(Foto: Beatriz Moraes)

A Umbanda é paz e amor

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10 min readNov 29, 2016

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Uma religião nascida no Brasil, conhecida por poucos brasileiros

Beatriz Moraes e Thainá Araújo

Quando uma cortina branca quase transparente se abre, é possível ver homens e mulheres vestidos de branco. Ritmicamente, todos começam a bater na palma da mão. “Refletiu a luz divina, com todo seu esplendor”, eles cantam após o “salve ao altar” e os “salves” aos santos. Imagens de santos católicos conhecidos, como São Jorge e São Sebastião, se misturam às outras imagens de santos negros.

Os tapetes de palha usados para deitar como reverência, lembra os cultos em mesquitas, assim como a “defumação”: Duas pessoas defumam o ambiente, e as pessoas que estão assistindo a cerimônia. É um ritual para purificar. O cheiro é agradável, e o objeto é similar ao defumador usado durante as cerimônias católicas, porém, é menos luxuoso. Reza-se a oração que “Jesus nos ensinou” o Pai Nosso.

Começa o canto dos marinheiros. Os santos baixam aos poucos, coletivamente. Auxiliares com cigarros, cachimbos e essências oferecem às entidades de acordo com sua preferência. Uns fumam, outros acendem vela, isso varia de cada um. Alguns colocam até chapéu de marinheiro. O ambiente fica tomado pela cheiro do cigarro, misturado as essências, com cheiro de alecrim à alfazema. A fumaça é intensa.

- Casa de Pai Benedito de Aruanda (Foto: Beatriz Moraes)

Apesar do dia ser especial de “marinheiros”, havia preto-velho, caboclo e outros guias espirituais, popularmente conhecidos como santos. As consultas individuais são feitas por senha, correspondente à ordem de chegada das pessoas. Cada um falava sua aflição, angústia, problemas de saúde, em busca de um conselho, uma prece, uma benção. Conheci de verdade a expressão “canta pra subir”, quando ao final de todas as consultas, em outro canto, as entidades se despedem com facilidade e os médiuns voltam ao seu estado natural.

Tudo isso aconteceu numa noite de quinta-feira em São Caetano do Sul, na Casa de Pai Benedito de Aruanda. Conhecemos a gira, nome dado ao processo descrito acima — em que várias entidades de uma determinada categoria se manifestam através da incorporação dos médiuns.

Nasce a religião da Caridade

No dia 16 de novembro de 1908, na rua Floriano Peixoto, 30, bairro Neves, São Gonçalo do Rio de Janeiro, às 20h, nascia a Umbanda. Zélio Fernandino de Moraes e Caboclo das Sete Encruzilhadas foram os responsáveis pelo surgimento dessa religião verdadeiramente brasileira, que traz elementos da cultura indígena, africana e européia da época.

- Zélio Fernandino de Moraes, fotografado em 1939 (Foto: Arquivo TESNP)

Zélio, aos 17 anos, se curou de uma paralisia que os médicos diziam não haver cura e começou a sofrer estranhos “ataques”, que eram caracterizados por posturas de um velho, falando coisas sem sentido e desconexas, como se fosse outra pessoa que havia vivido em outra época. Para entender o “milagre” que curou Zélio e suas estranhas atitudes que estavam se manifestando, sua mãe, D. Leonor de Moraes, levou Zélio a uma curandeira chamada D. Cândida, figura conhecida na região onde morava e que incorporava o espírito de um preto velho chamado Tio Antônio. Tio Antônio recebeu o rapaz, e fazendo as suas rezas disse que ele possuía o fenômeno da mediunidade e deveria trabalhar com a caridade. Então, no dia 15 de novembro de 1908, Zélio foi levado a conhecer a Federação Espírita de Niterói.

Chegando na Federação presidida por José de Souza, dirigente daquela Instituição, foi convidado a participar da sessão e sentar-se à mesa. Logo em seguida, contrariando as normas do culto realizado, Zélio levantou-se e disse que ali faltava uma flor. Foi até o jardim, apanhou uma rosa branca e colocou-a no centro da mesa onde realizava-se o trabalho. Tendo-se iniciado uma estranha confusão no local, ele incorporou um espírito e simultaneamente diversos médiuns presentes apresentaram incorporações de caboclos e pretos velhos. Mas o espiritismo da época não aceitava “espíritos atrasados” como eles mesmos diziam. Para eles, as origens sociais e cor negra que esses espíritos tinham quando eram encarnados, significa que são menos desenvolvidos e, portanto, não podem ser aceitos nos rituais das casas espíritas.

Foi então que o Caboclo das Sete Encruzilhadas, que estava incorporado em Zélio, falou que criaria uma religião em que todos pudessem ser aceitos, sem preconceito e discriminação. No dia seguinte, em frente à casa de Zélio, havia uma multidão esperando para ver se aquilo tudo era verdade e conhecer a nova religião. O culto começou, incorporações vieram à tona, as curas aos que precisavam aconteceu e os ensinamentos sobre humildade, igualdade e caridade começaram a ser passados a população.

