Das Patologias do Social e do autoconhecimento

Texto escrito a partir da palestra ministrada por Paulo Beer, Pedro Ambra e João Domiciano na II Feira de Livros da Unesp

Revista Torta
revistatorta
4 min readApr 23, 2019

--

Por Rafael Junker Simões

Livro Patologias do Social: Arqueologia do Sofrimento Psíquico

A obra acima, além dos três organizadores Vladimir Safatle, Christian Dunker e Nelson da Silva Junior, apresenta textos e trabalhos de outros 56 autores. É uma obra densa, complexa, e que aborda temas pertinentes para o entendimento da vida humana contemporânea. No dia 12 de abril de 2019, no Auditório do Instituto de Física Teórica da Unesp em São Paulo, Paulo Beer, João Felipe Domiciano e Pedro Ambra palestraram sobre esse livro que ajudaram a construir.

Foram 20 minutos de atraso até que os três palestrantes sentaram-se à grande mesa do Auditório. Atrás deles, um quadro verde e uma tela sobre a qual a “imagem de descanso” de um computador era projetada. Por ser a “imagem de descanso” e não qualquer slide de power point, era evidente que a palestra seria analógica.

Beer, Domiciano e Ambra separaram suas falas e começaram a discursar sobre a obra. Antes de mais nada, era preciso introduzir os presentes no contexto de produção do livro, que é resultado de um bom tempo de pesquisa e discussão entre oito grupos alocados no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, conhecido como Latesfip. A obra surge a partir da necessidade de compreender como o ser humano se relaciona com as patologias, as mudanças na gestão dos sofrimentos psíquicos, as patologias próprias à identidade, a desvalorização do subjetividade na causa dos sofrimentos psíquicos e outras problemáticas.

Os oito grupos dividiram-se por temas que, por sua vez, foram separados cuidadosamente. É importante ressaltar que esses grupos eram compostas por alunos com bolsas que vão da iniciação científica a doutorado. Os temas a serem tratados eram: anomia, narcisismo, fetichismo, esquizofrenia, paranoia, histeria, casos clínicos e corpo.

Feita a apresentação dos núcleos temáticos, os três palestrantes foram intercalando suas falas e comentando resumidamente cada tema. A anomia, extraída das obras do sociólogo Émile Durkheim; o narcisismo, ancorado no dito popular “todo mundo quer 15 minutos de fama”, abordado sob a perspectiva de Freud; o fetichismo como eleição de algo que cause prazer, tratado também a partir da literatura marxista; a esquizofrenia, na qual as raízes do termo remetem à “separação de espírito”, patologia muito comum nas décadas de 60 e 70; a paranoia, que remete à sensação de perseguição e, segundo um dos palestrantes, é uma sensação necessária em tempos de ditadura; a histeria, historicamente tratada como uma patologia feminina, haja vista que a raiz da palavra vem de “útero”, e que corresponde ao mal funcionamento de algum órgão saudável; casos clínicos, sobre o qual os comentários foram pouco; e o corpo, que ocupa o lugar do sofrimento social e é uma noção bem particular da sociedade ocidental.

A palestra continuou seguindo um ritmo de reflexões aprofundadas. Beer, Domiciano e Ambra apresentavam um pensamento muito semelhante em relação às patologias — salvo algumas discordâncias em definições — e mostravam uma visão extremamente crítica quanto à psicologia mais clínica e mais dependente de interesses da indústria farmacêutica.

Os três manifestavam uma visão de uma realidade na qual há a prevalência do consumo como imperativo de existência. E isso é uma das possíveis raízes para parte das patologias e dos problemas sociais que enfrentamos hoje. A atribuição de elementos como felicidade e satisfação pessoal a bens materiais, adquiridos por meio do consumo, acaba tendo como resultado uma sensação permanente de vazio. Porque, entre outras coisas, o consumo e a sensação de bem estar por ele provocado logo se esvai. Passadas duas semanas, um celular de última geração já não parece proporcionar a mesma felicidade de antes.

Tudo isso também está relacionado à necessidade humana de pertencer. A construção da identidade, amplamente dependente dos outros, é perigosa. Ser não pode ser, unicamente, ser percebido. As pessoas constroem suas identidades a partir de grupos aos quais elas passam a pertencer. E essa construção é frágil e geradora de possíveis patologias.

Como forma de desviar desses “problemas” enraizados na sociedade, parece haver uma solução muito simples, porém cuja realização é complexa e extremamente difícil. É preciso conhecer a si mesmo. Paulo Beer, o palestrante mais velho entre os três, comentou que a “cura é quando você internaliza a autorreflexão”. Assim, é preciso pertencer nos seus próprios termos. É preciso estar esclarecido quanto aos mecanismos que trazem a sensação de pertencimento e que constituem a identidade. Não se pode depender exclusivamente dos outros para dizer quem você é.

Por fim, após uma pergunta de uma expectadora da palestra sobre qual era a patologia dos tempos de hoje, Paulo Beer respondeu, sem titubear e com a anuência dos outros dois colegas, que a patologia de hoje é ter uma patologia. E uma das causas disso é o problema de se relacionar consigo mesmo. As pessoas fogem e temem a autorreflexão.

Uma hora e alguns minutos haviam passado quando os palestrantes encerraram o evento. A impressão era que, dali, as pessoas saíram com mais problemas do que quando entraram.

--

--

Revista Torta
revistatorta

Divulgando informações. Projeto de revista digital com contextualização e difusão acadêmico-científica. Faça parte da Torta!