Confie no caminho

Munike Ávila
Exploradores
Published in
4 min readOct 15, 2022

Se tem algo que aprendi viajando com minha mãe é a confiar no caminho. Quando estamos juntas gostamos de vagar pelas cidades sem roteiro planejado, de braços entrelaçados uma na outra, seguindo o ritmo do nosso próprio corpo. O caminho sempre se revela: as vezes de maneira natural, como placas que indicam um destino interessante; as vezes de modo inusitado, como descer na parada de metrô errada; e as vezes de forma imposta, como ter de sair do ônibus antes do destino para evitar correr de um bêbado que incomodava (“se ele descer atrás, a gente corre, você entendeu?” infelizmente este ainda é um conselho muito útil para quem deseja viajar sozinha).

Então, em nada me surpreendeu quando decidimos seguir o conselho de um bebê de pouco mais de um ano que apontava para uma escadaria, convicto de que aquele era o rumo certo a se tomar. Fizemos pouco caso da escuridão que abraçava o céu indicando ser quase nove da noite. Vamos ver onde essa escada irá nos levar. Vamos confiar no caminho.

Estávamos em Lisboa, precisamente no Miradouro da Nossa Senhora do Monte, um lugar bonito para ver o sol se esconder por de trás do castelo de São Jorge. A cidade nos presenteava com a despedida da primavera e o ar morno que precedia um verão escaldante. Continuamos a vagar pelas íngremes estradas seguindo o som da música que aumentava a medida que nos aproximávamos. Ali, barraquinhas de comida, bebidas e um povo alegre a acompanhar uma cantoria com artistas locais que se apresentavam em um palco alto, iluminado e decorado. Era a celebração de Santo Antônio, a cidade inteira festejava. Afinal, já faziam dois anos que a famosa Festa dos Santos Populares não acontecia na capital portuguesa.

Foto: Shutterstock

Fizemos o que sabemos fazer de melhor: dançamos. Eu, minha mãe e minha filha. Ao som de músicas tradicionais com um ritmo ala ABBA, seguida de um Rock’n’Roll tocado com sintetizadores de teclado. Destoante do meu gosto musical, mas pouco importava. A cidade estava em festa, nós estávamos juntas, tinha música para dançar. Celebramos.

Vestimos nossos casacos leves para nos proteger do vento que começava a dar as caras junto com o anoitecer, e partimos rumo ao apartamento que havíamos alugado. Seguimos pela mesma estrada ladeira abaixo, e paramos para contemplar a vista no Miradouro das Portas do Sol. Quem brilhava no alto agora era a lua, estonteante a iluminar a cidade no escuro.

Minha filha queria praticar o que aprendera a pouco: caminhar com as próprias pernas. Sentir o pé tocar no chão. Pisar no asfalto. Correr sem medo de cair. Sem noção da diferença entre estrada e calçada. Foi assim que avistou uma longa escadaria, longe do movimento de carros e bondes. Nos entreolhamos, eu e minha mãe, e confiamos no caminho. Uma coisa era certa: estávamos na parte alta da cidade e queríamos chegar lá embaixo, pertinho do rio Tejo, o mais extenso da península ibérica. Isso seria feito. Só não sabíamos de preciso onde a escadaria iria nos deixar.

Lá fomos nós. Mãe, filha e neta. Uma segurava na mão do bebê sedento por movimento, descendo degraus de forma desengonçada, enquanto a outra levava o carrinho negligenciado pela mesma criança. Diferente da estrada que tomamos ao subir, com calçadas estreitas cheias de gente e tráfego constante, a escadaria nos levou para onde a festa acontecia. Ao longo de todo o percurso passamos novamente por barraquinhas com senhorinhas em seus aventais servindo pão com chouriço, bandeirolas coloridas penduradas pelos ares, canções populares que mudavam de ritmo a cada bloco de degraus e, é claro, gente alegre a festejar.

Festejamos. Mãe, filha e neta. A cada passo, no nosso ritmo, vagando pela cidade de Lisboa. Sem nos preocupar com o destino final. Quando a escadaria, enfim, cessou, ainda nos restaram alguns bons passos a dar pelas calçadas revestidas de Petit Pavé. Passando por igrejas históricas, estátuas de generais a cavalo, bares abertos e lojas fechadas, fizemos o que qualquer catarinense perdido faria: seguimos toda vida reto. Até darmos de cara com a porta do nosso apartamento, onde meu pai, que resolvera voltar sozinho muito antes, nos esperava preocupado. Afinal, já passava das dez da noite.

— Vocês voltaram de táxi?

— Não. A gente confiou no caminho.

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