Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui
8 min readMay 26, 2021

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VIII — Pimentão Seco

É terça-feira de novo, Layla está desenhando de novo, o mundo está quieto de novo e as coisas estão piorando de novo. É março de novo. Ou talvez todas essas coisas sejam ainda? É difícil dizer. É março ainda. Outro ano. Mesma coisa. Mesma coisa. De novo. De novo. Ainda. De novo. Repete. Continua.

Pra não dizer que tudo é ainda e de novo, eu tenho me alongado. Longa e preguiçosamente, às vezes por horas a fio, tentando não pensar em nada, sentindo a dor dos músculos que já tinham desistido de mim voltando a se ativar aos poucos, dia após dia… Considerando tudo, melhor do que eu esperava. Eu não tive energia ainda pra de fato me exercitar ou fazer alguma coisa nesse micro-espaço que tenho, mas já é alguma coisa. É bom saber que meu corpo não desistiu totalmente de mim nesse ano de letargia e atrofia.

Mas é isso. Nenhuma outra novidade, nada mudando, nada dando sinal de que em algum momento vai ser mais fácil viver qualquer tipo de vida em qualquer lugar. Notícias deprimentes, conversas deprimentes, paisagens deprimentes. Olho as pessoas pela janela, e ela parecem deprimidas. Olho as pessoas na internet, e elas parecem deprimidas. Na televisão, nas fotos antigas, nos livros… É quase como se tudo fosse em preto e branco, só que menos interessante.

Por isso mesmo meu cérebro estranha captar risadas.

Fecho a tela do notebook e fico ouvindo o lado de fora, tentando descobrir se o que eu ouvi era real ou era alguém chorando e eu só confundi.

Não, eram risadas mesmo.

Alguém falando em voz meio-alta-meio-baixa, outro alguém rindo de um jeito largo e despreocupado. Uma risada que continua, para, continua, repete.

Uma risada da minha mãe.

Olho pro relógio, e são duas e meia da manhã. Escuto um pouco mais das vozes abafadas da minha mãe e da tia Chica, e logo vêm mais risadas. Vou até a porta devagar e abro uma frestinha.

Os trabalhos da minha mãe e da minha tia são muito exigentes nos tempos de hoje, e elas meio que só têm tido um dia de folga por semana e olhe lá, geralmente em regime rotacionado. O que significa que é quase impossível elas terem uma folga no mesmo dia, mas parece que é o que vai acontecer amanhã.

Minha tia passa seus poucos dias de folga dormindo até tarde, então rolando na cama e conversando com caras no tinder. Eu sei disso porque ela adora me mostrar fotos dos tais caras, então comentar sobre como eles todos parecem ser pessoas horríveis com abdômens super sarados, e como ela mente pra eles que faz outras coisas da vida pra que eles não chateiem ela com perguntas sobre trabalho. Ela nunca encontra nenhum deles, porque sua vida como Pesquisadora Oficial da Cura™ não permite que ela vá a nenhum lugar que não seja do trabalho para casa e de casa para o trabalho, mas ela diz que pelo menos se sente menos sozinha. Não que dê muito pra encontrar alguém em qualquer lugar nos dias de hoje, mas eu tenho certeza que tem gente que tenta.

Minha mãe, por outro lado, ocupa seu tempo livre trabalhando ainda mais. Ela é enfermeira, passa os dias no hospital em pé, cuidando de gente que não tem nada a ver com o Lyssa, observando a ala dos infectados de longe, tentando não ser mordida pelos outros enfermeiros que foram mordidos… É exaustivo só de pensar. Acho que por isso mesmo ela não gosta de pensar. Então nos dias de folga ela perambula pela casa desde cedo, procurando coisas que eu e o Caio Henrique não fizemos ou não fizemos direito, e fazendo ou refazendo essas coisas. Varrer embaixo do sofá, secar a louça do escorredor, arrumar os talheres na gaveta, limpar a geladeira, passar pano na televisão… Todas as coisas que eu e meu irmão acabamos decidindo não fazer por motivos de falta de energia que nos obriga a focar nos essenciais, mas que minha mãe faz questão de fazer. No começo a gente tentava acompanhar e deixar tudo perfeito pra ela não fazer nada, mas a gente acabou percebendo que ela gosta. Ou, se não gosta, ela precisa disso. De alguma coisa pra se distrair da horribilidade diária da vida. Às vezes ela até cantarola enquanto faz as coisas, então nós só mantemos distância e damos espaço para ela fazer o que é necessário pra ela, cuidando do trabalho mais pesado e deixando as atividades mais leves pra ela se ocupar.

