ultravioleta

Allie Terassi
eu, poesia
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2 min readMar 23, 2023

Acordei assustada
Acho que tive um pesadelo
Meu coração acelerado
O travesseiro suado
Me levantei
100 miligramas de espironolactona
Mais 20 de escitalopram
Todos os dias me drogo
Me desfaço
Refaço
Até que parte de mim é realidade?
E onde começam os fármacos?
O que é meu, o que é inventado?
Como tornar real o meu artesanato?
Rodeada das ansiedades que me perseguem
Em sonhos, em claro
Me furto
Me enlaço
Me encharco com o gel hormonizado
Na esperança de que um dia
existir se torne mais fácil
Mais certo
Mais mágico

Acordo
Recomeço
Só existo depois de uma depilação
No rosto
Pescoço
Nas pernas
Nos rastros
Me corto
Sangro
Escorro
Desfaço
Quase um teatro
Sem plateia
Sem aplausos

No espetáculo da transição
Vou te contar o que acontece
Você se importa com spoilers?
Ah, esquece!
Tem alguém que se apaixona
E aí toca uma canção
Alguém morre no final
E quem mata sou eu
Mas ainda não sei quem interpretar
Quem vou matar, pra quem vou viver
Não sou a protagonista de mim
A peça é de marionetes
E eu assisto
Ansiosa
Para ver meu fim
Meu começo
E o recomeço de mim

Mas quando vi você
Precisei mudar o roteiro
Perdi o fio da meada
Bagunçou o espetáculo inteiro
Entrei em cena
De verdade, inteira
Com minhas marcas, meus jeitos
Me enrosquei
Me prendi
Na anarquia dos lençóis
Na harmonia dos átrios
Perdi minha fala
Esqueci a cena
O que eu faço agora?
Alguém lembra?

Disseram que eu parecia ultravioleta
Fiquei confusa
Não entendi
“É uma cor que ninguém consegue ver
Não aparece na paleta
Mas vejo ela em você”
Me tornei, então, suspeita
Na harmonia do meu caos
Na trilha estreita
Te vi no fundo
Lá mesmo
Te procuro
Em todas as cores
Em todos os tons
Eu, desfeita e refeita
Te acho aqui dentro
Ultravioleta

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Allie Terassi
eu, poesia

sou uma falha epistemológica tentando produzir poesia e teologia. e a melhor delas está no outro.