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Nas entrelinhas de Amado, da Barra ao Futuro

Capitães da Areia é uma lição de vida atemporal

Gabriela Moraes
EUFORIA
Published in
5 min readAug 16, 2020

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Grande parcela de influência na escolha do meu nome veio de Jorge Amado. Desde pequena eu ouço sobre a referência vinda dos escritos dele, bem como escuto sempre a voz de Gal Costa ressoando “Gabriela” inúmeras vezes em um mesmo verso. Confesso que amo. O que eu não sabia era que, tempos depois, Amado seria também responsável por uma das obras literárias que mais me cativaram no decorrer dos meus 21 anos.

Capa de uma das versões do livro Capitães da Areia (Foto: Reprodução/Amazon Brasil)

Capitães da Areia (sim, “da” e não “de” areia), de 1937, foi uma recomendação muito especial vinda de uma grande amiga. Um verdadeiro presente que vai ficar para sempre comigo. Obrigada, Clara. A história, que foi censurada na época da ditadura militar, se passa na capital da Bahia e é uma denúncia social incontestável que perdura até hoje.

Os capitães da areia eram meninos, crianças, que vagavam pelas ruas de Salvador pedindo dinheiro e, se a vida desse brechas, tomando aquilo que a injustiça nunca lhes permitiu ter. Enquanto eu lia as palavras de Jorge Amado, a imagem das ruas do meu bairro aparecia de relança nas entrelinhas da história. A história recebeu esse nome pois muitos momentos da vida dos garotos se passam na praia e cenas marcantes da trama tiveram o mar como espectador.

É interessante perceber que desde o começo ficamos ligados, comovidos, abismados, tocados, indignados com tudo que acontece naquelas páginas. Ao mesmo tempo, percebemos que tudo ali ainda acontece, e não tão distante de nós ou da nossa realidade.

Grande parte da minha vida eu morei na periferia. Talvez, justamente por estar aqui, percebo que nasci em uma posição de privilégio incontestável frente a muitos que dividem esse espaço comigo, e a minha primeira percepção sobre isso veio ainda na infância, quando eu tinha pouco mais que 8 anos e sequer sabia pronunciar as palavras pri-vi-lé-gio e in-jus-ti-ça rapidamente.

Um grupo grande de crianças se reunia religiosamente todos os dias da vida para brincar de esconde-esconde, bandeirinha ou jogar dominó com regras inventadas na hora. Duas dessas crianças eram irmãs, daquelas que a mãe combina as iniciais. Dois Jotas. Vou chamá-las de João e José — os nomes reais ficam para os que lhes conheceram. Eles tinham personalidades extremamente distintas.

João, o mais velho, era bem tímido e um pouco sisudo, não aparecia sempre para brincar; às vezes ele estava trabalhando. O trabalho? Era aviãozinho e, quando mandado, roubava à mão armada em troca de uns trocados. Ele tinha 13 anos. José tinha 12, era mais aberto, gargalhava alto, nele a ingenuidade ainda tomava de conta; sempre comentava que tinha medo que algo de ruim acontecesse com o irmão e dizia sempre que orava a Deus, pedindo que José saísse daquilo. João saiu, mas da pior forma possível: morto, aos 13 anos. Dizem que foi um tiro no peito, no entanto ninguém sabe ao certo como morreu a criança. “Mandaram matar”. Simples assim.

No mesmo ano que isso aconteceu, João sumiu por uns tempos da nossa rua. Lembro da vizinhança se perguntando por onde ele andava, mas ninguém sabia. Dez anos se passaram. Eu mudei de casa, de bairro, de cidade, de estado, fui e voltei. Na volta tive uma surpresa: João tornou a andar aqui na rua. Agora na figura de um homem magro, dentes amarelos, pés descalços e, muitas vezes, arma na cintura. Ele não mexe com ninguém, nós somos parte da história dele. Amigos que se confundem com família, como o próprio afirma. Vez ou outra um prato de comida e um copo d’água é a forma que encontramos de dar carinho ao menino. Homem.

No romance de Amado, as crianças passam por muitas situações que geram comoção só de ler

Vou retomar um pouco a Capitães da Areia. Na obra, as crianças viviam em um trapiche, como uma família mesmo, manifestavam nitidamente o desejo de serem apenas crianças. O destino, no entanto, não os permitiu. Pedro Bala, Professor, João Grande, Dora, Sem-pernas, Volta Seca, Gato e todos os outros tiveram que assumir posições severas muito cedo, enfrentar aquilo de mais árduo que a vida pode oferecer a alguém: a injustiça.

Algumas artimanhas eram criadas por eles para que pudessem, mesmo que rapidamente, sentir um pouco do sabor de viver uma vida justa, como quando o personagem Sem-pernas se infiltra na vida de uma família e sente como é, pela primeira vez na vida, o amor e cuidado que tanto procurou. Alguns outros encontram resquícios de afeto no ato sexual, na vida noturna, em jogos e em cenas e cenários totalmente distantes do que entendemos como infância.

No romance de Amado, as crianças passam por muitas situações que geram comoção só de ler, imaginar, então, é um exercício doloroso. Abusos que marcaram individualmente a trajetória de cada um dos personagens, cada qual com seu trauma, seu esquecimento, sua fragilidade disfarçada de força.

Hoje percebo que João e José foram os capitães da areia que eu vi passar pelos meus olhos, pela minha história. Eles despertaram em mim a curiosidade de saber por que eu tinha casa para ir depois de brincar e eles não. Eu li um clássico da literatura brasileira pensando neles, que só sabiam assinar o próprio nome.

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As nuances do livro abrem nossos olhos a todo instante para o fato de que, mesmo com muita malícia, esperteza e sagacidade para sobreviver, aqueles meninos não passavam de crianças. A inocência, carência e pureza estavam ali sempre presentes. Estavam? Estão. Estão, aqui e alí sempre presente. O romance de Jorge Amado segue sendo vivido todos os dias, por ruas, vielas e avenidas, no morro perto do mar e no chão de asfalto falhado, mal saneado e pouco lembrado, da Barra ao Futuro.

Encerro com uma pergunta: por que o tempo passa, as coisas mudam, as pessoas vivem, morrem, revoluções acontecem e no fim a narrativa continua a mesma?

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