Presença, acesso e (in)visibilidade:

desafios e ironias da arte na era digital

A Internet proporciona aos artistas maior autonomia e maior potencial de disseminação do seu trabalho. Sem depender necessariamente de intermediários, o contato direto e imediato com o público, ferramentas digitais podem estabelecer relações autênticas e inspiradoras para ambos. Entretanto existe uma armadilha para a saúde da produção artística por trás dessa ideia da suposta autossuficiência do artista e democratização de acesso. A partir do momento que o prestígio do artista pode ser dimensionado (de forma superficial, “flat”), através de indicadores como quantidade de likes, visualizações e números de seguidores, esse agente muitas vezes sem grandes estruturas, automaticamente passa a dedicar grande parte do seu tempo e esforço para angariar e tentar sustentar relevância em meio digital. Um sistema feito para vender produtos exige alto volume de postagens, produtividade e alta exposição. Nesse contexto, a consequência muitas vezes é o deslocamento do foco do artista, da produção artística em si para a gestão do seu canal online em busca incessante de visibilidade. A corrida pelos algoritmos pode aumentar o efeito de individualização, competição e portanto enfraquecimento da figura do artista perante as engrenagens do mercado. Um (ego)sistema que opera em modelo “pipeline”, com abundância de artistas em competição habitando o largo “topo do funil”, e escassas oportunidades concretas e relevantes de valorização do trabalho, representadas no estreito fundo do funil. A sensação de autonomia e visibilidade nas redes sociais pode ser considerada quase um mito do artista contemporâneo que por muitas vezes acaba bastante distraído com likes.

Existe uma complexidade crítica quanto à hiper exposição de arte (e do artista) nesta dinâmica. Enquanto a disseminação e acesso ganham potência exponencial, a atenção do público cai drasticamente. Tudo parece se tornar mais descartável, efêmero e superficial. Escala e percepção de valor são esferas muitas vezes claramente antagônicas. Na era da atenção, estar online e ser visto por milhões de pessoas não necessariamente significa pregnância. No vídeo “How not to be seen a fucking didactic educational.movie file” (2013), Hito Steyerl brinca com os movimentos dos utilizadores em ecrãs, sugerindo instruções de invisibilidade, “to scroll”, “to wipe”, são exemplos de movimentos que sugerem a volatilidade da relação entre público e artista em uma rede social, por exemplo. Na tentativa de criar uma conexão de maior valor, e ampliar ganhos, artistas independentes experimentam plataformas que estabeleçam relações mais profundas, imersivas, menos efêmeras no meio digital. Um exemplo é o crescimento da plataforma de streaming Twitch, amplamente utilizada no mundo dos games, e que vem sendo apropriada pelo mundo das artes como uma forma não só de tentar estabilizar uma relação entre público e artista, como também uma alternativa de monetização a partir deste diálogo.

Há também um olhar oportuno, a internet pode ser usada como ferramenta potente de conexão não apenas do artista com o público (o que em si já é muito valioso), mas também um meio de conexão do artista com demais agentes da cena, incluindo colegas artistas, galeristas, curadores e representantes institucionais. Essa lógica sistêmica pode gerar um desenvolvimento mais saudável do uso da web, não como plataforma de um “EGOssistema”, mas como visão de ecossistema digital, que tem como objetivo potencializar a produção cultural de forma concreta e coletiva. Este ecossistema já está em transformação, as mudanças impactam nos diferentes agentes e instituições. Os papéis de galerias e curadores são atividades que estão em questionamento atualmente. Para pensar no futuro das galerias, por exemplo, é preciso desdobrar as múltiplas camadas que as galerias desempenharam ao longo da história em seu formato prestigiado tradicional. O texto de Loney Abrams, Flatland (2013), apresenta estas camadas de atuação coexistentes na atividade das galerias até hoje. Temos o espaço físico, que armazena as obras. As funções relacionadas ao registro das peças (envolvendo fotos estilo tradicional white cube, por exemplo). Também temos as funções relacionadas à divulgação das exposições e conexão com o público. E não podemos esquecer da negociação, o aspecto transacional do mercado. Ao observar todas estas camadas e as funções fundamentais relacionadas à cena artística, é difícil projetar o definitivo “colapso de galerias” como provoca a autora no início do texto, diante da expansão das plataformas online. Acredito na reinvenção de formatos e dinâmicas, e atualização de linguagens. Em uma era de profusão de disseminação de arte, considerando o movimento autossuficiente de divulgação de artistas. A popularização do acesso a ferramentas de captação e edição de vídeo, imagem e som com qualidades cada vez mais acuradas. A abundância de manifestações, competição por likes, e volatilidade de informações. Considerando todos estes fenômenos, os papéis relacionados à atribuição de valor, status e influência cultural se mantêm altamente relevantes.

