Foto: Reprodução/Geleia Geral

No dia em que fui mais feliz…

Minha saída do armário ao som de Adriana Calcanhotto

Juliana Ojuara
EUFORIA
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10 min readOct 23, 2020

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Imagino que para todo mundo há momentos marcantes na vida em que um acontecimento específico torna-se uma espécie de divisor de águas, em diversos sentidos. Para mim, um desses momentos foi em 2014. Adriana Calcanhotto conduziu a trilha sonora de um acontecimento e dos eventos que se sucederam até sua superação.

Veja bem, eu estava trabalhando em um emprego fixo e havia ingressado em uma faculdade particular. Trabalhava praticamente para pagar o curso de administração de empresas e manter o emprego na área em uma empresa de transporte. Foi um período de muita correria, poucas horas de sono e muitas dentro de transporte coletivo, além de má alimentação e nenhuma vida social. Tudo isso contribuiu para o processo de negação que estava desenvolvendo em relação à vida amorosa — que também não existia — pois embora eu quisesse me relacionar com alguém, tinha que lidar com o sentimento de frustração que me acometia sempre que beijava um menino.

E é exatamente por isso que beijei poucas vezes durante a minha adolescência. Meu primeiro beijo foi aos 14 anos, muito por conta da pressão de amigas, o segundo foi aos 16, por pensar que poderia nutrir um sentimento por alguém, e o terceiro foi aos 18, mais pela carência do que por qualquer outra coisa. Detalhe: sempre com o mesmo menino.

Beijar era muito estranho para mim. Comecei a pensar que isso se deu pelo fato de eu ter beijado um único menino até então. Ledo engano. Beijei outro menino na faculdade uns dois anos depois e foi pior. Para tentar explicar o que eu sentia devo dizer que era como se eu estivesse sendo usada, pois o menino curtia muito o momento, eu sentia seus batimentos, poros eriçados, sua excitação acontecendo, mas em contrapartida comigo não havia nada disso, como se eu fosse oca e não houvesse nada dentro de mim, nem coração ou sangue nas veias. Nada. Me sentia mal, me arrependia logo em seguida, era péssimo. Até então não havia cogitado ser lésbica, primeiro por que isso era visto como um desvio, algo ruim; segundo por que quando a ideia passou na minha cabeça, em 2012, eu era aluna de um cursinho e uma das poucas amigas que fiz reagiu mal. Eu contei pra ela que havia sonhado que uma de nossas colegas — que sabíamos que era homossexual — me beijou do nada e que eu gostei. A menina fez uma careta e soltou um “eca”. Eu fiquei com vergonha e rechacei qualquer pensamento semelhante nos meses seguintes.

Eis que em 2014 me deparo com a informação de que um menino que era meu amigo estava apaixonado por mim. Na mesma época, havia uma menina que eu achava muito fofa e de maneira involuntária procurei me aproximar o máximo que pude dela, queria ser amiga. Até que consegui. Trocava um “oi, tudo bem” quando a encontrava, sentava ao seu lado no ônibus, adicionei no Facebook. Em pouco tempo de conversa no Messenger já estávamos trocando mensagem por WhatsApp. Já o menino, que não tinha conta no Facebook nem WhatsApp, aproveitava minha companhia o máximo no caminho de volta do trabalho para casa.

Não sei explicar, talvez quem for LGBTQIA+ e estiver me lendo consiga entender. Com quase 22 anos não conseguia lidar com uma confusão que, parando pra refletir hoje, penso que era bobagem, mas naquele momento não: queria entender como eu não conseguia me atrair por aquele menino que tanto gostava de mim, e, ao mesmo tempo, me enganava ao pensar que aquela vontade de estar perto daquela menina era só admiração e carinho de amiga. Então uma voz do quinto dos infernos me falou: “como você sabe que não gosta se nunca experimentou?”. Olha, se você que está lendo estiver se fazendo essa pergunta, muito cuidado. Pessoas não são sabores de sorvete. Bom, eu até neguei o primeiro pedido de namoro que o menino me fez, alegando não gostar dele como ele de mim, mas na segunda vez resolvi arriscar. Para resumir a história e evitar relembrar isso, considero esse um dos maiores erros que cometi. O relacionamento durou menos de três meses. Havia chegado a hora de parar de me enganar.

