Eu não sou daqui

Melina Cavalcante
Crônicas de uma cidade sem fim
2 min readAug 17, 2018

Dois arcos de concreto se cruzavam com muita velocidade no céu. Eles transportavam os carros e suas intenções. Eram estruturas pesadas, feias, havia uma contradição naquele aparente equilíbrio. No chão, os automóveis acompanhavam o leito de um rio que outrora teve vida. Havia rio ali antes de haver cidade, mas eles não souberam existir juntos.

Naquela tarde barulhenta, me dei conta de que fazia parte da paisagem, senti meu estômago enjoado ao respirar o ar pesado-morno-cinza. Lembrei dos meus enjôos de menina. Nas primeiras vezes que atravessei as ruas da cidade que não tinha fim, eu tinha seis anos de idade e estava visitando a minha tia. Quando ela me percebia muda, de testa franzida e com a boca cheia de saliva, ela me dava cascas de mexerica:
- Cheira, menina! É bom pra enjôo.

Ela sempre carregava receitas da terra contra os defeitos colaterais da cidade. Hoje, sei que ninguém deixa a sua cidade natal. Não há fuga possível. No entanto, depois que se sai, não há volta. Há somente uma autorização. Uma espécie de passaporte vindo de lá, com direito de usufruto daqui, pertencente a lugar nenhum. A burocracia envolve o oferecimento de uma autorização a si mesmo. O passaporte da minha tia era feito de castanha do baru e tinha cheiro de açafrão. Aqui chamam de cúrcuma, acho.

Meu enjôo aumenta quando lembro que se passaram dez anos da vida aqui. Muitas vidas em mim. Não me acostumo à feiúra dos arcos de concreto, à gente ao relento. Infinitos carros em garagem. Aqui há garagens maiores do que casas. E também casa construída pra ser uma só, mas que com um muro no meio viram duas. Sabe? Geminado, mas esses são do tipo que parecem casas de duas cabeças dividindo um único corpo. E todo ano chegam junto com o frio as campanhas para cobrir com lã e algodão o papelão de quem não tem dinheiro pra pagar banho, água, cigarro, carro, estacionamento, pão.

Meu passaporte? Não posso te responder do que ele é feito, ainda não emiti. Não consigo registrar no cartório da escolha a autorização redigida por mim. Reclamo. Há sempre uma linha se recusando a mudar. Mas não há para onde voltar, digo. Não se pode ter tudo nessa vida, é o que dizem.

Dê-me então essas palavras: eu não sou daqui.

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Melina Cavalcante
Crônicas de uma cidade sem fim

Mestre em Psicologia Social | Facilitadora de aprendizagem| Pesquisadora de carreira e gênero.