Foto: Reprodução/Everbyte

De onde você conhece Hannah?

Duskwood traz uma narrativa imersiva em um jogo relativamente simples, mas genial na sua capacidade de explorar características específicas do console, o celular

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Acordo com ele tocando e vibrando enquanto um “8:00” brilha no meio da tela. Levanto, vou com ele até a cozinha, vejo que falta algumas coisas na dispensa, escolho um dos aplicativos nele e faço um pedido pelo delivery. Enquanto a entrega não chega, ele me conta as principais notícias do dia através da voz de algum narrador de podcast. No meio do programa, lembro de mandar mensagem para a minha mãe desejando feliz aniversário, que foi ontem, mas acabei esquecendo. Não a vejo desde o início da quarentena, que já faz mais ou menos meio século. Se ela responder rápido e com mais de três palavras é porque ela está feliz. Se responder depois de muito tempo e com apenas um “obrigado” é porque está chateada.

Houve uma época em que a relação das pessoas com tecnologias como celulares e internet era um terreno desconhecido, motivo de longos debates de pedagogos, palestras em universidades, avisos de risco de câncer e tema de novela. Hoje essa relação tem códigos específicos, uma gramática própria e exerce funções essenciais nas nossas vidas.

E como a quarentena significa elevar tudo à quadragésima potência, o que antes era um caminho gradual de aproximação entre humano e máquina, agora é uma avalanche. Quer comer? Pede no celular. Compras no supermercado? Celular. Conversar com um amigo? Não tem bar, vamos de celular. Precisa de dinheiro? O Governo dá, mas tem que ter celular.

Agora, imagina aí: um dia qualquer aparece no meu celular uma mensagem de um grupo de pessoas me perguntando de onde eu conheço a Hannah. Eu não conheço. Mas aparentemente ela me conhece, afinal, pouco antes de ser dada como desaparecida pelas autoridades, ela enviou o meu número para o namorado, o Thomas, que por sua vez chamou um grupo de pessoas para me confrontar e descobrir o que eu sei sobre o sumiço da jovem.

Essa é a premissa de Duskwood, um game de investigação produzido pela Everbyte, um estúdio independente de jogos da Alemanha. O aplicativo está disponível para download gratuito tanto para Android quanto para iOS e, diferente de muitos outros jogos para smartphones, é possível seguir toda a história sem precisar pagar nada, mas a assinatura de um serviço deles permite que você tenha acesso a imagens, áudios e vídeos exclusivos.

Aqui eu preciso fazer um desabafo: vivo uma relação de amor e ódio com histórias de suspense e terror. Acho que isso começou lá atrás, na minha infância, na época em que eu passava a tarde vendo aquelas crianças enxeridas e esse cachorro idiota, que me fizeram ir até o cinema para ficar morrendo de medo assistindo Scooby-Doo 2: Monstros à Solta. Eu achava que isso ia mudar quando eu crescesse, não mudou. Deus e a sala de cinema do Iguatemi sabem o quanto eu fiquei em pânico assistindo A Bruxa de Robert Eggers, mesmo sendo um dos meus filmes preferidos. Odeio terror na mesma intensidade em que eu adoro terror.

Duskwood leva essa sensação a outro patamar. Não foram poucas as vezes em que eu estava jogando e pensava: “meu Deus, três horas da madrugada, eu preciso parar de jogar, eu não vou conseguir dormir”. E lá estava eu, até às quatro, ainda grudado na tela do celular.

O grande trunfo de Duskwood é a verossimilhança. Um jogo inteiramente baseado em trocas de mensagens, como em uma rede social, a imersão é, pelo menos para mim, sem comparação. Há um visível esforço dos desenvolvedores em colocar nessa experiência toda a gramática e hábitos que fazem parte dessa relação humano-máquina.

Foto: Reprodução/Everbyte

Toda a investigação acontece através dessa troca de mensagens com os personagens de Duskwood que estão procurando por Hannah. Todos são suspeitos, inclusive eu, afinal, foi o meu número que apareceu no celular da jovem desaparecida. Quanto mais você conhece cada personagem, mais se envolve com eles e mais eles cobram um posicionamento seu diante da investigação. Ao mesmo tempo, eles também vão te conhecendo, o que também significa que cada um vai julgando suas atitudes e escolhas, tudo através de mensagens. Uma palavrinha fora do lugar e o resultado pode ser desastroso, para você ou para um deles.

Há, porém, um dos personagens que se destaca no jogo, provavelmente por ser uma espécie de tutorial, mas que também age como os demais. O Hacker (ou “???”, que é o nome que aparece no perfil dele) é o único que parece confiar inteiramente em mim, me enviando informações exclusivas, permitindo que eu leia algumas das conversas dos demais de forma anônima e ainda liberando um drive de Hannah, que para descriptografar eu preciso jogar um mini-game no estilo Candy Crush (um dos raros momentos em que você sai da narrativa frenética do jogo).

Outro investimento na verossimilhança da narrativa é uso de imagens, vídeos e perfis de redes sociais que são reais. Não são poucas as vezes em que, no meio do jogo, você recebe uma misteriosa chamada de vídeo onde uma pessoa, de carne, osso e bits, conversa com você, chora, te conta segredos, e até te ameaça.

Duvida? Pois deixa eu te mostrar o perfil da Cléo, uma amiga da Hannah. Pesquisa aí no Instagram @pinchofcleo, vai, eu espero. Viu? Agora imagina ela me ligando no meio da noite, me mostrando uma casa e, de repente, a chamada cai pouco antes de uma misteriosa mão abrir uma porta. Sim, às três horas da madrugada, quando eu falo pra mim mesmo: “é, hoje eu não durmo, mas ainda assim vou continuar jogando”.

Detalhe que não chega a ser um spoiler e sim uma promessa: esse não é o único perfil dentro do jogo que existe nas redes sociais reais e você vai precisar interagir com eles também fora do game.

Duskwood é uma experiência narrativa incrível, especialmente durante a quarentena. Em um período em que o isolamento social nos joga cada vez mais para essa relação com os smartphones, o game me faz pensar o quanto essa interação pode ser elevada para outro patamar se for bem aproveitada para narrar uma boa história. É uma ideia simples, usar o layout de um celular para desenvolver um jogo, mas potente quando usada de forma sensível e inteligente.

Ah, antes que eu me esqueça, Duskwood é dividido em episódios e, no momento em que escrevo esse texto, acabei de terminar o 4º, que se encerra com uma reviravolta revoltante, pelo menos para mim. A 5ª parte já está disponível.

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Iury Figueiredo
EUFORIA

Jornalista freelancer formado pela Universidade Federal do Ceará