The Kenya Experience

Renata Alchorne
Exploradores
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21 min readApr 12, 2020

Não sei nem por onde começar. Essa experiência (porque não posso nem chamar de "viagem" simplesmente), eu vivi em junho de 2019. Quando cheguei de volta ao Brasil, eu tinha um acervo enorme de memórias frescas, fotos da melhor qualidade (tiradas pelo nosso amigo Enock, parceiro fotógrafo do Camp), experiências de todos os tipos, sobre corrida, sobre amizade, sobre cultura, pessoas, técnicas, sobre a vida! E, foi por isso mesmo que, desde então, venho tentando compilar tantas coisas e sempre acho impossível de traduzir tudo isso aqui. Já pensei em colocar em uma série de posts, já pensei em diversos formatos e, neste final de semana, decidi começar. Vou tentar passar aqui um pouquinho do que foi a melhor viagem da minha vida: difícil dizer isso, pois, em geral, as mais recentes ficam mais fortes na memória. De qualquer forma, ela está, sem dúvida, entre as top das tops.

Vista de uma das manhãs de treino na cidade de Iten — Quênia.

Falar do Quênia me traz vários sentimentos que vêm muito ao encontro do momento que estamos vivendo hoje em todo o mundo com a pandemia do Corona Vírus: faz refletir sobre a vida, sobre como enxergamos o outro, sobre como nos relacionamos, sobre o que realmente "importa". Através deste texto, estou me conectando com todos os amigos que fiz lá. Cada um de nós é de um lugar diferente do mundo e, enquanto escrevo, penso que estamos passando pelo mesmo momento de incertezas, anseios, expectativas e esperança em cada cantinho desse planeta, seja na Nova Zelândia, na Inglaterra, nos Estados Unidos. Penso em tudo que vivemos. Além disso, acredito que seja um "alento" a todos nós corredores, que amamos esse esporte, o qual não podemos praticá-lo neste momento, mas sem dúvida, iremos retornar às ruas para matar toda a saudade!

Mas, afinal, do que você está falando, Renata? Estou falando do The Kenya Experience (http://www.traininkenya.com/), um treinamento de corrida em um Camp no Quênia, na cidade de Iten. Essa cidade tem os melhores atletas de corrida de longa distância do mundo, principalmente maratonistas.

Iten, localizada a oeste do Quênia (fonte: Google maps).

Os corredores quenianos não são bons assim porque cresceram fugindo dos leões. A propósito, duas questões que sempre me perguntam quando converso sobre essa viagem:

  • É deserto no meio da África? Com pouca vegetação e escassez de alimentos? Não, Iten fica a 2400 metros de altitude em relação ao nível do mar, é uma cidade mais rural, de vegetação exuberante, com chuvas quase diárias e bastante plantações, pouca infraestrutura e possui em torno de 50 mil habitantes. Não existem animais selvagens nessa área, mas animais de pasto, como ovelha, bois, vacas e galinhas. É uma região de temperaturas bem amenas, com início e final do dia em torno de 14 graus nesta época e o meio do dia mais quente.
Treino em Iten com minha querida pacer Caroline.
  • O povo fala inglês? Sim, falam muito bem, a língua oficial do Quênia é o Suaíle e o inglês é ensinado para as crianças nas escolas a partir dos 7 anos de idade. No Quênia, assim como diversos países do continente africano, existem milhares de tribos, com seus dialetos. Em Iten, a maior parte dos atletas campeões pertencem a uma tribo chamada “Kalenjin”.
Mensagem pela St. Patrick's High School, em Iten.

Então, o principal fator que contribui para essa condição diferenciada é a altitude do lugar. E falaremos logo adiante quais são os outros “segredos” desses campeões.

