Monastério de Petra (Arquivo pessoal)

Um dia de sorte

Munike Ávila
Exploradores
Published in
7 min readDec 10, 2018

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Sete da manhã. O sol começa a dar as caras meio tímido e as folhas congeladas no jardim me lembram que é hora de desengavetar o lenço para aquecer o corpo do frio. Em pensar que o comprei há dois anos atrás para me proteger de um calor escaldante de 40°C, sem muita intenção de usá-lo.

Era outubro de 2016 e o sol nascia no deserto de Wadi Araba, na Jordânia. Tomei um chá, me despedi dos beduínos que me abrigaram em seu acampamento na noite anterior e segui meu caminho rumo a Petra.

Enquanto caminhava pelas ruínas da cidade, pessoas locais passavam por mim montadas em burros. Uma delas era Farah. Sua pele seca do sol e suas mãos calejadas aparentavam as de uma senhora fatigada pelo trabalho, mas seu semblante revelava uma jovem com o sorriso doce e o olhar curioso.

Ela foi logo se apresentando e me fazendo as perguntas comuns entre quem se conhece viajando: queria saber da onde eu era, para onde iria, o que estava fazendo ali. Me ofereceu uma carona a qual recusei gentilmente, explicando que queria fazer o trajeto a pé, mesmo percebendo que era a única turista caminhando por aquela região. Farah aceitou com a condição que eu passasse em sua tenda a caminho do monastério para tomarmos um chá. Quando eu disse que não saberia como encontrá-la em meio aquela imensidão de areia e pedra, ela insistiu:

“Você vai dar um jeito, só não desista no caminho,” disse, e continuou sua rota rumo ao trabalho.

Sem GPS e com muito calor, fui seguindo o que imaginei ser a direção certa para o monastério. Cruzei com pessoas que se protegiam do sol debaixo de tendas, outras que dormiam dentro de cavernas e algumas que, ao me ver passando filtro solar, me paravam para pedir um pouco.

Arquivo pessoal

A medida que subia a longa escadaria de pedra, sentia o desgaste do corpo, cada vez mais cansado devido ao esforço no calor que só aumentava.

Parei em uma tenda fechada acreditando ser o lugar mais apropriado para trocar a calça de abrigo quente por um short jeans. Fiquei surpresa ao ver que era uma loja e todos os objetos a venda estavam ali dentro, sem uma alma viva cuidando. E se o dono do negócio chega e acha que estou roubando alguma coisa? O calor era mais forte que o medo de me meter em uma roubada no Oriente Médio. Troquei de roupa o mais rápido que pude e segui viagem.

Ainda não sabia quantos degraus faltavam, mas comecei a entender o conselho de Farah: subir, literalmente, cerca de mil degraus no calor escaldante com uma mochila nas costas não é tarefa fácil. E eu nem sabia o que, além do chá, me esperava lá em cima. Não sabia nem se a encontraria.

“Hello!! remember me?” ouço Farah me chamando, com seu inglês carregado de sotaque e sua voz aguda, enquanto eu passava em frente à sua tenda.

Me acomodei longe do fogo que fervia a água no velho bule, enquanto ela lavava os copinhos de vidro em um balde d’água meio turva. As folhas de menta misturadas com folhas de chá preto flutuavam na água e começavam a soltar uma cor escura no chá. Não estava acostumada a beber chá quente no calor, mas recusar o convite seria considerado um ato grosseiro.

“Trabalho aqui há anos e as coisas não são como antigamente,” confidenciou Farah, antes mesmo que eu fizesse uma pergunta. “Não tem sido fácil. Tenho três filhos e um marido para sustentar sozinha,” ela continuava, enquanto eu sentia o gosto ácido do chá descer pela garganta.

Com apenas 25 anos, Farah sustentava a família com a venda de lenços e objetos em sua pequena loja na subida para o monastério de Petra, algo muito comum por lá, já que a maioria das vendedoras são mulheres. Algumas crianças também acompanhavam as mães, mas não as de Farah: todas elas frequentavam a escola pública.

“A guerra na Síria diminuiu o turismo aqui. Está cada vez mais difícil para quem depende disso. As pessoas têm medo de viajar para a Jordânia porque acham perigoso. Por acaso você achou perigoso?!” ela exclamava em desabafo.

Farah tinha razão. Desde o início do conflito, em 2011, o número de turistas diminuíra drasticamente, uma diferença de mais de 100.000 pessoas em menos de 10 anos.

“Leve um lenço, por favor. Faça a primeira compra para me dar sorte de vender bastante hoje.”