Então foi estabelecido normas que seriam utilizadas no culto, com sessões diárias das 20:00 às 22:00 horas. Os participantes deveriam estar vestidos de branco e o atendimento a todos seria gratuito. O grupo que acabara de ser fundado recebeu o nome de Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, e assim nasceu uma nova religião chamada Umbanda.

A razão da palavra “umbanda” decorre do vocábulo “m’banda”, usada pelas tribos Quimbundo da África, para designar os seus sacerdotes, e que era também uma palavra sagrada dos índios tupis. Portanto, uma tradução livre indicaria “Tenda de Sacerdotes”.

Em 1918, Zélio criou sete novas tendas. Apenas uma delas ficou no distrito de Neves, pois a maioria foi para o Rio de Janeiro, capital do país na época, o que pode ter contribuído para a expansão da crença por todo território nacional.

Nomes ligados aos santos católicos

O uso do termo espírita e de nomes de santos católicos nas tendas fundadas, é ligado ao fato de que naquela época não se podia registrar o nome Umbanda. Porém, nomes de santos católicos se vê desde as senzalas.

Os senhores escravagistas, acostumados a aplicar castigos físicos em seus escravos, associavam as doenças e males ocorridos a seus familiares aos rituais feitos nas senzalas logo após os espancamentos dos negros. Buscando evitar isso, os senhores da Casa Grande trataram de “catequizar” os escravos, obrigando-os a cultuar os santos da religião católica, proibindo o que denominavam “macumba”. Com a distribuição das imagens a serem cultuadas, os escravos começaram a associar os santos com as entidades do Candomblé. A representação das matas, o orixá Oxóssi, foi ligado a São Sebastião, não pela imagem humana, mas por ela se apresentar morto e atado a uma árvore, ícone da natureza. O simbolismo da guerra de Santa Bárbara (Joana d’Arc) foi associada a Iansã, a católica Nossa Senhora dos Mares com Iemanjá, Oxalá com Jesus, e assim com todas as entidades.

Essa associação gerada como recurso para conseguir cultuar os deuses da África dura até hoje, e pode ser visto nos altares das casas de Umbanda.

A religião nos dias atuais

A Umbanda cresceu no decorrer de sua origem, e hoje existem diversas tendas da religião por todo o Brasil. A TENSP (Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade), citada acima, continua “viva” e passando de gerações a gerações para continuar o trabalho do fundador Zélio de Moraes.

Atualmente, a TENSP é administrada por Leonardo Cunha, bisneto de Zélio, a quarta geração da família atuando na direção da casa. E assim, a missão que foi atribuída a Zélio continua com a sua família, com o apoio da espiritualidade e com doações dos trabalhadores e pessoas que participam da assistência para manter a casa até hoje.

Mauricio Ribeiro, 48 anos, professor universitário, médium e segundo tesoureiro da TENSP, teve sua mediunidade indicada na casa que foi se desenvolvendo com trabalhos e sessões na tenda com o decorrer do tempo. Maurício que já está há um bom tempo trabalhando na casa, acredita que mesmo com o crescimento da religião, os ensinamentos que surgiram desde Zélio de Moraes, continuam sendo os mesmos. “Nossa missão é manter os fundamentos conforme trazidos pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, Pai Antônio, Orixá Malet e outros Guias iluminados que participaram e participam dos trabalhos em nossa casa. Entendemos que a questão principal, que diferencia o que é e o que não é Umbanda, é a prática da caridade, isto é, a ação em benefício ao próximo, realizada sem cobrança e com respeito ao livre-arbítrio de todos os envolvidos. Também entendemos que este direcionamento implica em não haver matanças de animais, uso de sangue e outras ações que não são condizentes com o princípio do amor fraterno e universal.”

A FUESP, Federação de Umbanda do Estado de São Paulo atualmente conhecida como FUCESP, Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo, foi a primeira federação fundada em São Paulo e teve como objetivo dar mais segurança e estabilidade as tendas e terreiros de Umbanda. A FUCESP, assim como as outras federações que surgiram em todo o Estado e em todo o Brasil, tem o papel de prestar assistência aos templos filiados e dar proteção com advogados, festas realizadas para as entidades e com os rituais em geral dos umbandistas.

Carlos Roberto Salun, conhecido como Pai Salun, presidente da FUCESP, está na Umbanda desde 1974 e 25 anos a frente da presidência na Federação. Ele conta que a Umbanda cresceu com o decorrer do tempo, está sendo mais aceita, porém muitas pessoas não olham para ela como uma religião de verdade, não vêem como um lugar para se ir sempre, para agradecer aos santos e evoluir espiritualmente, vêem apenas como um lugar para se “curar” de problemas físicos e emocionais da vida. “As pessoas procuram as casas de Umbanda por problemas sem nexo. Querem arrumar trabalho, marido, mulher, brigas e tudo que se verifica no cotidiano. Mas isso é culpa dos antigos de minha idade para mais, pois colocaram na cabeça das pessoas que somos um pronto socorro e que tudo resolvemos, as pessoas nos procuram querendo algo, e se dermos o contra saem falando mal.”