O programa de treinamento é totalmente voltado à prática da corrida. É acessível a pessoas que amam correr, sejam profissionais ou amadores, como eu. Ele acontece durante todo o ano, em turmas que duram duas semanas, em um Running Camp. A vivência desse programa proporciona 4 pilares de experiência: 1. Estar em um local inspirador, rodeado de floresta, trilhas e muito verde; 2. Uma imersão cultural sobre a vida em Iten; 3. A rotina de treinamento e vida dos atletas de elite; 4. Suporte técnico dos Coaches.

Para chegar até Iten, eu e Marcelo fizemos uma "volta", vamos dizer assim, mas com um melhor custo-benefício: saímos de Porto Alegre para São Paulo (aeroporto de Guarulhos), de lá foram 14 horas até Dubai, pela Emirates. Nós chegamos lá à noite e o vôo para Nairobi (capital do Quênia) sairia no dia seguinte, pela manhã. A companhia aérea Emirates oferece um serviço incluso na compra de tickets a partir de U$1000: a pessoa tem direito ao translado do aeroporto até um hotel da companhia que fica próximo do aeroporto, jantar, café da manhã no dia seguinte e retorno ao aeroporto. Tivemos um breve "revival" de nossa visita a Dubai, em 2013. De Dubai, foram 5 horas até Nairobi e, então, mais um vôo até Eldoret, a cidade com aeroporto mais próxima de Iten.

Chegando em Eldoret onde nos esperavam para irmos até Iten.
Entrada da cidade.

No site do The Kenya Experience, há todas as informações relacionadas às datas, valores, como chegar, qual a programação. Basicamente, o valor pago no programa inclui: 1. Transfer do aeroporto de Eldoret até Iten, onde fica o Camp (tanto na ida, quanto na volta); 2. Hospedagem com todas as refeições incluídas; 3. Acompanhamento dos técnicos (Coaches) em todas as atividades físicas, tanto treinos de corrida, quanto fortalecimento muscular; sessões de bate papo sobre assuntos relacionados à corrida: tipos de treinamento, alimentação, estilo de vida, mindfulness para desenvolvimento da concentração, equilíbrio emocional; 4. Guias esportivos, que são corredores (chamamos Pacers) que nos acompanham nos treinos; 5. Transporte para passeios durante as 2 semanas para conhecermos atletas, ex-atletas locais e internacionais, projetos sociais, entre outros.

Este Camp no qual ficamos hospedados pertence à Lornah Kiplagat. Ela nasceu na província de Rift Valley (região de Iten) e foi para a Holanda em 1999. Na maratona, ela tem o melhor tempo de 2h22min22 e venceu grandes corridas em Roterdã, Amsterdã e Osaka.

O time que nos acompanha em todo o programa é esse: Willy Songkok, nosso super host, apoiando em tudo que é necessário, organizando a programação, dá dicas, apoio, motivação, onde fica o banco, o mercadinho, enfim. Coach Hugo, holandês, mora há 17 anos em Iten. Ele é técnico da equipe da Índia. Coach Collins é o treinador assistente, natural de Iten e estudou nos EUA. Enock, nosso mega fotógrafo que registrou todas essas que coloquei aqui neste post. Para minha agradável surpresa, fui consultar as informações no site oficial e dei de cara com essa foto nossa!

Super time do The Kenya Experience.
Reunião de "abertura" com nosso mentor e guia Willie.

Nós demos uma super "sorte" de fazer parte de uma edição especial do The Kenya Experience, que contou com a participação de Adharanand Finn (Twitter @adharanand). Ele é britânico, jornalista, autor do livro Running with the Kenyans (e outros também), além de ser corredor, ultramaratonista. Finn, como o chamamos, morou em Iten com sua esposa e filhos, em busca de como esses atletas vivem. Nós pudemos conviver com Finn e com os personagens deste livro durante todo o período que ficamos lá. Esse livro ganhou o Sunday Times Sports Book of the Year, Finn levou o título de Best New Writer at the British Sports Book Awards.

Eu, Finn e Marcelo.

