Griselda, interpretada por Lília Cabral, é a protagonista de Fina Estampa (Foto: Reprodução/Rede Globo)

Fina e empática Estampa: abram alas, o povo pode, quer e vai entrar!

Tão criticada na atual reprise, novela de Aguinaldo Silva serviu para fazer meus pais machistas chorarem na frente da TV

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6 min readSep 9, 2020

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Por mais natural que possa ser para um brasileiro de classes C, D e E, a novela ainda é uma revolução. Um produto dramatúrgico para ser uma catarse também pode ser um lugar de identificação de um público tão alijado do dia a dia. Era um sentimento muito latente também em mim, noveleiro assíduo. Até que chegaram os anos 2010.

Uma breve contextualização política. Com uma distribuição de renda “menos pior” entre as camadas mais baixas da população desde o início do governo Lula, ter aparelhos eletroeletrônicos deixou de ser luxo e passou a ser elemento essencial na casa dos brasileiros. As mulheres ganharam cada vez mais espaço econômico e político nas decisões dentro e fora de casa, aumentando a proporção de mulheres como chefes de família. Na década anterior, 2000, grandes sucessos foram acompanhados com afinco pelo telespectador, como Laços de Família, Celebridade, Senhora do Destino, e Caminho das Índias. Em comum, o retrato do cotidiano de famílias ricas. Faltava ainda a identificação da massa com aquelas histórias.

Depois da morníssima Insensato Coração, Aguinaldo Silva surge com um novelão, uma história bastante maniqueísta e de roteiro bem simples. A novidade fica por conta do arranjo. O Rio de Janeiro, tão bem-visto pelas elegâncias, agora ganha o olhar vindo da porta dos fundos de várias casas de “grã-finos” de uma heroína inimaginável: Griselda Pereira da Silva, ou para os íntimos, o Pereirão. Uma mulher de meia-idade, chefe de família, teve que criar e educar praticamente sozinha três filhos e um neto após o desaparecimento do marido pescador em alto-mar anos antes. Roteiro aparentemente comum no país. Para mim, com apenas 13 anos, a história era surpreendente. Mas iria ficar mais.

A novela, produto nacional que era, reunia (e ainda reúne, saudades de assistir Amor de Mãe) toda a minha família em frente à TV. Meu pai, um mecânico industrial bastante apegado às tradições masculinas “do que é ser um macho”. Minha mãe, dona de casa, com traços de Dona Hermínia, era mais doce, porém com preceitos iguais. Sentados na frente daquela Panasonic do “tubão” de 29 polegadas, víamos uma mulher com buço por fazer resolver em minutos o problema de um cano estourado em um quiosque de barraca de praia e trocar um pneu furado como quem troca de canal na sala. Não preciso dizer que isso foi chocante para duas pessoas tão tradicionais.

Não me espantei. Acompanhei com afinco a história da faz-tudo que ganhava a vida entrando pelos fundos das casas de madames e bacanas para dar um jeito naquilo que unhas e cremes importados poliram durante anos. Sempre com muita competência, clareza e honestidade. Quando víamos o Pereirão na TV, sabíamos que estava na hora de acompanhar uma mulher longe do estereótipo. Um orgulho grande.

A história logo arrebatou o meu pai. A identificação com o macacão de mecânico e a maleta de ferramentas (que ele tem uma igual até hoje) o fizeram sentir empatia. Entre chave de grifo, brocas, furadeiras, um olhar brilhante acompanhando a história de uma mãe de família capaz de ir às últimas consequências para defender os valores morais dos filhos e da própria pessoa. Até se deparar com a imagem da dondoca Tereza Cristina Buarque de Siqueira Velmont, a antítese de tudo àquilo que o Pereirão representava.

