VI — Intervalo Entre os Estouros

Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
6 min readMay 10, 2021

Nós esperamos pacientemente o tempo entre estouros ultrapassar 5 segundos,

olhando pra porta do microondas. Estamos bebendo faz um tempo, já escureceu lá fora e a noção de alguma coisa se perdeu no meio do caminho. Mas a fome surgiu, e pra decepção de todo mundo a única coisa que o Thiago tinha na sacola de mercado que ele trouxe era cerveja.

Então nós abrimos a cerveja gelada depois de deixar as primeiras garrafas estourarem no congelador e achamos a única coisa não vencida na casa dele: pipoca.

“Foi mal, eu meio que peço comida todas as refeições. Eu só vou no supermercado pra não morrer de tédio.”

Bom, com isso eu posso me identificar.

“Você pede comida tipo todas as refeições mesmo?”

“Bom, almoço e jantar, eu não tomo café da manhã, só um espresso.”

“Ah, taí um hábito saudável.”

“Né? Qualquer coisa que me leve embora antes que eu morra de tédio, Alice.”

Outra coisa com a qual eu posso me identificar. Batemos as garrafinhas em brinde.

“Qualquer coisa pra não morrer aqui nesse prédio.”

“Você é uma poeta das palavras, Alice.”

Poeta das palavras, de todas as coisas. Engraçado é que o comentário me faz rir. Deve ser o álcool.

Ou deve ser o braço dele encostando no meu braço. É só um movimento casual — nós dois estamos apertados na cozinha de frente pro microondas, e em algum momento nossos braços se tocaram e a gente ficou assim. E eu senti todo tipo de sensações desesperadas partindo das terminações nervosas do meu bíceps e espalhando em todas as direções, em festa, como uma planta no deserto se abrindo toda pra uma única gota de chuva.

Vida. Uma centelha de vida sendo esmiuçada e distribuída por toda a superfície desta Alice, causando reações no pescoço, no braço, no canto dos lábios e dos olhos, no peito, no umbigo, no meio das pernas… Uma pedra jogada num lago e ondulando devagar até perder as forças. Contato físico, humano, vida. A última vez em que eu encostei em alguém foi no ano novo, quando nossa família se abraçou à meia-noite de um jeito desanimado mas ligeiramente esperançoso, desejando intensamente que os próximos trezentos e sessenta e cinco dias fossem melhores que os anteriores (não estão sendo). Agora estamos em março. Acho que eu dei um peteleco no Caio Henrique nesse meio tempo.

Então sim, eu quero chorar com esse toque de relance, e fico parada ali, acomodada, sentindo essa mínima superfície de existência validando a minha, um centímetro quadrado de universo me lembrando que sim, Alice, você existe.

E nós existimos ali, um do lado do outro em silêncio, os corações pulsando provavelmente fora de ritmo, as solidões dando as mãos de maneira constrangida, dois grãos de milho esquentando a um simples toque, esperando pra explodir de uma vez só. Ele é mais alto que eu, mais que o suficiente pra que a boca dele esteja no meu campo de visão periférico, e de alguma forma eu posso sentir o cheiro do xampu dele, e também minhas entranhas se contorcendo, dando uma volta, dando uma volta…

Nossos olhos se atraem como os polos opostos de um erro, eu posso ver a mim mesma, o microondas, a mesinha da cozinha, tudo refletido na luz fria daqueles poços escuros de alguma coisa que eu não sei o que é. Eu estou olhando pra cima e ele pra baixo, e algo me faz lembrar de uma professora de balé que eu tive há muito tempo, que dizia pra imaginar um fiozinho puxando o topo da minha cabeça pra cima, e agora é quase isso, mas esse fiozinho não puxa o topo da minha cabeça, mas o meu rosto, pra cima e pra frente, pra cima e pra frente… E eu toco o rosto dele, macio e seco e com a barba mal-feita, meus dedos se refestelam naquela pele mal-tratada, e logo ele usa os dedos dele, longos e calejados, pra afastar uma mecha de cabelo do meu rosto, e tudo é como um poema, uma música que rima através do meu corpo, um cinco-seis-sete-oito que se derrama como um filete de água nascendo no meio das montanhas, trazendo vida a um lugar que antes era só rocha e solidão, e eu quero ser vista, ouvida, cheirada, tateada, derramada como um riacho sobre mim mesma pra lembrar que eu existo.

