Jesse Eisenberg (à esquerda) e Imogen Poots encabeçam o filme Vivarium (Foto: Reprodução/Saban Films/XYZ Films)

A falência da família de margarina

Em Vivarium, Lorcan Finnegan brinca, com uma boa dose de sadismo e ironia, com certezas e seguranças da sociedade contemporânea em um suspense bizarro e absurdamente bonito

Iury Figueiredo
EUFORIA
Published in
5 min readSep 29, 2020

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Vou ser curto e direto: escrever sobre o filme Vivarium é complexo e doloroso. Isso porque me faz entrar num vórtice estranho de lembranças e pensamentos, diálogos que venho fazendo com amigos e comigo mesmo e que, em geral, não parecem chegar em um lugar só. Vou tentar passar isso tudo pra você, mas, de antemão, peço desculpas porque acho que vou falhar.

Vez ou outra vejo alguém soltar a frase “a instituição da família ruiu”. Já concordei, porque parece lógico. Há, hoje, uma abertura mais ampla no conceito de família, o que parece que aquela instituição tradicional — pai, mãe, avô, avó, filhos e esse elenco já conhecido — se extinguiu. Mas com o passar do tempo eu fui percebendo que ela existe sim. Ok, não mais como a gente conhecia, agora com outros personagens — como os dois pais, as duas mães, a mãe solteira ou até o grupo de amigos que divide um apartamento — mas ainda assim é família. E isso tudo se baseia em um referencial, em uma imagem que a gente já conhece, guardadinha em nossas mentes, sentada em uma larga mesa e comendo uma torrada lambuzada de margarina, colocada lá por filmes, séries e campanhas publicitárias.

Porque a gente também procura a estabilidade, a facilidade, a segurança. Quando eu era mais novo, assumo, a inconsequência da adolescência imperava, e parecia que o meu futuro era, de fato, viver viajando por aí trabalhando com arte e descobrindo o mundo. Não que hoje eu tenha abandonado os meus sonhos, longe disso, mas antes de querer conhecer a Índia nas costas de um elefante enquanto envio uma arte para aprovação de um empresário britânico, eu quero mesmo é ter segurança. A segurança de uma casa confortável, de uma geladeira abastecida, de uma vizinhança simpática, um companheiro que me respeite e me ame, e, é claro, uma caixinha de remédios pronta para eventuais primeiros socorros.

A vizinhança de Vivarium é uma repetição-padrão de várias casas iguais (Foto: Saban Films/XYZ Films)

Pois é, o Lorcan Finnegan, diretor de Vivarium, achou legal chutar, com carinho, essa ideia de uma segurança baseada na rotina e na monotonia que garantem a perfeição dos dias.

Quem interpreta esse desejo de estabilidade é o jovem casal formado por Gemma (Imogen Poots) e Tom (Jesse Eisenberg). Eles vão até uma corretora de imóveis procurando uma casa para viverem juntos. Quem os atende é Martin (Jonathan Aris), um corretor que de tão normal é bizarro. A casa que eles vão visitar é a número nove em um bairro perfeitamente construído, tão bonito que é feio, tão normal que é bizarro. A partir desse momento é como se cada pedacinho do filme, com exceção do casal Gemma e Tom, tivesse sido cuidadosamente retocado em um programa de edição de imagens — até o céu, sempre num misto de um azul lindo com o dourado de um sol perfeito. Em algum momento, a estética me lembrou o bairro perfeitamente construído de Lazy Town, série infantil que eu também acho bizarra.

Acontece que Martin, o corretor, desaparece misteriosamente durante a visita, deixando Gemma e Tom sozinhos em uma casa perfeitamente construída, com comida e bebida (belíssimas, mas sem gosto nenhum) e uma vizinhança com centenas de outras casas iguais (todas vazias). Quando o casal tenta ir embora, acaba voltando sempre para o número nove e isso se repete por algumas vezes até que, em algum momento, eles começam a receber uma caixa com comida e alguns itens para sobrevivência. Ah, e tem um bebê dentro, com a mensagem de que eles precisam criar a criança.

Essa relação entre o casal e um menino (que cresce absurdamente rápido e em poucos dias sai de um bebê para uma criança de uns 10 anos) torna-se o foco da narrativa, atravessada pelas inventivas e constantes tentativas de fuga de Gemma e Tom. Apesar da aparência fofa de uma criança comum, o jovem parece se dedicar, de forma até meio robótica, a imitar os adultos e, ao mesmo tempo, infernizar a vida deles. O sonho do casal vai sendo destruído gradualmente a pancadas e gritos por uma criancinha indefesa.

Pôster original de divulgação do filme (Imagem: Saban Films/XYZ Films)

O resto do filme é uma grande viagem que toca até em alguma psicodelia em determinado momento. A sensação é como se você estivesse em um daqueles tobogãs que começam lentamente, quase planos, mas, sem qualquer aviso, te levam para uma queda livre. São 97 minutos que passam voando, engolidos pelo suspense e pela estranheza de estar conhecendo e reconhecendo um mundo que eu já vivo. Não deu para entender né? Vou tentar explicar de novo: é como assistir certezas e conceitos que edificam a minha ideia de vida em sociedade serem desidratados em poucos minutos e jogados fora feito lixo.

Vivarium me lembrou muito outro filme que assisti recentemente, Nós, do Jordan Peele, não pela temática ou pela estética, mas pela forma como uma questão simples e corriqueira da vida (em Nós a relação entre o eu e o outro, em Vivarium as relações familiares) pode ser reinterpretada de forma absurda, em uma narrativa que está longe de ser um “tapa na cara da sociedade” e mais perto de um soco no estômago de quem assiste, desses que te deixam sem ar, como eu talvez tenha te deixado agora com essa frase gigante que começou sete linhas atrás.

Sabe, reli o texto aqui e acho que eu falhei. Não consegui te passar tudo que me veio à mente durante esse filme, todas as questões, diálogos, memórias, medos e desejos. Até pensei em apagar e não publicar, mas, ah vai, vou publicar sim. É que, no final, eu acho que é sobre falha que eu estou tentando te falar.

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Iury Figueiredo
EUFORIA

Jornalista freelancer formado pela Universidade Federal do Ceará