Enquanto isso, uma amiga do trabalho me emprestou o CD de Adriana Calcanhotto da série Perfil, da gravadora Som Livre. Trata-se de uma coletânea que reúne 13 músicas de sucesso da cantora. Converti todas as músicas no formato MP3 e as salvei no meu celular. Nos meses que seguiram eu ouvi essa coletânea sem trégua. Foi a trilha sonora perfeita para um momento de explosão de sentimentos desordenados. É curioso porque cada música faz parte de trabalhos diferentes da carreira da Adriana, tiradas de contextos diferentes, então não seguem uma linha cronológica, não contam uma história específica, não há um conceito embutido, é uma coletânea apenas. Mas a maioria das músicas são melancólicas e tratam de paixão, desilusão, raiva, amor não correspondido, e até término.

Capa e contracapa de Perfil (Imagens: Divulgação/Som Livre)

Com exceção de “Cariocas” e “Marina”, que são músicas que ouvi pouco por não gostar delas, todas as outras canções me fazem lembrar de sentimentos específicos que minha aproximação com essa menina desencadeou.

“Mais Feliz” me lembra os poucos momentos que tinha com ela e que eram os mais felizes do meu dia: Rimas fáceis, calafrios / Fure o dedo, faz um pacto comigo / Num segundo teu no meu / Por um segundo mais feliz. “Vambora” me faz lembrar a agonia de não saber se ela sentia o mesmo por mim ao se expressar muito pouco ou me corresponder vez sim outra não: Entre por essa porta agora / E diga que me adora / Você tem meia hora / Pra mudar a minha vida / Vem, vambora / Que o que você demora / É o que o tempo leva.

“Maresia” expressava minha vontade de não sentir nada, de sumir, de não me sentir pequena quando ela passava muito tempo sem falar comigo direito por motivos que eu nunca soube: Ah, se eu fosse marinheiro / Era eu quem tinha partido / Mas meu coração ligeiro / Não se teria partido / Ou se partisse colava / Com cola de maresia / Eu amava e desamava / Sem peso e com poesia.

“Senhas” e “Esquadros” são as músicas que considero mais pessoais da cantora. Foram elas que me deram curiosidade em saber mais dela e nesse processo descobri que era casada com uma mulher há décadas e que seu irmão vive com deficiência visual. A primeira, “Senhas”, expressa a irritação de Adriana com convenções sociais de fachada como “bom gosto” e “bons modos”.

Eu não julgo a competência / Eu não ligo pra etiqueta / Eu aplaudo rebeldias / Eu respeito tiranias / Eu compreendo piedades / Eu não condeno mentiras / Eu não condeno vaidades / Mas o que eu não gosto é do bom gosto / Eu não gosto do bom senso / Eu não gosto dos modos / Não gosto

A segunda, “Esquadros”, fala da necessidade de padronizar tudo, enquadrar, se prender no individualismo e observar tudo de dentro, pelas janelas que nos distanciam de tudo. Eu estava descobrindo um sentimento que nunca tive por uma pessoa mas isso não podia ser expresso, ainda estava no armário, e viver isso sem parecer estar desrespeitando alguém era inevitável. Via as fachadas que as pessoas constroem para se esconder:

Pela janela do quarto pela janela do carro / Pela tela, pela janela / Quem é ela? Quem é ela? / Eu vejo tudo enquadrado / Remoto controle

A música “Por isso eu corro demais” é uma regravação do Roberto Carlos que Adriana lançou em 1998. Essa serve perfeitamente para demonstrar o quanto eu fiquei arriada os quatro pneus por essa menina. Hoje eu rio lembrando de como eu demonstrava meus sentimentos por ela e era ingênua em pensar que ninguém pudesse perceber. Eu passava o dia pensando nela, se eu visse alguém vendendo trufas de chocolate comprava uma para ela, inventava motivos para entrar no setor onde ela trabalhava.