O desafio de artistas, galerias, e curadores é criar uma abordagem potente em visibilidade e coerente em significado no meio digital. Talvez o artista possa optar por manter sua produção com ferramental 100% analógico, mas o sistema que permeia exposição, divulgação, registro e monetização já está altamente conectado e não há como retroceder. Loney Abrams explora a problemática da representação redutora das obras em JPEG, o possível privilégio das obras meramente fotogênicas, a homogeneização das experiências em navegação das interfaces, e quanto a contemplação de obras importantes pode ser limitada ao ser visualizada nas telas. A autora sinaliza a possível erosão do valor cultural enquanto a grande manifestação artística é deslocada para as telas portáteis e interações banais. Uma das estratégias de invisibilidade também sugerida no vídeo de Hito Steyerl seria “to camouflage”, o que remete à mimetização perante cenário em que um elemento está inserido. Loney Abrams destaca em seu texto a importância da contextualização das obras como fator essencial para a percepção da manifestação artística, e o quanto esta dimensão se perde no ambiente online. Em redes sociais populares como Instagram e Facebook, e nos últimos tempos Tiktok, as manifestações artísticas frequentemente se mimetizam em meio a notícias, divulgação de produtos, memes, dicas de skincare, fotos de pratos, tutoriais, vídeos de gatos, notificações várias, e desafios do Tiktok. Nesse cenário de profusão de estímulos, e muitas abas, telas e aplicações em sobreposição, é praticamente impossível estabilizar algum contexto ao apresentar obras artísticas. O que faz nós pensarmos o quanto a arte aos poucos se modifica para ser conformada por uma timeline.

Utilizando o conceito “resolution target”, elemento chave explorado no vídeo de Hito Steyerl, é possível traçar um paralelo com a ideia de uma decisão de intenção, o foco no seu sentido figurado, em relação a “era da atenção”. A tecnologia vem evoluindo de forma intensa ao longo dos últimos anos, e entrega para os utilizadores uma carga informacional cada vez mais ampla, muitas vezes difícil de ser processada. Nesta era da atenção, quanto maior a quantidade de informação, maior a necessidade de discernimento, definição de enfoque. Vale especular sobre a direção de desenvolvimento que os mecanismos de enfoque e por consequência, definição de valor estão a tomar. Se as dinâmicas seguem as mesmas, uma elite intelectual especializada dita valor e atribui status às obras, e apenas se apoiará em novas ferramentas mais convenientes. Ou quem sabe se o mecanismo será via inteligência artificial. Ou se haverá uma mudança mais estrutural, em que este mecanismo de atribuição de valor terá uma natureza mais distribuída, democrática, coletiva.

Quando tudo parece estar disponível ao alcance de alguns cliques, o que pode ser considerado valioso para a audiência? Especialmente neste momento pandêmico em que boa parte das atividades e interações sociais são realizados em plataformas digitais, por uma considerável parcela da população, a famosa “fadiga das telas” é realidade. Tours virtuais por galerias e museus já perderam seu frescor e magnetismo (se um dia tiveram). Neste contexto nos perguntamos, que tipo de manifestação artística pode capturar atenção do público e ser assimilada em profundidade? Imediatamente nos remetemos às exposições físicas, como um pêndulo que esgota a energia para uma direção, e se volta para a oposta. A ênfase para as exposições “físicas” é explorar experiências com características que o meio digital não alcança. O vídeo de Hito Steyerl provoca a percepção da audiência para o que está além do que é visível, invoca a atenção para o que está além do enquadramento das telas, o que não está traduzido na linguagem dos pixels. Como se olhar para o que está limitado dentro das bordas da tela seja o comportamento mais previsível e obediente de uma audiência anestesiada pela excitação dos algoritmos. O que está além do enquadramento, temas, situações, problemáticas, vidas, linguagens, o que está nas margens. Me interessa o que está além das telas, o que não pode ser apenas visto, mas pode ser também sentido. Acredito na internet colaborando com a disseminação e desenvolvimento do interesse artístico, mas também acredito no valor de experiências imersivas, híbridas, digitais, analógicas, sinestésicas que exploram percepções plurais e proporcionam que o público navegue por diferentes ângulos. Que o público, mais protagonista em relação à sua experiência, consiga dimensionar e experimentar com o seu repertório, com suas lentes, com sua capacidade de resolução com seu próprio enquadramento.

Referências:

Loney Abrams, Flatland (2013).

Hito Steyerl, How Not to be Seen: A Fucking Didactic Educational .MOV File, (2013).

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Vanessa Spanholi
Experimentos  —  Curadoria, Cultura Urbana e Práticas Espaciais

Designer e empreendedora, acredito na inovação que cria pontes para conexão humana. Especialista em design research e inovação.