Instalações artísticas em diálogo social: contexto concreto e interação líquida
Espaços expositivos convencionais da arte, como museus ou galerias, carregam uma série de papéis e significados, entre eles, tradicionalmente o papel de isolar as peças artísticas do mundo externo, compor o contexto institucional para atribuição de valor, bem como preservar as obras expostas. O público neste caso muitas vezes tem uma experiência imersiva, unidirecional, e visita uma postura passiva, a de espectador. Por outro lado, quando o artista vai a rua, quando as obras, como instalações, estão expostas em ambientes não convencionais, quando estas se integram a um contexto urbano, cria-se então uma espécie de diálogo. Os objetos artísticos ao encontrarem pessoas em seu deslocamento cotidiano, por exemplo, tem poder de despertar consciência, e até provocar um convite à apropriação do cidadão ao espaço público. Esta também é uma oportunidade para que a arte encontre pessoas além dos perfis comuns que frequentam as galerias. Neste caso a obra está além da obra, é um dispositivo de tomada de consciência sobre os aspectos do espaço urbano, político, social, em que está inserida. O público ganha papel ativo, passa de espectador para um agente que se relaciona não só com a obra, mas também especialmente com o ambiente em que a obra está inserida. Este fenômeno é aberto, a instalação se comporta como reverso do fenômeno da reprodução de objetos artísticos. O público ao se relacionar com a instalação adiciona significado, e cada interação é única, é uma experiência pessoal e não pode ser reproduzida, no máximo registrada por vídeos ou fotos, porém nunca repetida.
Um exemplo interessante sobre a concepção de uma instalação fora dos espaços expositivos convencionais, e o quanto este tipo de iniciativa tem potencial de criar um diálogo entre a arte e a sociedade (além da bolha), é a instalação chamada CHUVAVERÃO (2014), do coletivo artístico brasileiro Opavivará. Esta obra foi desenvolvida especialmente para a chamada “Parede Gentil’’, um espaço externo a uma galeria “A Gentil Carioca” que fica localizada na região central do Rio de Janeiro, não por acaso, a estrutura da parede está exatamente na fronteira entre o espaço institucional e o ambiente público. Com um sistema hidráulico e 5 chuveiros, a instalação cria um diálogo quase metafórico entre o comunitário e privado, doméstico e público. A obra CHUVAVERÃO faz uma alusão às antigas fontes de água públicas que existiam espalhadas pela cidade do Rio de Janeiro e fala sobre o direito do cidadão, o bem comum, que é o acesso à água. Propõe uma reflexão sobre a condição de vida das pessoas que visitam, habitam, deslocam-se e convivem naquela região. Um local conhecido por ser muito quente praticamente o ano todo, e altamente urbanizado a partir do concreto em todas as superfícies possíveis. Longe da vista turística das famosas praias do Rio de Janeiro, onde chuveiros são comuns, a instalação encontra um local cinza, de alto fluxo de pessoas de diversos perfis da sociedade, muitos deles menos privilegiados, como trabalhadores informais e sem-teto. A obra tem uma proposta evidente ligada a acessibilidade, durante o tempo da instalação temporária os chuveiros estavam livres para uso de qualquer pessoa que passasse na rua. A obra chama a atenção para questões relacionadas ao (descaso) do bem-estar do cidadão em espaço público, o quanto o meio urbano muitas vezes é molesto para o pedestre, inclusive por diversos fatores incluindo atributos térmicos. A ideia de colocar uma série de chuveiros em espaço público também de certa forma questiona com o “utilitarismo” das cidades modernas, a ideia de produtividade cotidiana imposta, neste contexto, estar “distraído” ou “sem propósito objetivo” no centro de uma grande cidade não é bem visto pela sociedade. A instalação tem um chamado para o bem-estar e também para o aspecto lúdico, carrega uma ideia de celebração, de comunhão, provoca uma quebra subjetiva no pragmatismo duro que habita aquela região.
A instalação é colocada no espaço pelos artistas do coletivo, porém o banho coletivo, a experiência lúdica de intimidade compartilhada só existe com a relação das pessoas com o objeto proposto. A obra é maior que os objetos. A água que refresca e limpa e purifica o corpo e os pensamentos, só entra em fluxo a partir do gesto de quem efetivamente interage com a instalação. Este é um exemplo de uma experiência artística que parte de objetos banais, como 5 chuveiros, mas como proposta de instalação dialoga e depende do espaço urbano, do território específico, do contexto social, para criar uma relação e uma construção de sentido. Esta proposta depende do público ativo para compor a obra. A instalação CHUVAVERÃO chama a atenção para questões do bem comum a partir da interação de pessoas que efetivamente convivem, passam, de alguma forma pertencem ao local. Por mais que a instalação seja temporária, a interação seja líquida, este é um exemplo em que a chamada aura da arte contemporânea se constitui na combinação de fatores, entre eles, a presença do componente social, o protagonismo do espaço, do contexto como fatores do significado, o protagonismo das pessoas na ativação da obra em espaço não convencional, a ideia de projeto de experiência, que é proposto pelo artista, mas que ao mesmo tempo há uma dose de imprevisibilidade de como a interação ocorrerá, de como a proposta será assimilada, o que faz parte da beleza do fenômeno da arte contemporânea. Por mais que a série de 5 chuveiros seja instalada em outro local, não é possível afirmar que a experiência artística será espelhada. Cada interação é original, cada contexto compõe uma aura única para a obra artística, considerando que a decisão do local é um componente artístico determinante para a constituição da própria instalação. Se o CHUVAVERÃO fosse instalado na praia de Copacabana, ainda no Rio de Janeiro, por exemplo, o efeito, o sentido e a experiência do público seriam completamente diferentes. Ainda neste exemplo é possível identificar o quanto o fenômeno da arte contemporânea se dá pela presença, por compartilhar o momento do “aqui e agora” com o objeto artístico. O CHUVAVERÃO pode ser encarado quase como uma alegoria dessa ideia de presença, em que as águas que molham uma pessoa nunca serão as mesmas, e a pessoa que é refrescada pelas águas também é passageira e se modifica a todo instante, a experiência é líquida, a presença deve ser atenta, e o contexto é a plataforma para criação deste sentido único.
Texto produzido originalmente para a disciplina de Cultura Visual e Urbana — Pós Graduação em Curadoria, Cultura Urbana e Práticas Espaciais — ESAP — Escola Superior Artística do Porto, 2021.