A Sala

Melina Cavalcante
Crônicas de uma cidade sem fim
2 min readSep 9, 2018

A Sala São Paulo é um dos tesouros adormecidos da Paulicéia. Como nos sonhos, só alcança o momento fantástico onde não há tempo nem espaço quem atravessa o conhecido estado de alerta da cidade-vida. Aquela era a primeira noite que a Nona Sinfonia de Beethoven se exibia para mim.

O mistério evocado pela música clássica é tamanho que são necessários alguns rituais para orientar a magia da experiência. Os ouvintes ocupam seus lugares na mesma velocidade que são invadidos pela beleza do lugar. Imponente, singela, clássica, moderna, não há um detalhe que salte aos olhos, nada ali é vulgar. A sala não exige ser admirada, existir lhe basta. Entram os músicos, depois o coro. Eles se levantam para receber o maestro alemão. Percebo que a música não conhece estrangeiros, é uma língua universal. A reverência feita ao maestro no início do espetáculo se dissolve na pujança da Sinfonia. A matéria sutil ganha corpo em todos nós, mas não se deixa aprisionar por ninguém. Não se sabe mais quem rege quem. A melodia toca nos olhos vidrados da plateia, nas mãos da criança fascinada, no vigor dos violinistas e em tantos outros instrumentos cujo nome desconheço.

As mãos das minhas avós lavaram roupa no rio, mataram porco na roça, mexeram doce no tacho de cobre, nunca tocaram piano. As mãos da minha mãe folhearam livros à luz de lamparina e foram tocadas por giz, não pela Sinfonia. Por um instante, consigo entender que se tratava de um privilégio, como foi que cheguei até ali? Foram longos anos… Por que não alcancei aquilo antes? Foi uma travessia difícil.

A Sinfonia vibra em mim com a força das memórias que carrego. Cada instante e cada nota são intensamente vividos quando podem ser compartilhados. Talvez, viver seja como visitar a Sala São Paulo.

--

--

Melina Cavalcante
Crônicas de uma cidade sem fim

Mestre em Psicologia Social | Facilitadora de aprendizagem| Pesquisadora de carreira e gênero.