Como deu para perceber, eu tiro férias para correr e é o que tenho feito nos últimos anos. Não necessariamente o principal objetivo da viagem é a corrida, mas ela estará incluída no roteiro, seja como treinos ou uma prova. Estas férias de 2019 foram um pouco mais intensas, eu nunca treinei tanto! As duas semanas de programação contava com treinos todos os dias, com um descanso (opcional) no domingo. Nós chegamos ao Camp um dia antes do início oficial do programa e, como algumas pessoas sabem, quando lidamos com uma altitude maior do que estamos habituados, existe um período (normalmente, curto) de adaptação. As pessoas que vão a Machu Picchu, por exemplo, precisam dessa ambientação uns dias antes, pois temos menos oxigênio disponível, então algumas pessoas podem sentir mais fadiga, cansaço e dor de cabeça. Os atletas que passam temporadas em Iten, ao voltar para o nível do mar, normalmente, têm um desempenho muito superior. Nós, que ficamos apenas 2 semanas, usufruímos muito pouco deste efeito, mas ainda sim, é possível sentir. Principalmente, se for fazer uma prova na semana de retorno da viagem. Eu mesma, ao retornar de Iten, fiz um treino de 10km em Porto Alegre que foi meu melhor tempo até hoje nessa distância.

Sobre a infraestrutura do Camp: em Iten e em outras cidades ao redor, existem vários Camps que recebem corredores. A cidade não é exatamente turística, ela se torna uma cidade extremamente movimentada com pessoas do mundo inteiro pela corrida. Esses Camps são a concentração de vários atletas de elite, não só quenianos, mas de outros países, que passam temporadas lá treinando para desenvolver sua capacidade cardio-respiratória. Esses atletas profissionais passam meses lá, seja para treinamento para uma prova específica ou mesmo morando. Além dos atletas profissionais, nós amadores passamos períodos menores que, normalmente, são períodos de férias. Então, esses Camps recebem novas turmas a cada mês, o que movimenta a cidade o ano inteiro.

O Camp possui quartos individuais ou em duplas (se a pessoa for sozinha e quiser dividir quarto com alguém, é possível), um pequeno espaço de convivência com TV e wifi (só se tem acesso neste local, nos quartos não tem), uma academia, uma sala de exercícios, uma sala de massagem (serviço pago à parte), piscina, sauna e um refeitório. As refeições possuem horários fixos, o café da manhã é servido às 7h30, almoço a partir das 11h30 e jantar 19h30. No meio da manhã e no meio da tarde, era disponibilizado um lanche com café e chá, sempre no refeitório.

Caminho para a sala de exercícios.
Café da manhã.

A comida no Camp e em Iten é muito natural, tudo feito na hora, a maioria das casas tem uma pequena horta, algumas têm uma ovelha ou boi, enfim. Foi um momento em que a gente mergulhou para nos alimentarmos bem e comer o que tinha ali. Era tudo muito bem feito, delicioso, com tempero. Não havia muitas opções disponíveis para escapar a essa alimentação. No centro da cidade havia alguns mercadinhos com lanches, chocolates e, para os atletas que estavam há meses ali, é uma opção para variar um pouco.

Almoço.

No Camp, conheci o Ugali, um prato parecido com polenta. Ele é feito de farinha de mandioca e, geralmente, é servido como acompanhamento de ensopados de carne ou vegetais. Não encontrei uma foto do ugali, mas aderimos na nossa alimentação e peguei uma foto no Google para mostrar para vocês.

Ugali é a massa branca (fonte: https://www.shutterstock.com/search/ugali).

Mais um pouco de gastronomia local, nos horários de lanche, encontrávamos o Mandazi, lembra o bolinho de chuva, uma massa doce, deliciosa.

Mandazi com café no lanche.
Piscina.
Roupas no varal.