Eu sinto que esse ano de pandemia e isolamento criou dinâmicas muito estranhas na minha família.

É bom ver as duas se divertindo um pouco, pra variar. Fico ouvindo um pouco da porta, e elas estão falando de alguma coisa que aconteceu há muitos anos, então concluo que é seguro me aproximar.

Ando até a cozinha, onde a porta está entreaberta, e bato antes de entrar.

“Alice, meu amor,” minha mãe fala, estendendo o braço pra mim. “A gente tá falando muito alto?”

As duas estão com o rosto vermelho, uma garrafa de vinho vazia entre elas, uma segunda na metade.

“Não, nem ouvi nada,” digo. Na real elas estão falando alto, mas isso é meio que uma coisa boa? Um pouco de vida nessa casa? Olho pras duas, exaustas e sorridentes, alheias do sofrimento que nos rodeia, pelo menos por um tempo, fechadas na cozinha e escondidas do mundo. Fico feliz por elas. Mas passo casualmente pra pegar um pouco de água, como quem não quer nada. “Do que vocês tão falando?”

Minha mãe ri uma pequena coda do que quer que fosse, minha tia balança a cabeça entusiasticamente. “Nada demais,” ela diz. “Coisas do passado, a gente tava lembrando de quando a gente era jovem e tal…”

“Ah,” minha mãe fala, rindo. “Mostra pra ela. Mostra pra ela a foto.”

Tia Chica olha pra mamãe, então olha pra mim por um longo tempo, pensando, até que finalmente diz. “Foda-se, vou mostrar mesmo.”

“Ok,” digo, curiosa mas não muito, enquanto minha tia começa a mexer no celular. Imagino que vou me deparar com a foto da barriga de algum cara de trinta anos que a minha tia conheceu no tinder, ou algo assim. Ao invés disso, ela mostra pra mim a foto de um pau. Um pau velho e, hm, sei lá. Não dos mais estéticos. “Ok… Ok… Tá… Hã, por que você tá me mostrando isso?”

Minha mãe desata em dar risadas de novo. Vejo as lágrimas escorrendo do canto dos olhos dela. Minha tia ri também, como se fosse óbvio. É mais pra um pouco triste do que pra óbvio, pelo menos sem o contexto.

“Esse é o… o diretor da fundação!” Minha mãe tenta falar no meio das risadas e de um gole bem dado de vinho. Rio junto com ela, mas mais porque ela tá engraçada do que por causa do assunto.

“O diretor da fundação fica te mandando foto do pau dele?” Pergunto pra minha tia. A Fundação do Sei Lá o Quê e Sei Lá Quem é o lugar onde a minha tia trabalha, uma espécie de organização privada onde eles ficam tentando criar uma cura ou uma vacina pro Lyssa. Ou algo assim.

“Sim.”

“Isso é muito zoado.”

“Bom… Mais ou menos, não é totalmente do nada. Eu meio que… Eu também fiz isso. Todo mundo… É uma coisa que a gente faz.”

Fico esperando, curiosa. Minha mãe começa a rir de novo.

“Eles têm um grupo, Alice! Um grupo!”

“Um grupo de foto de pau?”

“É um grupo teoricamente anônimo, de pessoas que trabalham na fundação… Bom, você manda uma foto das suas, você sabe, partes íntimas, e as pessoas mandam das delas… A gente fica muito tempo trancada lá, e ninguém quase tem nenhuma privacidade… É algo que a gente faz. E é anônimo… Mas, você sabe, a gente sabe. A gente conhece as pessoas. Então a gente sabe.”

