VII — Traçando os Contornos

Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
5 min readMay 21, 2021

Eu desperto com a cabeça doendo um pouco.

A sala tá escura, iluminada só pela luz que vem da porta da cozinha, e o Thiago tá deitado no chão, dormindo de lado. Minha cabeça ainda estava apoiada no sofá de um jeito torto, então eu sinto o pescoço doendo. Esfrego os olhos e procuro o celular, só para descobrir que são quase dez horas e que ninguém deu falta de mim por enquanto.

Minha boca parece um deserto, então eu me arrasto pra cozinha pra beber um copo de água e esticar as pernas. Thiago não se mexe mesmo com todo o barulho que eu faço procurando um copo, batendo as portas do armário e as gavetas de talher. Fico observando encostada na porta enquanto ele dorme, roncando baixinho. Um pouco de álcool a menos no sangue e ele parece menos atraente, mais como aquele moleque que brincava comigo no prédio, um pouco fofo e um pouco irritante.

A chuva parece ter esgotado toda água que tinha no céu.

Sigo até o banheiro no fim do corredor, faço xixi, jogo uma água no rosto e prendo os cabelos que estão esquentando minha nuca. Então saio, apago a luz e fico ali no escuro, no silêncio, sentindo todo esse espaço ao meu redor e desejando com um cantinho da minha mente poder só desaparecer na escuridão, me desformar em nada de uma só vez e nunca mais estar aqui.

Então eu exploro um pouco a casa, aproveitando a sensação de novidade que não existe pra mim há muito tempo. O quarto do Thiago é um espelho do do Caio Henrique: a cama na parede equivalente, uma escrivaninha embaixo da janela, um armário e uma cômoda. A bagunça é até que parecida: uma pilha de roupas sujas do lado da cama, camisetas penduradas na cadeira, um computador na escrivaninha, coisas bagunçadas por todos os cantos. Ele tem uma coleção de bonecos de pokémon antigos numa das prateleiras, e um monte de jogos de videogame de tiro e de futebol. Em cima da cama desarrumada, um violão velho tira uma soneca, e perto dele umas garrafas de cerveja abandonadas. Olho em cima da cômoda pra algumas fotos velhas: gente que eu nunca vi nem ouvi falar, garotos e garotas abraçando o Thiago, fotos dele andando de skate em várias idades, dos pais, dele com a mãe. Ela era realmente bonita, com um queixo delicado e um cabelo todo ondulado. Fico um tempo olhando para uma foto dela mais nova, andando pela grama com um vestido sujo de lama. Imagino o quanto ele deve sentir falta dela. E se essa saudade se mistura com a saudade de vida que paira sobre todos nós nesses tempos estranhos.

Uma moto passa engasgando na rua, me tirando dos meus devaneios, e aproveito pra sair dali antes que o cheiro de lençol sujo fique impregnado em mim pra sempre.

Espio o equivalente ao meu quarto: um cômodo cheio de tralhas, com caixas de papelão e de plástico, uma mesa repleta de materiais de pintura abandonados, algumas telas, uma televisão de tubo, lençol cobrindo um móvel e protegendo da poeira. Enxergo mais um violão ali dentro, mas não me atrevo a entrar. Sigo então para o quarto de casal, no fim do corredor.

Fecho a porta atrás de mim e acendo só a luz do banheiro, que ilumina vagamente os contornos do quarto. Assim como o banheiro anexo, o cômodo está vazio, limpo, e coberto por uma camada de pó de anos. Há uma cama de casal ali, grande e arrumada, e eu me surpreendo pensando por que o Thiago não se mudou para aquele quarto. Provavelmente tem lembranças demais.

Procuro por alguma coisa, uma foto, um objeto, qualquer coisa, mas as gavetas estão vazias, os armários também. Tudo parece espaçoso de um jeito que eu quase sinto uma presença ocupando todo aquele ambiente, sem deixar espaço pra mais nada, mas pra mim só existe silêncio, e uma melancolia que me faz sentir um pouco melhor.

No banheiro, eu encontro um frasco de perfume azul e antigo, com um cheiro adocicado. Sem pensar muito, passo ele nos pulsos e esfrego um no outro, só então percebendo o que eu fiz. O cheiro é um pouco forte demais, mas não de todo ruim. Me faz lembrar de um jardim enluarado em algum lugar, ou talvez seja só minha imaginação.

Fecho os olhos e imagino como seria ser alguém que tem esse cheiro, vive nesse quarto, mora nessa casa. Caminho até o outro lado do quarto e abro a janela, deixando a luz fraca da noite iluminar um pouco mais o ambiente. Ando de um lado para o outro mais uma vez, e enfim ouso deitar na cama. O cheiro do edredom não é desagradável, e a cama não range nem um pouco. Pelo contrário, é bem confortável. Estico os braços e as pernas e me sinto abraçada pelo colchão, contida totalmente por uma superfície pela primeira vez em muito tempo. Deitada ali na meia-luz, fecho os olhos e quase sinto que existe uma Alice de verdade aqui dentro, e não só um monte de palavras secas e cansadas.

Eu não tenho tanto espaço e tanto silêncio pra mim mesma há sei lá quanto tempo.

Eu poderia só dormir aqui, ou talvez aproveitar justamente o espaço e o silêncio pra mergulhar em mim mesma e me sentir um pouco mais eu… A ideia por si só faz com que as minhas entranhas se contorçam de novo, e eu tenho muito pouca força para combatê-la.

Levanto rapidamente e vou até a porta, que abro devagar. Escuto o ronco do Thiago daqui, agora mais alto e mais intenso que antes. Hesito na porta, meu coração disparando aos pouquinhos.

Então eu volto pra cama, pé ante pé, deito de novo e fecho os olhos. Talvez tenha um milhão de razões pra levantar e voltar pra casa, pra esquecer de tudo isso, pra me prender de novo no meu quarto e me lembrar que eu não sou nada senão um pássaro engaiolado e com as asas cortadas… Mas nesse momento eu não consigo pensar em nenhuma delas, então eu tiro a proteção do pescoço e dos antebraços, cheiro suavemente meus pulsos, me deixando imaginar ser outra pessoa, com cabelos escuros e volumosos e dedos esguios, e lentamente vou traçando os contornos do meu próprio corpo, como se desenhando a mim mesma para me assegurar que ainda estou aqui.

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.