Empreendedorismo: a religião do velho-homem-novo

Carolina Martins
5 min readFeb 8, 2015

Nos últimos anos não se fala de outra coisa senão de novos modelos de negócio, inovações, criatividade, jovens empreendedores que criam as suas próprias empresas, apoios do Estado e micro-apoios dos bancos aos salvadores da economia mundial. Para se ser um empreendedor basta ter uma boa ideia e um bom modelo de negócio ou pelo menos é o que se vende por aí.

A verdade é que o peixe que nos vendem hoje já não é o peixe fresquinho da lota, é aquele do milagre da multiplicação. Uma manobra de diversão, um truque de magia. Vende-se a ideia de que todos podem conseguir vingar num mundo empobrecido pela crise económica, vende-se a ideia (esta pior) de que só não consegue quem não faz por isso, que hoje em dia temos todas as ferramentas à mão de semear, como se fosse pecado não ser empreendedor, como se se merecesse o castigo da fome por se estar demasiado ocupado a sobreviver.

Uma pobre mulher do povo dizia-me ontem: — Isto aqui é tão nu e tão só que a gente ou se agarra a um trabalho e não o larga, ou morre.

inOs Pescadores”, de Raul Brandão

Afinal quem são estes empreendedores modernos que nos vêm dizer que para ter sucesso e contribuir para um modelo económico devemos agir como eles? Ou melhor, que devemos ter sucesso e que devemos contribuir para a economia. Queremos agir como eles? Sentimo-nos na obrigação de o fazer?

Talvez consigam entender se eu usar storytelling e screening.

Para mim, tudo começa quando Ayn Rand descreve o que deveria ser o homem perfeito, um homem individualista, objectivo, livre. Mais um homem novo, um Jesus, um Moisés, um Maomé.

Claro que Rand acaba por formar um grupo chamado “Colectivo”, do qual foi líder/profeta/guru. Um pouco previsível. No seio deste grupo nasce um novo livro sagrado: “Atlas Shrugged”. A liberdade é um best-seller.

Mais tarde, ainda na sequência da construção de um homem-novo, dá-se um boom de empreendedores que em vez de ir para a montanha vão para a Califórnia, um estado solarengo, rico e com o maior investimento militar dos EUA. É mesmo caso para dizer “California Über Alles”. Silicon Valley é o paraíso na terra. Em Silicon Valley o mundo é admiravelmente novo, tudo vale. O que move os que para lá se mudam é a vontade de descoberta, de fazer parte de uma revolução tecnológica, de construir um homem-novo. É o Homo Ex Machina. A mente humana calcula e reorganiza-se de forma lógica conforme o rumo a tomar. Porém, a nossa mente consegue ser mais complexa do que isso. Durante uma experiência de Loren Carpenter com o jogo Pong, descobriu-se uma espécie de “consenso subconsciente”, perfeito para ser usado por governos e estados e empresas, perfeito para fazer com que todas as igrejas apoiem esta nova cosmovisão. Melhor do que um homem-novo, inovador e criativo, é ter como bónus um novo-homem que pode ser desenhado à medida das necessidades da sociedade. Saudemos os empreendedores!

Tudo acaba por tornar-se uma arma que sai barata. A guerra começa em casa. Mascara-se o controlo com a ilusão do desenvolvimento e transforma-se o empreendedor na derradeira arma, nascida com a habilidade de gerar uma infinidade de ferramentas que ajudam a servir e a pregar a boa nova que o profeta do Capitalismo nos traz. Na aura do empreendedor esconde-se a voz que diz que temos de ser homens e mulheres de sucesso por nossa conta e risco ou seremos sempre o refugo, os que não chegaram “lá”, os que estudaram e não passaram da cepa torta, os que deviam ter estudado ainda mais, que deviam ter-se esforçado mais, trabalhado mais e passado mais fome. Deixa-se, por fim, a porta aberta à desculpabilização do Estado no que respeita a sua obrigação social. É que este homem novo é tão velho que cheira a mofo.

Tenho de querer ser aquilo que o capitalismo precisa? De fazer parte de uma religião que me faz pensar que é pecado não ser como os outros, não ser empreendedor, não contribuir para o dito crescimento económico? Desde quando é que “empreendedor” é uma profissão? A minha escola devia ser mesmo atrasada, mas graças aos avanços tecnológicos sei que me vão valer os cursos online de gamification e entrepreneurship.

Ayn Rand não sonhou um homem livre, sonhou um homem que pensa que é livre, um alvo fácil no mundo da informação livre, das redes sociais e dos registos e compras online. Eu não sou um número. Dantes dizia-se muito isto. Eu agora deixei de ser só um número e estou em todo o lado. Foi feita a minha vontade. Agora sou toda a informação que directa ou indirectamente se acumula no histórico digital.

Embora o homem perfeito de Rand viva num mundo sem Estado, isso nunca vai ser o mesmo que viver num mundo sem Poder. Mesmo que o Estado desapareça, o sistema continuará a funcionar porque é o Capital que alimenta o sistema. O Estado é uma formalidade essencial na Democracia dos Mercados.

Basicamente, agora que tudo é de alguma forma mediado pelo Silicon Valley — todas estas camas espertas a carros espertos e tudo esperto — é possível capturar e pôr um preço em todos os momentos que passamos acordados (e a dormir também, parece). Por isso, somos todos convidados a tornar-nos empresários de dados. Claro que, analiticamente, esta “dadificação” de tudo é uma extensão do fenómeno muito mais abrangente do financiamento do quotidiano. Passei muito tempo a tentar descobrir por que é que isto está a acontecer e como é que pode ser parado e tornou-se óbvio para mim que as respostas a estas perguntas tinham muito mais a ver com política do que com tecnologia.

— Evgeny Morozov em entrevista para a new left review (#91 Jan/Fev 2015)

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