“E esse é o diretor!” Minha mãe acrescenta, com um gritinho empolgado.

Eu olho de uma pra outra, um pouco fascinada pelo ponto em que chegamos como humanidade. Confesso que eu não acho a coisa mais engraçada quando paro pra pensar que essas são as pessoas que tão tentando resolver o problema mais agudo do mundo nesse momento… Mas suponho que eles também sejam pessoas e precisem lidar com a pressão de alguma forma? Sem julgamentos. Cada um faz o que pode pra sobreviver. E se ajuda a fazer a minha mãe rir na folga dela…

“Tô tentando convencer a sua mãe a fazer parte do grupo do hospital.”

“Ela acha que tem um no hospital, Alice!”

“Eu tenho certeza que tem.”

Eu bebo minha água encostada na bancada, apreciando de maneira antropológica esse fenômeno social que se desenrola à minha frente. Caio Henrique entra pela porta, com um pote sujo de sorvete. Ele para um segundo, analisa a cena, olha pra mim.

“Elas tão te mostrando as pirocas?”

Era só o que faltava pra coroar esse… evento. As duas não se aguentam de dar risada quando ele fala isso.

“Você sabia disso?”

“Elas me mostraram quando eu vim pegar o sorvete. Parece um pimentão seco.”

“Um pimentão seco!” Dessa vez a minha mãe até engasga de tanto rir, e eu preciso acudir ela e oferecer um copo de água, porque ela vai ficando cada vez mais vermelha e sem ar… Mas é só risada, e em alguns momentos passa.

Caio Henrique vira as costas pra ir embora. “Ei,” eu chamo. “Lava isso, cara.”

“Amanhã eu lavo,” ele diz, casualmente, e sai.

“Então pelo menos enche de água!” Mas ele nem ouve.

“Deixa, Alice, eu lavo, fica tranquila,” minha mãe fala ajeitando os cabelos loiros em cima do rosto gordinho e muito vermelho. “Ah, eu preciso ir fazer xixi, já volto.”

Ela sai pra ir no banheiro e eu vou lavando o pote do Caio Henrique pra poupar a coitada da minha mãe.

“Você tá bem?” Tia Chica pergunta, se servindo de mais vinho.

“É, tudo bem,” respondo, casualmente. “Na mesma de sempre.”

“E a sua namorada, tá bem também?”

Encolho os ombros. “Vocês tão animadas hoje, hein? Só celebrando a vida mesmo?”

“Ah, você sabe… É bom de vez em quando beber um pouco, falar merda, esquecer do mundo. A gente merece.”

“É verdade. É bom se divertir um pouco, tia. Principalmente vocês duas que trabalham um monte.”

“Pois é, a gente merece mesmo. Especialmente quando as coisas tão ferradas.”

Termino de secar o pote e abro o armário pra guardar. Olho pra minha tia, que tem uma sombra pairando sobre seu rosto. “Tudo certo, tia?”

“Tudo,” ela diz, mas seu rosto diz outra coisa. “Médio. Não muito.”

“É o trabalho?”

Ela suspira. “Também, Alice, também… Tudo tá uma merda dando errado e piorando o tempo inteiro, e eu tenho medo que a gente nunca mais saia dessa. Sabe?”

“Acho que eu sei. Então… Sem progresso com as… Coisas lá?”

“Pior que sem progresso,” ela diz, com um sorriso amargo, mas não elabora. “Eu acho que a sua mãe tá vomitando, talvez você devesse checar. Aliás, você precisa de alguma coisa do seu quarto? Porque eu tô precisando muito de um pouco de privacidade, se é que você me entende.” Ela dá uma piscadinha pra mim e sai, voltando um segundo depois pra pegar o resto da garrafa de vinho. “Deus abençoe o tinder.”

E com essas palavras a esperança da humanidade sai pela direita do palco, me deixando com todo esse otimismo renovado.

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Lucas Durão
Eu Não Quero Morrer Aqui

Escritor, Diretor, Ator, Co-criador de Desaventureiros, DM, e um monte de outras coisas. Invento coisas por aí, principalmente na Maré Geek.