Além de toda a narrativa entre o mundo dos ricos e dos pobres, a atriz Lília Cabral com sua Griselda ainda tocava em outro ponto muito forte do brasileiro menos abastado: a fé. Filha de portuguesa, a devoção da faz-tudo por Nossa Senhora de Fátima frequentemente transbordava-lhe os olhos com gratidão por tudo, desde a mais pungente dificuldade até a maior glória. E ela veio. Apostando na loteria durante anos os mesmos números, Pereirão conseguiu: ficou rica. Milionária. 50 milhões de reais na conta.

E a mudança foi bem gradual, nos ritmos da novela da época. Eu e minha família acompanhamos uma Griselda reconquistando a feminilidade, de forma sutil, singela e com elementos simples, em um espelho sujo de um sobrado decrépito nas margens da Baía de Guanabara. O macacão deu lugar a vestidos de uma mãe ou daquela tia que visita de vez em quando, mas a vida de rica não era para ela. Nem era isso que eu, meus pais e o Brasil queria.

Marcada sempre pelo trabalho árduo e pesado e pelo despertar junto com o canto do galo, Pereirão era rica, mas sentia tédio. Muito tédio. Após ajudar um por um os filhos, amigos próximos, ela pensou nela. Em vez de aposentar o macacão, semeou a ideia de multiplicar os serviços pelos quais ficou tão reconhecida no Rio de Janeiro. Abriu uma loja de faz-tudo mulheres que atendiam em domicílio. Treinou pessoalmente uma a uma e cuidou de todos os pedidos desesperados daqueles que sabiam que podiam recorrer à confiança do Pereirão. E fez sucesso.

A quebra total de paradigma em relação às últimas novelas da década transformou o trabalho em uma das obras-primas de Aguinaldo Silva. Abandonando o realismo fantástico, o autor fez o óbvio parecer fantástico. Trouxe a realidade dos trabalhadores para a tela com muita propriedade. Não quis mostrar o cotidiano como algo ruim. Dignificou o trabalho daqueles que dão um duro danado para continuar girando essa máquina enguiçada chamada Brasil. Daí a identificação do meu pai, que trabalhava há 18 anos na mesma empresa em 2011. Fruto dos morros do Recife, ele veio em busca de crescer no asfalto de Fortaleza. Conseguiu.

Em poucos mais de sete meses de novela, demos ótimas gargalhadas com protagonistas bastante maniqueístas, porém engraçadas, choramos com situações tensas, tivemos expectativas frustradas, torcemos. Mas a cena que mais me marca até hoje é a final.

Sentados eu, meu pai e minha mãe no sofá da sala, acompanhamos Antenor, antes filho que rejeitava a mãe, agora arrependido, chamar dona Griselda para ser paraninfa da turma de formatura dele em Medicina. Relutante, ela aceitou. E com um discurso emocionante de dignificação do trabalho e da força da mulher, arrancou lágrimas de um Brasil que se sentiu representado. Inclusive do meu pai, um ser humano sem muitas emoções, mas que chorou copiosamente em 23 de março de 2012. Achando engraçado, questionei ele, que negou as lágrimas. Anos depois, mais maduro, entendi que as lágrimas representavam empatia.

Antes do sucesso estrondoso de Avenida Brasil, Fina Estampa abriu mão de trazer a aristocracia para a tela. Optou por ser uma novela bem solar, clara, iluminada, com foco em expressões positivas. Pelo meio do trabalho e da fé, mostrou que é possível vencer. A mensagem de “meritocracia” arrebatou os corações da minha família. Não pude negar que também gostei da mensagem.

Por causa da Covid-19, Fina Estampa voltou em reprise no horário nobre, no lugar da suspensa Amor de Mãe. Com espectadores acostumados com novelas ágeis e com menos enrolação, o folhetim está sendo duramente criticado pela história “simplória”. Eu discordo. Foi essencial na época em que passou e serviu de escada para os novos tipos de tramas. Serviu também para juntar meus pais, eu e meu irmão na sala para acompanhar uma história de esperança. Era tudo o que precisávamos.

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