O Camp não é um hotel para férias. Digo isso, pois se você tem a intenção de ir lá para "descansar", fazer a programação que quiser, comer o que quiser, no horário que quiser, não é isso que você vai encontrar. É um programa de treinamento onde, segundo nosso mega ultra host Willie (faz tudo!), os atletas devem comer, dormir e treinar: "no distractions". Ali, começamos a entender a vida desses corredores: é uma vida simples, eles passam meses ali por ano, longe de suas famílias, sem luxo, é um lugar com uma estrutura básica de atendimento, com horários para os treinos, para as refeições, para recuperação e tudo gira em torno disso. É uma vida que requer muito foco e disciplina. Os quartos nos Camps são iguais para todos os atletas, independente se são elite ou amadores. Os quartos não têm ar condicionado, nem espelho. Tem camareiras que arrumam diariamente os quartos e nós mesmos lavamos as roupas (acho que existe serviço pago também).

Como chegamos dois dias antes, nós estávamos um pouco ansiosos pelo início do programa. Nosso host Willie perguntou se queríamos fazer um treino para reconhecer um pouco as redondezas e convocou nosso 1o Pacer Peter. O nosso trote foi um tanto difícil, pernas pesadas e ofegante! Corri 7,5km com esforço de ter corrido uns 15km. É impressionante como a altitude impacta no nosso desempenho.

Nossa turma de Pacers: Willie (nosso mega host), eu, Emanuel, Peter, Marcelo, Carol e Japhet.

Existe vida em Iten além do turismo esportivo vindo da corrida, mas é isso que movimenta a economia do lugar, seus vários Camps empregam centenas de pessoas que neles trabalham, os Pacers e lojas de artigos esportivos, por exemplo.

Todos os dias, nós tínhamos um treino matinal que iniciava às 6h30. Após o treino, retornávamos para um banho e o café da manhã. À tarde, havia um treino complementar, podendo ser de core (exercícios de abdômen), os drills (treinos educativos, de coordenação, passada, postura, etc) ou academia (livre para cada pessoa). Os treinos iam de segunda à sábado, seguindo uma progressão: segunda-feira — rodagem, terça-feira — treino em pista de 400m, quarta-feira — rodagem, quinta-feira — fartlek, sexta-feira — rodagem, sábado — longão, domingo — descanso (ou um regenerativo para quem quisesse). *Obs.: Não sei se acertei os dias certinho. Toda essa programação era acompanhada e orientada pelos nossos dois Coaches Hugo e Collins. Além deles, os nossos Pacers de peso e Godfrey Kiprotich, ex-maratonista que nos acompanhou também durante todo o programa nos colocando em contato com vários atletas e ex-atletas de elite.

Manhã de treino em Iten.

Um aprendizado muito legal que eu tive nesse período foi de que treinos em estrada de chão, com subidas e descidas são muito bem vindos aos atletas que focam em velocidade e corridas de asfalto. Eu tinha um pensamento de que esses treinos eram "concorrentes" para quem queria melhorar o desempenho em provas de velocidade. E isso revela mais um dos segredos quenianos, eles treinam diariamente nesse tipo de piso e isso acaba ajudando na resistência muscular, pois eles não gostam de musculação, podem acreditar!

Para os treinos de velocidade, há duas pistas principais para treinos em Iten: uma que é privada (cuja utilização está inclusa no programa) que pertence à mesma Lornah Kiplagat (proprietária do Camp) e a outra, Tambach, que é pública, aberta a todos os corredores.

Pista Lornah Kiplagat.

Os treinos de pista são pesados para mim. São treinos de velocidade, de alta frequência cardíaca o que, particularmente, não é meu preferido. Parece que estou vendo a morte! Nesse dia, foi o treino de pista mais difícil e o melhor da minha vida! 10 tiros de 1000m (10km no total) com 1min de descanso entre um tiro e outro.

Minha parceira Carol que me fez ir até o final do treino (eu mordendo os "beiço").
Essa foto é linda :)

No dia que tínhamos programado ir a Tambach, tinha chovido à noite e, ao chegarmos lá, as condições não estavam legais. Pelo menos valeu para conhecermos a pista e vermos vários atletas locais que utilizam aquele espaço.