Pai Salum explica que a Umbanda é sim uma religião para ajudar nos conflitos da vida, mas não é apenas isso, pois é uma religião como outra qualquer, e merece o mesmo respeito. “A Umbanda ajuda a todos, ajudamos nas angústias da vida e nos problemas físicos e emocionais que as pessoas precisam, porém não é apenas isso, somos uma religião a fim de trazer ensinamentos às pessoas, levar as pessoas a praticar a caridade e o amor ao próximo”.

A religião nascida no Rio de Janeiro, foi declarada patrimônio imaterial da cidade, pelo atual prefeito Eduardo Paes, no Diário Oficial do dia 8 de novembro de 2016.

- Recorte do Diário Oficial da Prefeitura do Rio, 08 de novembro de 2016

Linhas de Direita e Esquerda

As casas de Umbanda continuam atuando desde o princípio com o objetivo de ajudar a todos e ter como fundamento a caridade. Os cultos nas tendas umbandistas são realizados semanalmente, e cada dia é direcionado a alguma entidade.

Separados em linhas Direita e Esquerda, a diferença entre as linhas intervém do grau de desenvolvimento desses espíritos. Os espíritos de direita são considerados mais evoluídos dos que os de esquerda. Portanto, ambos vêm para evoluir e ajudar o próximo.

Na direita, podemos citar os Caboclos, Pretos-Velhos, Baianos, Erês, Marinheiros e outros. Na esquerda, os Exus, Pomba Giras e os Exus-Mirins.

Contudo, ainda existem certas linhas de trabalho que parecem se adaptar a tudo, como os malandros, ciganos, boiadeiros e até alguns intermediários de Ogum.

Muitas vezes a linha de esquerda é considerada como os espíritos do mal, associados ao diabo por suas comparações de imagens com às da católica. Mas não é bem por aí

De uma maneira mais clara, podemos dizer que os Exus e Pomba-giras trabalham consumindo e absorvendo os desequilíbrios, as viciações, os desvirtuamentos e a negatividade. Enquanto a direita trabalharia reestruturando, levando o ser a uma evolução moral, com reestruturação interior.

Oferendas realizadas para as entidades Exus no Santuário Nacional da Umbanda. Santo André/SP (Foto: Beatriz Moraes)

Intolerância

É necessário mais do que um tema de redação no ENEM. As religiões de matriz africana como a umbanda, que tem algumas raízes com a religiosidade do país, sofrem as consequências de um Brasil majoritariamente cristão.

Após uma publicação na Folha Universal em 1999, com o título de “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, com uma imagem da Mãe Gilda, uma iyalorixá de Salvador (sacerdote do candomblé), ela e o marido tiveram sua casa invadida, sofreram várias agressões verbais e físicas e depredação do seu terreiro.

O caso tornou-se famoso. Em 2007 foi instituído o dia 21 de janeiro como o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa, data do falecimento de Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, em 2000, decorrência de um infarto causado por problemas de saúde agravados pela perseguição religiosa que sofreu. Em entrevista, o médium Maurício Ribeiro relatou que sofreu preconceito em seu trabalho, o proprietário de uma empresa que trabalhou, falava abertamente que não admitia qualquer funcionário que não fosse cristão, isto é, católico ou protestante.

“Para entrar na empresa, perguntaram qual era minha religião. Eu disse que tinha formação católica. Não menti, porque de fato esta foi minha formação religiosa, mas omiti meu vínculo com a Umbanda. Trabalhei um bom tempo ali. Quando saí, por decisão minha, ele disse que fui uma das melhores pessoas que trabalhou ali. Ao final, pouco antes de sair, um dos filhos viu uma guia que eu carregava. Com receio, fui obrigado a dizer que era um artesanato da minha esposa.”, relata.

Esse pré-julgamento, às vezes explícito ou velado, é crime, e pode ser denunciado. O Disque 100, principal canal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, recebe desde 2011 denúncias de intolerância religiosa. No ano de 2011 foram 15 denúncias, em 2015, 556 casos relatados.

A falta de conhecimento sobre a religião, aliada ao interesse de algumas denominações religiosas atuarem como empresas, ou seja, buscando fiéis para suas igrejas, como se estivéssemos em um mercado religioso. Esses são os motivos citados por Maurício, tentando explicar porque há preconceito.

Ao ser questionado sobre o que falta na Umbanda, que outras religiões já têm, Maurício foi claro. “Nada. Ao contrário, a Umbanda tem muito a ensinar sobre humildade, amor e caridade.”

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Revista digital produzida por estudantes do 6º semestre de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo.