Mostar e Sarajevo

Émerson Hernandez
Exploradores
Published in
6 min readNov 25, 2019

Aviso: Este é um texto de uma série sobre onze dias de motorhome pelo Leste Europeu. Se tiver interessado em mais relatos da mesma viagem, acesse o texto principal.

Eu lembro de passar na TV e de estampar o Correio do Povo que a gente assinava lá em casa. Era um grande conflito pós queda do muro de Berlim no território que um dia havia sido a Iugoslávia. Lembro da informação estar ali. Mas eu não posso dizer que eu entedia bem o que estava acontecendo.

Engraçado que ainda hoje ao falar dos planos de passar pela Bósnia, o imaginário popular ainda dá conta que o país é inseguro. Há muita gente que pensa que ir para aquelas bandas é um grande perigo e que colocar a região no nosso itinerário era um grande erro. Bem, espero que as próximas linhas ajudem a deixar um pouco mais claro que isso não é verdade.

Ponte de Mostar, preparada para o campeonato de saltos.

A primeira cidade bósnia que visitamos foi Mostar, conhecida principalmente pela sua ponte de onde os mais corajosos fazem saltos, em competição ou apenas como forma de ganhar a vida. Certamente a ponte é o ponto alto da cidade e vale a visita. A seu redor, há um centro histórico com uma mesquita e um conjunto grande de lojinhas que remetem à influência otomana. Se você não vai a Sarajevo, vale a pena passar mais tempo por aqui. Caso contrário, uma trip de um dia tá de bom tamanho.

No nosso caso, a parte peculiar dessa visita foi a nossa chegada. Escolhemos um camping via internet, colocamos o endereço no aplicativo e nos dirigimos até lá. Ao chegarmos, notamos que o local de acampamento não existia. Era apenas a rua que ladeava o rio que corta a cidade. Andamos um pouco mais e onde conseguimos, fizemos o retorno com o motorhome. Dirigimos na direção de onde viemos até o que parecia uma casa de aluguel para festas. Entramos no estacionamento com nosso pequeno monstro, estacionamos e descemos para pedir informação.

Na frente de um grupo de 3 mesas com uns 10 homens sentados, conversando, fumando e tomando cerveja, perguntamos se alguém falava inglês. Depois de algumas palavras entre eles, um homem de uns 30 anos levantou, passou o braço por cima do ombro do Luciano, o abraçou e falou:

— Mai frent. Iu tãr léft, léft, go ovr bridi, left aguén. Ãnderstend? Gut.

Agradecemos, e saímos. Ouvindo as instruções de nosso novo amigos, os gestos nos ajudaram com o inglês e entendemos que estávamos do lado errado do rio e que deveríamos fazer toda a volta. Foi o que fizemos.

Na segunda curva à esquerda, um motoqueiro que trajava regata mas não usava nem capacete, nem calçados, bateu na lateral do nosso motorhome com a mão, chamando atenção do Fabiano, que dirigia. Quando ele notou que tinha sido notado pelo nosso condutor, bateu no peito e fez um sinal para que nós o seguíssemos. Achamos aquilo muito estranho e nos mantivemos no nosso plano inicial. Coincidentemente, o personagem dirigia sempre à nossa frente, fazendo o mesmo roteiro indicado pelo nosso amigo Joel Bósnio. Ao chegarmos ao camping, descobrimos tudo.

O camping Neretva (que leva o mesmo nome do rio que corta a cidade) realmente está posicionado errado nos aplicativos de localização. Sabendo disso, o dono do estabelecimento nos viu do outro lado do rio e foi nos buscar, de moto.

Mostar tem algumas amostras da guerra, como prédios em ruínas e muitos souvenirs feitos a base de balas ou outros apetrechos militares. Em Sarajevo esse sentimento é ainda mais presente. Há ainda cicatrizes em muitos lugares, sendo as várias rosas que se veem na cidade a mais chocante delas.

Chegamos na capital perto do fim da tarde e depois de nos acamparmos, fomos ao centro dar uma volta e jantar. A rua principal tem uma das principais atrações, uma marca no chão que divide a parte “ocidental” da “oriental”. Mas nem precisa. Quando a gente olha para cima, fica fácil de ver as diferenças de arquitetura dos diferentes tempos onde a cidade foi parte dos impérios Otomano e Austro-Húngaro.

Esquerda: parte da nossa refeição, no Nanina Kuhinja. Direita: interior de uma igreja ortodoxa, ambos em Sarajevo.

Os principais pontos turísticos são possíveis de serem vistos em um dia e estão todos perto dessa área central, como (entre outros) o mercado, a mesquita e a ponte onde começou a Primeira Guerra Mundial. No entanto, há um outro lugar que merece ser visitado e não fica por ali: o túnel de Sarajevo.

Quando a Iugoslávia caiu, vários ações bélicas foram tomadas e uma delas incluiu o que, nos planos sérvios, seria uma fácil manobra de cerco à capital. No entanto, o que se viu foi que a rendição não veio em menos de uma semana, como o planejado. Na realidade, o Cerco de Sarajevo foi o mais longo da história da guerra moderna, durando quase quatro anos. Por causa disso, o túnel foi de fundamental importância para a manutenção da vida na cidade, transportando mantimentos, armas, remédios e pessoas.

A casa hoje abriga um museu que compreende a casa e um prédio anexo. Em uma área mais residencial e fora do centro histórico, é um lugar que deve ser visitado para quem quer tentar entender um pouco mais sobre aquela época e sobre o que é uma cidade moderna em tempos de guerra. São vários artefatos da época do conflito, assim como fotos e vídeos e um pedaço curto do túnel, para deixar a experiência realmente mais imersiva.

Museu do Túnel da Esperança, em Sarajevo, contendo a fachada marcada pela guerra.

Depois de ver as exposições, vídeos e fotos do museu, tu te dá conta que os anos 90 estão no passado faz apenas duas décadas e que a grande maioria das pessoas que cruzam o teu caminho no teu passeio turístico viveram aquele horror. Uma das pessoas com quem a gente falou sobre esse período foi um motorista de táxi. Como esse tipo de assunto é delicado, deixamos que ele contasse o que quisesse. Entre milhões de agradecimentos por estarmos ali gastando dinheiro no país dele, o resumo da história pode ser dado mais ou menos assim:

Eles estavam nos matando. Não tínhamos opção. Numa situação assim, você tem de ser forte e confiar em Deus.

E o mais louco de tudo é que tem gente que advoga que aquilo não aconteceu, a ponto de criar conflitos no comitê do prêmio Nobel. [1][2][3]

Restaurante no centro histórico, com uma grande churrasqueira. Que alegria.

Desde o povo super acolhedor, até as refeições gostosas (e baratas!) a Bósnia é definitivamente um país a ser visitado. Além desse lado, ter passado por lá agora em julho, mesmo que poucos dias, me fez ter uma consciência muito maior de tudo o que aconteceu. E de como, mais de 20 anos depois, os efeitos de uma guerra são muito mais duradouros do que simplesmente os dias de conflito armado. Deixo até um sugestão, para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a época da guerra. Eu super recomendo esse gibi da foto abaixo.

The Fixer, por Joe Sacco

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