Deu pra bater um papo enquanto víamos se havia condições de treino em Tambach.

Tínhamos momentos de "lazer" também. Aos domingos, que era o dia de descanso, como sempre comíamos no Camp, havia um outro Camp, mais chique, com um restaurante bem legal que dava vista para baixo da região (já que estávamos há 2400m de altitude). Nesse restaurante, encontramos Julien Wanders, atualmente com 24 anos, ele é suíço e está vivendo em Iten. Ele é o recordista europeu da meia maratona, com o tempo de 59min13. Ali, começamos a ver esses ídolos vivendo normalmente naquela pacata cidade, sem badalações.

Julien Wanders, ao centro da foto.

A partir desse dia, passamos a vê-lo como nós, correndo na cidade, treinando na pista, voltando para o Camp correndo.

Dia de treino na pista Lornah Kiplagat.

Um treino muito famoso para quem corre é o chamado fartlek. Significa “jogo rápido” em sueco, é um mix de treino contínuo com intervalado. As corridas de fartlek são uma forma de uma corrida de longa distância, onde temos períodos de corrida rápida, misturados com períodos de corrida mais lenta. Isso pode ter várias combinações: esses períodos podem ser por tempo, como 2 minutos lento e 3 minutos rápido, por exemplo, ou por distância, 1km devagar e 2km rápido.

Algumas instruções do Coach Hugo antes do início do fartlek.

Esse treino é super aguardado em Iten. Ele reúne todos os corredores da cidade em um ponto de encontro e todos saem ao mesmo tempo! É emocionante ver todos reunidos, sejam atletas de elite aos mais inexperientes, como eu. Ali, a gente vê que corrida não é um esporte individual, como algumas pessoas pensam. É ali que a gente encontra motivação, força um no outro de ir adiante, mais rápido ou mais lento.

Largada do fartlek.

Esse espírito de grupo foi uma fala muito ouvida entre todos os quenianos que conhecemos. Todos eles trazem o trabalho em equipe. Estava lendo uma reportagem sobre Julien e traduz exatamente o que vi: "Quando você se junta a um grupo deles, é especial. A mentalidade dos quenianos é diferente. Eles não temem treinar muito, nem sequer pensam muito sobre o treinamento. Para eles, correr é muito simples.". Literalmente é pegar um tênis e ir, não importa se é um treino de 10km ou 30km. A propósito, não há tênis disponível para todos, muitos atletas iniciam sua jornada descalços e têm seu primeiro tênis muitas vezes, aos 14 anos. Não há muitos acessórios modernos, como relógios, cintas de frequência cardíaca, como nós chegamos lá muito equipados. A corrida é uma esperança de mudar de vida. Eu faço um paralelo com o Brasil, é como ser o jogador de futebol. Apesar da grande "densidade demográfica" de corredores de sucesso em Iten, não são todos que despontam. Isso é uma aposta que exige muita dedicação, foco, disciplina e apoio da família, pois é uma vida de dedicação exclusiva. Muitos deles recebem ajuda financeira da família para apostarem nesse sonho.

Andar a pé e correr é o "meio de transporte" na vida em Iten, vemos crianças indo para a escola caminhando e correndo.

Tivemos o enorme prazer de conhecer de pertinho e conviver um pouco com os fundadores do projeto social GEFGathimba Edwards Foundation. Um pouco da história desse projeto no site da fundação: "Myles Edwards conheceu Gideon Gathimba enquanto corria em um evento de corrida de 1 milha, organizado por seu pai, Mel Edwards, para a abertura do Aberdeen Sports Village em 2009. Desde então, o queniano, Gideon e o campeão escocês de 1.500m, Myles se tornaram grandes amigos com Myles passando muitas semanas vivendo e treinando com ele no Quênia. Gideon costumava falar sobre seu desejo de ajudar crianças desfavorecidas no Quênia e, em maio de 2012, a dupla viu uma oportunidade real de transformar esse sonho em realidade. Os caminhos de algumas pessoas se cruzam por um motivo.". Vale muito visitar o site e conhecer a fundação, nós pudemos ver e participar um pouquinho da grandeza desses dois.