Ao me aproximar da variedade de lenços pendurados na tenda de Farah, dei de cara com um tecido Jacquard. O entrelaçamento de fios rosa, azul e preto criavam uma padronagem cheia de detalhes que lembravam tapetes persas. Nem precisei olhar os outros. Se tivesse que escolher um, seria aquele. Mas acontece que eu não tinha quase nada da moeda local e nenhuma previsão para gastar com coisas que não fossem essenciais para minha sobrevivência. Tampouco sabia que diabos iria fazer com um lenço. E o pior de tudo: eu não sei barganhar.

O lenço, assim como todas as outras coisas, não apresentava nenhuma etiqueta com preço. Arrisquei perguntar e Farah disse um valor alto. Fiz as contas de cabeça e disse o máximo que podia gastar: 8 Dinares, equivalente a 10 dólares.

“Então escolha outra coisa, com esse valor você não leva um lenço assim.” Aceitei sem contestar e fui olhar um souvenir, mas aparentemente essa não era a reação que Farah esperava. Meio desconcertada, ela voltou a falar do lenço, baixando o preço, que continuava alto para mim.

Respirei fundo e lembrei de todas as vezes que minha avó pedia desconto nos balcões de lojas e o quanto aquilo me deixava desconfortável. Mas se havia um lugar para colocar isso em prática, seria mesmo em uma tenda no Oriente Médio.

“Farah, mas eu amei esse lenço! Não tem como fazer por 8 Dinares?” tentei, meio sem jeito.

“Este lenço vale muito mais que os outros. 10 Dinares. É isso ou vá olhar lenços mais simples, como aqueles,” disse, me levando para outra fileira de lenços.

Farah percebeu que barganha não era meu forte. O que ela não sabia, porém, é que se tinha uma coisa que eu entendia era de tecidos.

“Mas por que esse que eu tanto gostei custa mais do que estes que são feitos da mesma forma? Tem alguns com o mesmo número de fios! Farah, eu pago 8 Dinares no lenço, ou não levo nenhum,” eu respondi, convicta.

Surpresa, Farah cedeu à negociação, e eu consegui o lenço no preço que queria, mais por esforço do que por talento. Como forma de agradecimento, ela me ensinou vários modos de usar o lenço cobrindo a cabeça e os ombros, e não entendeu quando eu preferi guarda-lo na mochila.

Segui subindo até pisar no milésimo degrau. A onda de calor deixava a visão embaçada e eu não conseguia decifrar o que estava diante dos meus olhos. Mais uns passos e pude perceber a beleza imponente do monastério de Petra, esculpido em pedra no século III aC. Seus pilares gregos, a porta alta, as cruzes esculpidas nas paredes internas e as flores que nasciam ao redor. Era a vida se revelando nos lugares menos propícios.

Foto de Felipe B Cabral

Diferente das outras partes da cidade, lotadas de turistas, o alto do monastério era um lugar pouco frequentado, uma espécie de prêmio para quem resistiu ao trajeto debaixo do sol.

Em frente ao monastério se encontram montes que permitem ter uma vista panorâmica da imensidão do deserto de Wadi Araba, Israel e Palestina. Do alto, o deserto parece infinito. Areia, pedra e cadeias de montanhas com crateras em diferentes tons de marrom dão a impressão de estar pisando em Marte. Não é à toa que uma placa aponta para o local como “vista para o fim do mundo”. Um daqueles momentos para perceber o quanto somos pequenos diante da magia da realidade.

Deserto de Wadi Araba (Felipe B Cabral)

A realidade também começou a bater em meu corpo, porém de forma menos mágica. Após essa longa jornada minha cabeça, com fios de cabelo longos 1,5 cm, parecia fritar. Senti meus ombros cada vez mais sensíveis, não pelo peso da mochila, mas porque aparentemente o filtro solar não cumprira seu papel.

Ainda tinha que voltar todo o percurso e só então pensei em vestir o lenço para me proteger do calor. Eu, que achava que aquilo iria esquentar mais meu corpo, experimentei a sensação oposta. Farah não me ensinara a cobrir o corpo para os outros, mas apenas a me proteger do sol.

Oito da manhã. Chego no trabalho, retribuo ao “buongiorno” da secretária, tiro o lenço do pescoço e o penduro na parede. Enquanto isso, há 4.000 km daqui, Farah abre sua tenda na subida do monastério. Espero que hoje seja seu dia de sorte.

Texto criado para oficina “Narrativas de Viagem” com mentoria de Gaía Passarelli.

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