Ao invés disso quem lembra que eu existo é um cheiro de que algo deu terrivelmente errado no microondas, e, como todas as pequenas alegrias cotidianas ao longo de um ano, o encanto se quebra de uma vez, muito mais que cinco segundos de intervalo entre os estouros dos nossos corações.

Sem dizer nada, nós dois salvamos o que podemos das pipocas, colocamos as sobreviventes em uma vasilha e sentamos no chão da sala, com as costas apoiadas no sofá.

Comemos algumas pipocas em silêncio, com gosto de sal e manteiga queimada, olhando pra tevê desligada, até que Thiago resolve falar alguma coisa.

“É…”

“É.”

“Aquilo lá…”

“Aquilo lá.”

“Você quer continuar?”

Eu olho pra ele, a um braço de distância de mim, o cheiro de queimado entre nós, o chão sujo de pó, e alguma coisa nessa conjuntura me amarra de forma permanente a essa realidade triste que eu habito, e essa realidade é inimiga de qualquer vida florescendo.

“Eu… Quero. Na verdade eu quero muito e talvez eu meio que precise… Mas ao mesmo tempo, tem… É complicado. Tem a Layla, e coisas, e sei lá.”

“E coisas?”

“E a Layla, e sei lá.”

Ele passa um bom tempo analisando uma pipoca que parece em estado de saúde grave, pensando se vale a pena tentar salvar ela. “Eu achei que vocês tinham um relacionamento aberto, inclusive,” ele diz, quase de passagem, mas de passagem demais pra ser só de passagem.

E esse é longe de ser o ponto. “Sim, mas em tempos como esse a gente usa diretrizes de guerra.”

“Diretrizes de guerra?”

“É, ué. Tipo, estamos todos vivendo um período de calamidade pública. É meio injusto que uma pessoa esteja se divertindo… E por me divertindo eu quero dizer transando, enquanto a outra tá presa na mesma situação e… Bom, eu já não deveria nem estar aqui porque é totalmente inseguro, e se você me morder toda a minha família vai morrer sem ter alguém pra cuidar deles, e eu realmente quero ser sentida e tocada e vista pra poder me sentir uma pessoa de novo, mas ao mesmo tempo tem tanta coisa, tanta coisa, que sei lá…”

Eu sinto outra nascente querendo quebrar para a superfície, uma nascente de lágrimas que é alimentada por um lençol freático tão poderoso que eu sei que se começar nunca mais vou parar e vou acabar morrendo desidratada numa questão de horas. Então eu seguro ela, sentindo os olhos ardendo, e tento não pensar em nada, em absolutamente nada.

“Ei, ei… Tudo bem. Tá tudo bem. Relaxa. Você não precisa se justificar.”

Encosto a cabeça no sofá, olho pra ele de lado e tento esculpir um sorriso com a massa rígida do meu rosto. “Valeu.”

Thiago sorri, então pega a minha mão e entrelaça os dedos nela. Acompanho o olhar dele até nossas palmas entrelaçadas, e ele acaricia devagar as costas da minha mão com as dele. “Se serve de consolo, eu te vejo, eu te sinto… E tecnicamente estou tocando em você.”

Eu sorrio pra ele porque, na atual conjuntura da vida, serve um pouco de consolo sim.

Nós ficamos olhando para a tevê desligada por um longo tempo, ouvindo a tempestade se derramando do lado de fora, o ruído cinzento da água da chuva ocasionalmente quebrado pelas motos de entrega ou por um trovão distante, sentindo o cheiro da pipoca queimada e acariciando devagar as costas da mão um do outro com os dedões como se fosse isso e apenas isso que nos fizesse humanos.

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.