A loucura das fronteiras

Melina Cavalcante
Crônicas de uma cidade sem fim
2 min readAug 22, 2018

Era uma manhã, talvez fosse tarde… estou perdida no tempo! Era mais um dia em que eu entrava em um ônibus cheio. O veículo continuava cor de laranja, motorista e cobrador continuavam a brincar de nunca parear o humor. Antes de começar a primeira viagem do dia, a dupla faz uma combina: se um se sente simpático e disposto, o outro, e esta é a regra, passa o dia com a cara fechada e não responde bom dia.

Naquele dia, havia um velho se segurando para ficar em pé, próximo à porta. Ele dizia:

- Huahuahuahuauahua.

- Uoooou! ( Quando o ônibus passava por uma curva).

- Motou, não é aqui! Eu vou descê ali, motou! (O ônibus havia parado em um ponto).

- Uopaaa! Chegô.

Ele usava um óculos, um moletom velho e uma pochete. Ele conversava sozinho e sorria um riso muito constrangedor. O riso dele revelava a farsa dos demais adultos daquela lotação.Todos sérios, vestidos para o trabalho, seguravam crianças e sacolas de compra, carregavam mochilas pesadas e a sensação de dever cumprido. Quem era aquele estrangeiro? Eu gostaria de saber para onde ele ia, eu queria saber qual era o seu compromisso. Quando o velho desceu do ônibus, o motorista disse para uma das mulheres que estava ao seu lado: “ele é assim mesmo. A irmã dele falou que ele passa dias trancado no quarto, mas quando sai… anda essa São Paulo inteira”. O motorista disse isto em voz alta, ele quis ser generoso conosco. Aliviou nosso constrangimento ao responder a pergunta que ninguém havia se arriscado a fazer: “quem é esse estrangeiro? Quem é esse que ri dos compromissos da vida?”, ele nos respondeu: “é um louco!”.

Assisto o sofrimento dos venezuelanos em Roraima. O sofrimento televisionado sempre nos coloca no lugar de espectadores da dor. Há algo de terrível no espetáculo, mas é um alívio reconhecer as fronteiras: este abandono não é meu, esta miséria é do outro. Eu estava almoçando quando vi as cenas de crianças acampadas em um ginásio, de mães amamentando nas calçadas, de homens e mulheres carregando tudo o que puderam levar em uma mala, cruzando a fronteira. Assim como o velho, também eles perturbam a nossa sensação de dever cumprido. Como o motorista que disse: “ele é assim mesmo”, nós dizemos: “conquistei o que tenho com o suor do meu trabalho”. Como o motorista que apaziguou o constrangimento ao insinuar que o velho não passava de um louco, nós analisamos a conjuntura político-econômica do país vizinho.

A imagem do velho me acompanha. Aquela ousadia, aquela sensação brutal de liberdade, aquele riso frouxo, aquele compromisso com o desejo de andar pelo mundo. O velho tinha uma irmã. Ele, que parecia não ter nem destino nem raízes, tinha uma pessoa que zelava por ele. Alguém para cuidar dos seus dias de refúgio no quarto e que o recebia depois das andanças. Havia para onde voltar. Ele tinha uma irmã. Seria a loucura do velho feita da matéria sublime que habita nosso desejo de cruzar fronteiras?

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Melina Cavalcante
Crônicas de uma cidade sem fim

Mestre em Psicologia Social | Facilitadora de aprendizagem| Pesquisadora de carreira e gênero.