Então eu corro demais / Sofro demais / Corro demais / Só pra te ver, meu bem

Contudo, a música mais emblemática para mim é “Inverno”. Ela descreve um marco, o tal divisor de águas que citei no início desse texto. Houve uma época em que eu não pensei que fosse capaz de me apaixonar por alguém e achava errado ou até cômica a forma como minhas amigas ficavam quando apaixonadas. Eu paguei caro por isso. Quando eu a beijei, minha cabeça quase explodiu. Foi de uma felicidade tão grande, um misto de “É ISSO!” e “COMO EU NUNCA FIZ ISSO ANTES???” com “ESTOU PERDIDA!”. Se antes eu parecia boba, fiquei abestalhada. Esse beijo consolidou o que eu já sabia e não queria admitir: eu estava apaixonada por ela, e tudo que eu pensei que eu era morreu ali. Desde então, foram dias seguidos de alegria e tristeza ao mesmo tempo.

No dia em que fui mais feliz / Eu vi um avião / Se espelhar no seu olhar até sumir / De lá pra cá não sei / Caminho ao longo do canal / Faço longas cartas pra ninguém / E o inverno no Leblon é quase glacial

A carcaça dura e inquebrável que me envolvia se desmanchou no ar e fiquei sem saber quem eu era, o que estava fazendo, o que queria. Soa bobo agora, mas até então eu nutria uma segurança enorme na minha vida. Sempre fui organizada, muito séria, me planejava para tudo e gosto de ter o controle total das coisas. A diferença é que na época pensava que podia, hoje sei que não.

Há algo que jamais se esclareceu / Onde foi exatamente que larguei naquele dia mesmo / O leão que sempre cavalguei / Lá mesmo esqueci que o destino / Sempre me quis só / No deserto sem saudade, sem remorso só / Sem amarras, barco embriagado ao mar

Foto: Reprodução/We Heart It

Como devemos saber, nada na vida é para sempre. “Metade” foi como eu fiquei depois que discutimos e ela usou isso para se afastar de mim. Sem notícias e dispensada por ela, me descontrolei: Eu perco as chaves de casa / Eu perco o freio / Estou em milhares de cacos / Eu estou ao meio / Onde será / Que você está agora?

A pequena briga que tivemos foi fútil e ali descobri que ela não estava tão afim assim de mim. Foi a deixa perfeita para ela cortar relações. Mesmo sabendo disso, fui atrás da humilhação, tentei falar com ela, mandei mensagem, mas no fim tive que aceitar que nunca iria acontecer algo além daquele beijo. É como diz “Naquela Estação”, a última música da coletânea: Você entrou no trem / E eu na estação vendo o céu fugir / Também não dava mais para tentar / Lhe convencer a não partir / E agora, tudo bem / Você partiu

“Devolva-me” trata de um término. Na letra uma pessoa pede para que coisas como cartas e retrato sejam devolvidos. A outra pessoa com quem tinha um relacionamento está em outro. Em verdade, eu não tive um relacionamento com a menina que beijei, também não havia coisas para pedir de volta. Só tinha certeza de que ela havia engatado uma relação com outra dias após nossa discussão. Inclusive pude ver sua foto de perfil no WhatsApp com a mais nova namorada. Um tapa na minha cara. É muito problemático pensar em ter uma pessoa para si e, quando notar que não tem, ficar inconformada. Acredito que “Mentiras” se trata disso, não aceitar essa condição, não seguir em frente. Inclusive, nos parâmetros das discussões de hoje sobre relacionamento tóxico, amor romântico, posse, não-monogamia, essa música pode ser completamente cancelada:

Eu vou escrever no seu muro / E violentar o seu rosto / Eu quero roubar no seu jogo / Eu já arranhei os seus discos / Que é pra ver se você volta / Que é pra ver se você vem / Que é pra ver se você olha pra mim

Ai Gabi, só quem viveu sabe como é a agonia de estar apaixonada por alguém pela primeira vez. Mas para mim teve um sabor diferente já que não aconteceu na adolescência e, embora eu tenha sofrido muito e ficado desnorteada por vários meses, foi necessário para me acordar do entorpecimento que me impedia de pensar algo além do que a sociedade queria que eu pensasse: que eu era hétero e que meu destino era casar com um homem. Não, na verdade eu sou lésbica e a tal menina foi a primeira de muitas que estavam por vir. A Adriana Calcanhotto nem sabe, mas os maiores sucessos da carreira dela até 2001 embalaram a minha saída do armário em 2014. Foi um ano avassalador, que me mostrou que eu era sim capaz de amar, que eu perdi um bom tempo me forçando a ficar com meninos.

Nada contra se relacionar com meninos, mas não peguei gosto (risos).

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Juliana Ojuara
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