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“Mas no processo eu esqueci que também era especial”

O extasiante processo ex-estático de Madonna

Gabriel Monteiro
EUFORIA
Published in
6 min readAug 12, 2020

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O ano era 2003. Enquanto os Estados Unidos sustentavam o “Sonho Americano” à custa de vidas, famílias e riquezas saqueadas na Guerra do Iraque, Madonna lançava American Life, seu nono álbum de estúdio. A loira ambiciosa pintou o cabelo de preto, invocou Che Guevara na capa e usou sua voz como arma para contra-atacar o “American Dream”, o machismo, a manipulação midiática, a indústria hollywoodiana, o consumismo saqueador, o materialismo, a ludibriadora sensação de “progresso” trazida pela tecnologia, o imperialismo e exploração norte-americanas e (por que não?) o próprio capitalismo.

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Já eu… Eu lá fazia alguma ideia de tudo isso? Eu tinha seis anos, estava aprendendo a escrever para mais tarde usar minhas palavras como arma. Conheci a Madonna anos depois pelos clipes de “Hung Up” e “Sorry”, do Confessions On a Dance Floor, seu álbum seguinte. Com o passar dos anos entrei em contato com algumas de suas músicas, mas foi em 2014, depois de uns bons anos me aventurando na terra maravilhosa da música pop, que decidi adentrar o reino de Madonna. E a rainha tinha muito a dizer.

Embora eu fosse fã de cantoras como Miley Cyrus, Britney Spears e Lady Gaga, meu processo de descobrir discografias nem sempre envolvia a escuta do álbum completo. A discografia de Madonna era tão grande que eu nem sabia por onde começar e nem tinha algum mestre que me orientasse. Comecei pegando todos os álbuns e joguei no aleatório, misturando músicas de todos eles. Foi uma experiência maravilhosa porque qualquer um que tome essa decisão vai perceber a diversidade gritante da discografia dela. Uma das primeiras músicas que me chamaram atenção foi “X-Static Process”, oitava canção do American Life. A sonoridade folk do violãozinho com a voz doce e vulnerável de Madonna estranha qualquer um que esteja acostumado com as canções explosivas e vocais super confiantes da rainha do pop. A partir desse dia eu descobri que por trás da grande diva Madonna existia uma mulher honestamente humana.

Essa música mudou minha vida e eu não poderia ser mais grato a ela e a essa mulher que tanto me inspira. Nos meus 17 anos, me olhar no espelho não era uma possibilidade. O mundo adolescente tinha destruído a criança brincalhona e a transformado em um jovem que se odiava acima de qualquer coisa. Gordo, gay, afeminado e cheio de espinhas, recém rejeitado pelo seu primeiro e único namorado (e por todos os garotos por quem eu me interessava) e perdidamente apaixonado por seu até então melhor amigo, eu tinha muitos problemas do amor que vinham também de problemas comigo mesmo. Autoestima parecia uma palavra de outra língua pra mim. Quando ouvi “X-Static Process”, senti que pela primeira vez um sentimento tão complexo dentro de mim havia se traduzido.

Na letra, Madonna canta “Não sou eu mesma quando você está por perto/Não sou eu mesma numa multidão/Não sou eu mesma e não sei como/Não sou eu mesma sozinha à noite/Não sou eu mesma e não tenho pra quem chorar/Não sou eu mesma de jeito nenhum”. Nada poderia atingir mais aquele garotinho de dezessete anos que não sabia mais quem era e pra onde ir — em um ano tão importante quanto o do vestibular. A visão do futuro era incerta, eu me sentia rejeitado e sozinho no terreno afetivo. Só a música e meus amigos me salvaram. Meu psicológico e emocional estavam tão afetados que eu não aguentava ver meu reflexo, chorava quando comia e tinha esquecido totalmente quem eu era por causa de todos os caras que já me magoaram.

