Intervenção do Banksy, feita à época da Bienal de Veneza de 2019

Refletindo sobre ser turista, em Veneza

Émerson Hernandez
Exploradores
Published in
4 min readJun 22, 2020

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Veneza é o tipo de lugar incrível por sua beleza e relevância histórica. Foi o poderio financeiro e militar de uma república independente que durou mais de um milênio que construiu o que pode ser visto e contemplado, em maiores ou menores detalhes, nas mais de cem ilhas que, conectadas por pontes, formam a cidade como a conhecemos hoje.

A mistura entre os aspectos naturais dos canais e as grandes obras arquitetônicas criadas pelo ser humano é um grande espetáculo. Principalmente motivadas pelo nosso sentido mais aguçado, as listas de coisas pra ver se tornam realmente imensas. Para ilustrar um pouco do que estou falando, compartilho o mapa abaixo, criado para ajudar na nossa exploração. Há ali alguns dos itens mais populares que se acham em infindáveis listas de “must-see” espalhadas pela internet.

Com a ideia de perambular quase sem rumo, o mapa acabou servindo como guia para várias das nossas caminhadas terem um mínimo de norte. Se já não bastasse tudo o que este grande destino oferece, quando fomos, tivemos a chance de aproveitar a Bienal de Veneza. Figurando na lista de eventos mais importantes de arte do mundo, ela vem acontecendo desde 1895. As instalações, principalmente de artes visuais, ficam espalhadas em diversos pavilhões pela cidade. As divisões acontecem tanto com espaços específicos de artistas como também de países convidados. Dado o contexto político nacional, confesso que fiquei apreensivo em procurar o espaço dedicado ao Brasil. Graças a Deus, acima de tudo, fui surpreendido positivamente.

Em 2019, o tema era “May You Live in Interesting Times” (numa livre tradução minha, “Que você viva em tempos interessantes”). Por si só, uma ótima pergunta. No entanto, ela é uma citação em inglês que tem como origem (há controvérsias!) a tradução de uma maldição chinesa. Em teoria, a frase é irônica, pois melhor seria viver em tempos de paz e tranquilidade que na turbulência da guerra ou, como estamos todos agora, da doença.

Essas várias nuances intelectuais e sensoriais, disponíveis desde que eu tivesse o tempo e a presença, me fez planejar uma estada mais racional na cidade. Belo acerto, tanto pela Bienal quanto pela possibilidade de andar quase sem rumo pelas múltiplas vielas e pontes de Veneza. Isso foi fundamental para desfrutá-la com um pouco mais de qualidade.

Da esquerda para a direita: Ponte dos Suspiros, Praça de São Marcos, bueiro de onde saiu Indiana Jones na frente da Igreja de São Barnabá.

A situação que a pandemia criou, teve efeitos inusitados em vários lugares do mundo, e em Veneza não foi diferente. Os sempre lotados canais, com suas gôndolas cheias de turistas, estão hoje cristalinos. Vídeos mostrando vida marinha ganharam espaço nas redes sociais. Isso fez muita gente pensar, mesmo quem nunca havia parado para analisar o impacto do turismo. E talvez a cidade italiana seja o lugar mais afetado pelo impacto de milhões e milhões de pessoas do mundo que desembarcam em Veneza todos os anos. E esta é a reflexão que eu tive quando estava lá e gostaria de trazer agora.

Vários dos turistas que chegam na cidade podem ser classificados como viajantes de alto impacto e baixo valor. Muitos deles chegam a Veneza em grandes navios, desembarcando no começo da manhã e voltando para o seu monstro marinho no fim do dia. Mesmo que o turismo seja responsável por 13% do PIB da Itália, esse tipo de excursão não é a que melhor contribui para o país.

Para começar, as três grandes companhias de cruzeiro, que equivalem a 75% do mercado, têm como sede paraísos fiscais que fazem com que seus ganhos sejam acumulados pelas grandes empresas, ao invés de haver algum tipo de repasse para os países impactados. Carnival, Norwegian e Royal Caribbean tem, respectivamente, Panamá, Bermudas e Libéria como sede, estados que não são conhecidos por terem leis muito interessantes nem de um ponto de vista nem econômico, nem trabalhista, nem ambiental.

Para piorar, esses exploradores de dia único potencialmente vão perambular afoitos, sofrendo a pressão de seu guia. Irão de um lado ao outro, lotando os lugares turísticos como a Piazza de San Marcos e voltarão para o seu barco ao final do dia, tendo gasto um total de 20 euros em quinquilharias que provavelmente foram feitas na China.

Ou seja, no final do dia, essas pessoas passaram pela cidade, mas não a viveram, não a absorveram e nem contribuíram positivamente com ela em nenhum aspecto. Aí vem a dúvida: você e eu, somos dessa qualidade de turista?

Da esquerda para a direita: Leão de São Marcos, Basílica de Santa Maria da Saúde e fim de tarde aproveitando a vista do canal com um vinho branco local.

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