Pachamama

Olavo Fröhlich
Exploradores
Published in
3 min readNov 26, 2018
Créditos: Bem vindo à Argentina

Sair de casa é a possibilidade de apreender o mundo além da imaginação. Hoje, com um pouco de dinheiro, o planeta está dominado. Temos meios de locomoção para ir e vir aonde quisermos. Minha mãe, com 95 anos, por exemplo, dependia das suas pernas ou do cavalo para apropriar-se do seu entorno e que por isso dificilmente passou de um raio de 10 quilômetros. Não é por nada que há oito anos diante de sua neta Flora, com dois anos, sacudisse a cabeça dizendo: não é possível. Tão pequena e já andou pelo mundo.

Vamos para a Argentina. No imaginário comum, Argentina significa Buenos Aires: Nove de Julho, Teatro Colon, Ricoleta, Calle Florida, Praça de Maio, Caminito, La Bombonera, Porto Madero (quem for, vá ao Siga la Vaca. Carnes e vinhos para muitas meias horas de boa vida), a biblioteca El Ateneu e para encerrar um show de tango trágico, de arrebentar com o corpo e a alma. O resto do país é vaca, ovelha e trigo. Mas não é.

Por circunstâncias conheci um pouco mais. Primos em grau distante mudaram-se para a Província de Missiones há 100 anos. Considerando que cada casal colocava no mundo 12 filhos, posso ter a certeza que o sangue de minha ancestralidade corre por todas as “rutas” argentinas. Acrescento: um filho casou-se com uma santafesina, tema que me rendeu alguns puxões de orelha de amigos mais, digamos adeptos do gaúcho sangue puro, que não se mistura com castelhano nem que a vaca tussa. Para eles, que somam boa parte dos nossos bombachudos, “argentino bom é argentino morto”. Nunca viajaram. No máximo tiram férias em bando nas praias de Santa Catarina. Não para veranear. Para tomar posse, com bandeira desfraldada o mês inteiro. Depois se recolhem ao pago, certos do dever cumprido. Território demarcado e nada mais.

Por repetidas sugestões, marquei férias para as províncias de Tucuman, Salta e Jujui.

Fico em San Jose de Tucuman, cidade berço da independência argentina e, mais importante para mim, da inesquecível Mercedes Sosa.

Marco um passeio aos arredores. Saída após o café e retorno à noite. San Jose de Tucuman situa-se numa planície cercada de terras férteis. O agro é uma das bases fortes de sua economia, despontando o plantio da cana de açúcar (intercâmbios técnicos com a nossa Santo Antônio da Patrulha) e o cultivo do limão. Ao longe, montanhas com intensa vegetação.

Confesso que o cenário me surpreendeu. Nada de semi deserto pré-andino. Subindo a montanha me deparo com uma floresta tipicamente tropical. Mata densa. Me sinto em casa. Passando dos mil e quinhentos metros de altitude a floresta cede espaço para uma vegetação cada vez mais rasteira, até sobrarem gramíneas e depois pedregulhos com arbustos raros. Agora sim, no semi deserto.

Ao meio-dia alcançamos Amaicha del Valle em cujos arredores fica o Museu Pachamama pertencente ao famoso artísta plástico Hector “indio” Cruz. Suas obras, um resgate das culturas originais, são maravilhosas. Um atrativo que cada vez mais vai transformar Amaicha del Valle em importante destino turístico. Como faz bem visitar este lugar! Um estupendo artista.

Confesso que lugares que não têm a exuberante flora tropical,me deprimem. Parece que minha sobrevivência corre perigo. De onde extrair alimento neste cenário inóspito. Reflexões me assaltam.

Pachamama contempla o que há de mais sagrado, místico e terreno, na cultura dos povos andinos. Um termo poderoso.

Seguimos para as ruínas Quilmes, situadas nos Valles Calchaquíes, último baluarte de resistência dos povos andinos ao espanhol predador. Na entrada das ruínas uma índia, descendente quilmes, faz um apanhado resumido do que foi e restou. Uma tragédia que fez afastar-me para disfarçar a emoção.

Depois a visita. Horas percorrendo os destroços do que já foi o lar exuberante de uma civilização. As pedras gritam o desespero das mães e crianças ali dizimadas ou acorrentadas para seguir em marcha para Buenos Aires. Sabe-se que,no caminho, muitas preferiram como ato digno o suicídio, atirando-se com seus filhos dos penhascos pelo caminho. Em Buenos Aires, os homens serviram de bucha de canhão nas infindáveis revoluções sempre em andamento.

O caminho da volta é silencioso. Não há palavras. Admiração, estupefação e dor.

À noite, num canto de bar, olhando para o nada, imaginando. Um copo pela metade para suportar: Quilmes.

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