Em um show exclusivo no restaurante francês La Cantine Du Faubourg, para promover o disco, Madonna contou um pouco sobre a música antes de cantá-la (e são raros os momentos em que ela o fez):

“Essa começou como uma canção de amor, mas aí o assunto ‘Jesus’ acabou entrando e eu percebi que meu problema com os homens é o mesmo que tenho com Jesus. Quando você dá a Jesus/aos homens mais poder do que merecem, você se fode! Tipo, eu amo os homens, é só que quando você os dá muito poder, quando você faz eles serem maiores do que você, quando você age como se eles fossem mais importantes do que você e quando os idolatra… Pffff!”

Percebi, então, que esse era exatamente meu erro. Cara, o amor fode com a sua cabeça… Sempre que me apaixonava, dava tanto de mim pro garoto que eu esquecia quem eu era. E perder sua identidade é como perder sua própria vida. Dá pra perceber essa relação com Jesus nos versos “Jesus Cristo, olhe para mim/Não sei quem eu deveria ser/Realmente não sei se deveria me importar/Quando você está por perto, não sei quem eu sou”.

Assim como Madonna, caí em um buraco cavado pelo amor e passei um bom tempo sem saber como sair dali. Demorou para que eu saísse de meu próprio corpo e suplicasse por iluminação espiritual para me encontrar novamente. Os versos que mais me marcaram foram “Sempre desejei poder encontrar/Alguém tão lindo como você/Mas no processo, esqueci/Que eu também era especial”. Essa parte diz tudo. Tatuei os últimos dois versos junto à capa do álbum em minha panturrilha direita. Na esquerda, um autorretrato para nunca mais esquecer quem eu sou.

Foto: Arquivo pessoal

Esse processo do qual Madonna fala foi um dia estático, quando eu e ela nos encontrávamos no buraco. O movimento de voltar pra si e lembrar que também somos especiais é que o torna cíclico. Em “Easy Ride”, última canção do álbum, Madonna canta “Quando toco o chão, completo o ciclo para meu lugarzinho e estou em casa”. Esse lar, pra mim, foi a sensação de lembrar que também sou especial e tenho meu valor único nesse mundão de gente diferente. Esse processo é extasiante. “X-Static” é uma locução que diz “Ex-Estático” e é, ao mesmo tempo, homófona de “Ecstatic”, extasiante. Essa música é tão importante para ela que deu nome a uma instalação artística que ela fez com o Steven Klein pouco antes de ser lançado o álbum, com direito a um livro raríssimo com várias fotos da instalação e um ensaio fotográfico com Madonna dando vida a arquétipos femininos que pairam entre pulsões de vida e de morte.

American Life se divide em dois eixos criativos. O primeiro é composto por músicas eletrônicas bastante frenéticas, com batidas que brincam com sons de computadores e suas falhas e vocais robóticos. Essas canções dizem respeito às críticas sociais que mencionei no início desse texto. Já o segundo eixo contém canções mais pessoais que exploram a acústica e os vocais crus de Madonna. São músicas sobre suas crises existenciais, seus filhos, seu então marido Guy Richie e sobre suas reflexões. Acho que ela quis balancear o caos do mundo com seu caos interno. Há, no entanto, uma exceção: a contraditória Mother and Father, que com sua sonoridade eletrônica dançante e frenética carrega em sua letra dores e traumas das relações de Madonna com seus pais.

A média das notas da crítica para o álbum foi 60, o que só mostra que meu gosto musical estaria fadado à ruína se me importasse tanto com essas notas. American Life é uma experiência que me salvou em vários momentos da minha vida. É meu álbum preferido de Madonna, enquanto “X-Static Process” é minha música preferida. Essa canção sempre me ajuda a lembrar quem eu sou e do amor que tenho por mim mesmo. Desde que a conheci, e com o passar do tempo em que ela foi me afetando, percebi o quão confortável e gostoso é estar na minha pele, ser eu mesmo. Saio e volto a mim mesmo pra perceber que, mesmo com todas as mudanças, eu sei sim quem eu sou. Extasiante processo de se amar.

Foto: Arquivo pessoal

Ouça o American Life na playlist a seguir:

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Gabriel Monteiro
EUFORIA
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Um pesquisador de Comunicação apaixonado por música pop. Nas horas vagas também sou designer, cozinheiro, manicure… O que importa é ter criatividade.