Desbravando uma vila medieval no alto das montanhas italianas

Munike Ávila
Exploradores
Published in
5 min readOct 2, 2018
Casa de pedra encontrada durante o trekking, em meio a mata fechada (Arquivo pessoal)

“Pelo visto vocês já conheceram o louco da cidade” — disse Raff, quando nos encontrou no caminho para sua casa junto a um homem que fazia um monologo sobre nosso cachorro, que também estava presente. Logo soubemos que ele tinha tentado suicídio com um tiro na cabeça e, bem, não dera muito certo.

Mais uns passos e passamos por senhorinhas sentadas num banco em frente as casas. “Essas são as câmeras de segurança da cidade”, dizia ela, com seu inglês britânico o qual ninguém mais entendia no local, a não ser seu marido polonês. As senhorinhas nos encaravam do pé a cabeça, prontas para darem suas opiniões assim que desaparecêssemos de suas vistas.

Finalmente chegamos à casa de Raff, depois de algumas horas na estrada e curvas perigosas a 30 km/h em vias estreitas, ingrimes e sem proteção. Onde é que nos metemos, afinal?

Casas de pedra da cidade e vista da casa da Raff, onde nos hospedamos (Arquivo pessoal)

Cervatto é uma cidade medieval no alto das montanhas em Piemonte, cercada por pinheiros e cervos, com casas feitas de pedras e uma população de aproximadamente 70 habitantes. Há apenas uma estrada para chegar até o local, e algumas vilas ao redor são acessíveis apenas com bicicleta, motocicleta ou a pé (como acabamos descobrindo). Nada de internet e o comércio local é composto basicamente por uma vendinha e um restaurante.

Foi neste, aliás, que conseguimos uma garrafa de vinho da torneira para acompanhar nossa janta em casa, que o proprietário emprestou prontamente, sem nunca ter nos visto antes. Bastava devolver a garrafa no dia seguinte.

Oh, a Itália…e ainda tem gente que ousa dizer que o povo daqui é rude.

“Respeite a natureza, não deixe lixos. Você encontrará este lugar limpo, acolhedor e saudável. A flora, a fauna e os humanos agradecem!” (Arquivo pessoal)

As pessoas paravam-nos na rua para conversar, e é assim que a gente vai quebrando qualquer barreira aparente e tendo mais certeza de que o mundo é um só grande bairro (ou como dizem os italianos: “tutto il mondo è paese”). Um cara que, ao saber que o Cabral (meu companheiro) era de Porto Alegre, começou a descrever a cidade como um residente. Trabalhou por anos na indústria calçadistas e fazia viagens constantes para o sul do Brasil. Uma senhora, que ao nos ver almoçar na mesa ao lado da sua, nos inclui na conversa e nos contou sobre sua manhã, em um italiano misturado com dialeto.

“Hoje acordei mais cedo e decidi ficar contando as badaladas do sino enquanto estava na cama. 102 badaladas. Por que?? Qual o sentido de 102? Jesus, Maria, José, Espirito Santo…Dá pra contar os personagens da bíblia e ainda sobra!” — ela dizia, enquanto todo o restaurante ria.

Uma das vilas ao redor, acessível apenas com bicicleta, motocicleta ou a pé (Foto por Felipe B Cabral)

Foi neste mesmo dia que provamos a comida local —carne de cervo com polenta, delicioso! O restaurante era o único local com internet, então era comum ver pessoas sentadas com tablets lendo notícias ou conversando pelo skype. Mas ainda era mais comum ver senhores lendo jornais e crianças jogando cartas ou peão. Parecia que tínhamos voltado no tempo.

Cervo com polenta

Decidimos nos aventurar em meio a mata fechada (um dos motivos pelos quais fomos parar ali) e foi assim que descobrimos outras vilas feitas de casas de pedras, como Oro Negro. O local oferecia diversos tipos de trekkings, o mais famoso conhecido como “Sentiero dell’arte”. Nós optamos por chegar até Villa Banfi, um percurso de 3 horas pouco frequentado, com um caminho dificultoso devido a mata fechada, mas bem sinalizado.

Fotos por Felipe B Cabral

Lisa, nosso cão, era como um guia, sem medo de desviar a rota e correr por todas as partes. Alcançamos 1606 metros de altitude com uma vista linda e verde, e um cachorro cagado de merda de cervo. Sim, Lisa achou uma merda de cervo no caminho e não pensou duas vezes em rolar em cima como se fosse a melhor coisa do mundo.

Nossa cadela Lisa em mais uma Lisaventuras (Arquivo pessoal)

Como a fauna e flora são riquíssimas, é comum encontrar animais selvagens como cervos e cobras, além de diversos tipos de plantas, como urtigas, que causam coceira na pele (por isso é melhor fazer a trilha de calça comprida). Enfim, sobrevivemos, inclusive a Lisa ao banho de chuveiro na volta.

A 1606 mt de altitude!

Cervatto é um dos lugares mais lindos que explorei e não vejo a hora de voltar. Quem sabe até lá alguém tenha descoberto o mistério das 102 badaladas.

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