Myles de laranja na foto.

Fomos visitar algumas famílias suportadas pela fundação, algumas famílias possuem potenciais atletas.

Uma das casas construídas pela GEF para uma família de mãe e três filhos.

A casa acima foi construída graças ao trabalho da GEF que angaria doações para poder oferecer uma vida mais digna às crianças de Iten e dar condições as suas famílias em situação de vulnerabilidade para que elas tenham um lar, comida e educação. Esta casa é de uma família de uma mãe e três filhos. Durante o dia, enquanto ela faz serviços de casa, planta e colhe, outras crianças de pais que saem para seus trabalhos ficam com ela.

Crianças apoiadas pela fundação GEF.

Bem comum também no Brasil, a maioria das famílias em situação de pobreza extrema têm a mãe como chefe de família. Elas são responsáveis por todos o sustento da família. São casos em que o companheiro falece (expectativa de vida menor) ou mesmo abandonam pelo alcoolismo ou não suportam a situação de fragilidade por desemprego e alta vulnerabilidade.

A foto abaixo é uma homenagem às mulheres guerreiras deste mundo. Encontrei um grupo de corredoras no Camp e pedi uma foto para registrar.

Atletas mulheres no Camp.

Um parêntese: a primeira maratona foi realizada nos Jogos Olímpicos modernos de 1896 e seu vencedor foi Spiridon Louis, com o tempo de 2h58min50 (fonte: https://www.webrun.com.br/historia-modalidade-maratona/). Só 88 anos depois dos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, em Atenas, Grécia, é que as mulheres puderam disputar a prova, nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984 (fonte: https://www.mulheresnapista.com.br/primeira-maratona-feminina-nos-jogos-olimpicos/).

Acervo pessoal.

A foto acima, a gente guarda com muito carinho. Foi muito contagiante a energia de todas aquelas crianças quando chegam pessoas desconhecidas, todas elas só querem brincar e conversar, são sorrisos espalhados e muita curiosidade.

Em meio a isso, eu aprendi com Willie o sentido de Hakuna Matata, uma espécie de mantra de como lidar com nossas realidades, essa expressão ficou muito conhecida no filme O Rei Leão. É uma frase do idioma suaíle, que significa “sem problemas” ou “não se preocupe”. A frase é muito comum na Tanzânia e no Quênia. Outra expressão que ele usava era o Pole Pole, ou "devagar", "calma". Sempre que eu estava nos treinos, lá atrás, cansada e com vontade de terminar, Willie me dizia isso. Não precisa ter pressa, temos todo o tempo. Isso forma muito a base de corredores de longa distância, é necessário calma, paciência, a gente não pode ter ansiedade, a gente quer chegar longe.

A programação também contou com muito conhecimento técnico dos Coaches Hugo e Collins, além da experiência de Godfrey, dos Pacers e de todo nosso grupo. Ao lado do Camp, havia um café onde íamos à tardinha, antes do jantar. Lá, aconteciam sessões para falarmos sobre alguns temas relacionados à corrida.

Bate papo com Abel Kirui.

No papo acima, nós conhecemos Abel Kirui, 38 anos e ainda na ativa. Ele venceu a maratona no campeonato mundial em 2009 com um tempo de 2h06min54. Conquistou a medalha de prata na maratona de Londres, em 2012. Também venceu a Maratona de Viena em 2008, a Maratona de Chicago em 2016 e foi vice-campeão nas Maratonas de Berlim de 2007 e Maratona de Chicago de 2017. SÓ!!!

