bebida. “Vamos falar de alguma outra coisa.”

“Ótima ideia.”

“Fala alguma coisa aí. Qualquer coisa, alguma coisa que você tem pensado. Eu vou fazer um drink especial aqui.”

“Tá…” Escorrego na cadeira e fico olhando pro teto um pouco enquanto ele mexe nas bebidas. Em algum momento começou a chover lá fora e eu nem percebi. Fico escutando um pouco a água se jogando violentamente contra as janelas.“Sabe uma coisa que me deixa maluca? Os anúncios do youtube. Tipo, real. Pensa, todo mundo ficando louco em casa, sofrendo com todas as coisas que o mundo já oferece pra gente diariamente… E aí você quer, sei lá, assistir alguma coisa pra relaxar ou se distrair… E agora, ao invés de ter menos anúncios, tem mais. Dois anúncios, maiores, não dá pra pular… É tipo algum tipo de inferno muito específico… Mas ao invés da humanidade estar se ajudando ou fazendo alguma coisa, eles estão tentando enfiar mais anúncios na sua cabeça, fazer você comprar mais coisas, sei lá. Eu fico puta.”

Thiago balança a cabeça, misturando várias bebidas em uma taça de vidro enquanto ouve. Ele parece satisfeito com a mudança de assunto.

“Pode crer, essas merdas são as piores. Mas sabe o que me incomoda mais disso? Que esse é o trabalho de algumas pessoas. Tipo, tem gente que acorda todo dia tentando fazer o mundo ser um lugar melhor, mais tolerável… E tem gente que acorda todo dia tentando furar mais a cabeça dos outros pra elas gastarem mais dinheiro com o chocolate que a cada dia eles usam ingredientes piores pra fazer, e o recheio fica com mais gosto de gordura hidrogenada… Também fico puto com isso.”

“Total. Isso ou aplicativo de aluguel de apartamento. Vai se foder, na real, mano…” Bebo a bebida horrível que ele preparou: uma mistura de todas as bebidas alcoólicas da mesa, com gelo e limão. O que somos nós, adolescentes querendo ficar idiotas? Se pá a vida parecia mais tolerável naquela época, então acho que esse é mesmo um drink pros nossos tempos. “Mas achei essa coisa do chocolate um pouco pessoal demais. Conta mais.”

“Ah, é que eu gostava muito de um chocolate, e eles foderam tudo. Foi isso. Hoje em dia quando eu vejo a propaganda eu fico puto da vida.”

“Fodam-se os publicitários e as propagandas.”

“Fodam-se pra caralho os publicitários e as propagandas, Alice!”

“E os políticos!”

“E os políticos! Foda-se todo mundo, caralho! Foda-se!”

“Foda-se todo mundo!”

Gostaria de dizer que esse foi um momento poético e um pouco libertador… Mas a verdade é que foi só patético e um pouco desesperador.

Uma metáfora pra alguma coisa.

Perfeito pros nossos tempos.

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.