Ele falou que desistiu de uma corrida grande, que ele havia se preparado bastante, porque estava muito frio, ele não estava conseguindo lidar. Perguntei para ele como foi "desistir", se ele sentiu frustração. Ele disse "não, amanhã seria outro dia, não adianta reclamar do que já foi.". Isso reforça novamente o espírito de olhar sempre pra frente que vemos muito nos quenianos, eles simplesmente vão. Não olham pra trás.

Em uma das sessões, o Coach Hugo também nos falou sobre a técnica de visualization, uma técnica de mentalização que serve para tudo, é uma preparação para momentos importantes, para os quais a pessoa se preparou, aguarda muito. Ela se aplica muito a corredores, dias antes da prova. Ela consiste em se imaginar na corrida, fecha-se os olhos, pensar por onde vai passar, pensar em como você quer se sentir naquele momento para o qual se preparou. É uma forma de criar conexão com aquele momento, entrando no clima. Essa técnica, eu apliquei no dia anterior à Maratona Internacional de Curitiba, em novembro de 2019. Eu me imaginei nos 400m finais, dando aquele último sprint, chegando e chorando, porque doeu pra caramba e dando aquele abraço de alívio em Marcelo, porque acabou!

Um outro momento muito especial foi quando visitamos a St. Patrick's High School de Iten. É uma escola (infelizmente, apenas para meninos) de referência em educação na região. Paga-se uma taxa anual para os estudantes e lá conhecemos o mestre Brother Colm, um missionário irlandês e treinador de atletismo, conhecido como “o padrinho da corrida” no Quênia. Ele ingressou nos Irmãos Patricianos aos 14 anos, treinando em Tullow. Em 1976, partiu da Irlanda para o Great Rift Valley, para ensinar geografia na St. Patrick's High School. Ele foi a Iten esperando ficar apenas três meses e vive lá desde então (fonte de apoio: wikipedia).

Brother Colm e a nossa turma na St. Patrick's High School.

Apesar de não ter formação técnica, ele começou a ajudar jovens atletas aspirantes e assumiu o treinamento de atletas de Peter Foster, irmão do corredor britânico Brendan Foster. Vinte e cinco de seus alunos se tornaram campeões mundiais e quatro ganharam medalhas de ouro olímpicas!

Dentro da St. Patrick's High School, onde Brother mora, existe uma espécie de camp com alguns jovens atletas. Um deles é Rhonex Kipruto, de apenas 20 anos, falávamos sobre o "futuro recordista". Em janeiro deste ano (2020) ele bateu o recorde nos 10km, completando em 26min24, em Valência, Espanha.

Rhonex Kipruto veio em janeiro bater o recorde dos 10km.

Na segunda semana em Iten, nossos corpos pareciam estar um pouco melhor adaptados. Já não ofegava tanto nos treinos, pegava mais rápido no "tranco". No sábado, dia de longão, eis um famoso desafio: a Fluospar Hill. É uma espécie de rito de passagem de todo corredor por Iten. Trata-se de uma subida de 20km, só subindo, ela não fica reta nem desce em nenhum momento. Era um momento muito esperado. Saímos do Camp às 4h30, era noite e levamos nosso café da manhã para o pré-treino.

Largada na base da Fluorspar.

Ao longo do trajeto, as vans foram nos apoiando com Godfrey nos dando palavras de motivação e água. Nosso Coach Hugo largou na frente com uma corredora alemã (ali na ponta do lado direito da foto) que pegou carona conosco em Iten para fazer o treino junto com a gente. Ela já fez esse trajeto em 1h45!!!

Registro do treino.

A linha diagonal acima reflete o trajeto constantemente de subidas da Fluospar. Completei em 2h47 junto com minha parceira Carol.

Eu e Carol quase no topo da Fluospar Hill.

Após sobrevivermos à subida da Fluospar Hill, fomos a Eldoret, a cidade onde fica o aeroporto pelo qual chegamos a Iten. Mas, fomos até lá por ser um centro urbano, pois tínhamos conseguido marcar um almoço com Adbi Nageeye. Nascido na Somália, ele foi para a Holanda e se naturalizou lá. Está vivendo na região do Rift Valley e faz parte da NN Running Team, equipe internacional de corredores de elite de longa distância, da qual também faz parte Eliud Kipchoge, maior maratonista queniano (para quem não conhece, ele é o cara que fez uma maratona em menos de 2 horas). Fica aqui a leitura: https://www.nnrunningteam.com/news/2019-10-12-eliud-kipchoge-writes-history/.

Encontro com Abdi Nageeye.

No papo com Abdi Nageeye, que é naturalizado holandês, falávamos sobre treinar na mesma equipe que Kipchoge e ele falou que nos treinos ficava um tanto "acanhado" de sair no mesmo grupo que ele, pois não conseguiria acompanhar até o final. Os demais companheiros de equipe, também quenianos, diziam "que nada, eu vou junto, sim". Ele estava falando o quanto os quenianos são seguros e não pensam muito, é simples correr. Foi um almoço muito gostoso, muito papo e conhecer a vida de um atleta desse nível é reafirmar o que já descrevi: simplicidade, foco e disciplina. Assim como os demais, Abdi mora longe da família, esposa e filhos, que hoje estão na Somália, seu país de nascença. Ele também comentava sobre estar em um Camp, sem distrações às vezes é muito monótono, os dias se resumem a treinar, dormir, comer e de concentrar: "no distractions". Sobre muitos atletas quenianos que vieram de uma vida muito humilde: estar em um Camp é um privilégio, poder tomar um refrigerante ou comer algo diferente, isso já é muito.

Infelizmente, não conseguimos nenhuma agenda com Kipchoge, ele estava em uma jornada de preparação do projeto break2.

No domingo seguinte ao Fluospar Hill, fui fazer massagem no Camp, agendei um horário para sofrer, pois fazer a tal liberação miofascial depois de um treino desses é pior do que o treino em si. Mas, precisava fazer aquilo para recomeçar a semana de treinos.

Nosso massagista do Camp.

Em Iten, você dobra a esquina e esbarra com um campeão de alguma maratona no mundo. Foi o caso do nosso massagista: ele simplesmente ganhou duas vezes a Maratona Internacional de Milão. Hoje, parou de correr e diz que não tem saudades, porque já correu muito :P

O nosso grupo foi muito especial mesmo, por algum acaso, foi um grupo menor do que normalmente se forma no The Kenya Experience.

Nosso último encontro com todos juntos.

A GEF produz pulseirinhas de miçanga para reverter seu valor para o projeto de apoio às crianças e suas famílias. Todos nós fizemos um movimento de produção dessas pulseirinhas. Enock trabalha na fundação fazendo também elas, pedimos as com bandeirinha do Quênia, personalizadas, com as cores da nossa assessoria de corrida Winners. Neste encontro acima, um de nossos amigos, Ty, nos deu uma com "Fluospar" escrito.

Muitas pulseirinhas.

Eu me lembro de cada um com muito carinho nessas duas semanas de convivência que mais pareceram meses! Meghann (Nova Zelândia); Ty (Connecticut-EUA), Aaron (Carolina do Norte-EUA), Finn (Inglaterra); Dani (argentina que mora nos EUA) e Martin (Suécia). A despedida foi emocionante, alguns colegas foram antes e outros depois, o grupo foi diminuindo. Nutrimos a ideia de nos encontrarmos em algum canto do mundo para correr juntos!

Será que iremos criar novos hábitos após a quarentena?

A mensagem acima também é uma das que vemos em St. Patrick's High School. Será que iremos ter novos hábitos depois dessa pandemia? Iremos adotar um novo jeito de viver? Esse texto não é nem 10% de tudo que vivi em Iten. Ele saiu bem mais longo do que o normal, mas espero que tenham tido paciência de chegar até aqui! Boa quarentena a todos #stayathome e logo nos veremos correndo pelas ruas pelo mundo!

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