Vivendo na Itália do Corona vírus

Munike Ávila
Exploradores
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11 min readMar 13, 2020

Moro em uma pequena cidade na província de Milão, chamada Pregnana M., e trabalho como professora em uma escola em Milão. Este é um relato em forma de diário sobre as vivências pessoais desde a descoberta do vírus na região.

Sexta-feira, 21 de fevereiro: saio cedo de casa em direção a Milão. Pego o trem das 7, sento em um dos degraus da escada e abro meu livro. Fazia tempo que não pegava o trem nesse horário, tinha esquecido o quão lotado ele é.

Desço na estação central para pegar o ônibus até o aeroporto. As ruas estão ocupadas de gente tomando café nos bares ao redor. Todos prontos para iniciar mais um dia de trabalho. Eu aproveito minha folga para viajar pra Letônia.

No aeroporto tudo normal. Nem lotado, nem vazio. Não é alta temporada de viagens.

Chego em Riga e entro no país sem nenhum controle. Passo o fim de semana explorando a cidade sem pensar em abrir notícias e e-mails. Quero aproveitar o máximo e não me incomodar.

Domingo, 23 de fevereiro: aterrisso no aeroporto de Milão. Na chegada, seis pessoas de máscara e coletes luminosos medem a temperatura de cada um. Passo sem problemas, deve ser só um controle de rotina por causa do vírus.

Saio para os portões do aeroporto e não vejo quase ninguém. As poucas pessoas que vejo estão usando máscaras.

Entro no ônibus para o centro de Milão. Mais gente com máscaras, alguns com luvas de borracha. Uma senhora para do meu lado e comenta “e agora esse vírus aqui, o que a gente faz?”.

Vish moça, você tá perguntando pra pessoa errada. Veja bem, eu saí de um país onde tudo parecia normal e voltei para um cenário de filme apocalíptico. Isso tudo em meros 3 dias.

Abro meus e-mails do trabalho. “Oi prof, amanhã vai ter aula?” “Oi Munike, a escola abre amanhã?”. Abro o grupo do trabalho pra ver se tem algum aviso. Nunca vi tanta mensagem num domingo de manhã. “A gente pode ir trabalhar amanhã?”. Não se sabe, ninguém sabe. O governo adotou medidas para escolas públicas e universidades de fecharem as portas por uma semana para evitar a difusão do vírus. Estendeu para institutos, escolas profissionalizantes e qualquer outro tipo de escola.

Confirmado, teremos que passar a semana em casa até segunda ordem.

Corro 5 quadras para pegar o trem pra casa, já que o próximo está cancelado. Entro no trem ofegante e começo a tossir devido a falta de ar, comum pra quem não é acostumada a correr. Algumas pessoas me encaram com desconfiança.

Em pensar que na semana anterior haviam pessoas no mesmo trem tossindo ou assoando o nariz como se não houvesse amanhã, e ninguém dava bola.

Controlo a tosse enquanto o trem continua parado. O maquinista avisa nos auto falantes: atraso de 60 minutos. Aparentemente aconteceu algum problema na linha. Quando o atraso é assim longo, é provável que o trem nem cumpra seu trajeto completo.

Resolvo pegar o metrô que me leva até a estação de ônibus para casa. 30 minutos no metrô. 15 minutos no ônibus. Nunca usei tanto transporte público num curto espaço de tempo. Logo agora que é melhor evitar. Paciência, ao menos cheguei em casa.

Segunda-feira, 24 de fevereiro: como não posso ir ao trabalho, saio com os cachorros pra dar uma volta. Os jovens aproveitam as “férias” forçadas para passar o dia no parque, aglomerados. Aparentemente não entenderam o motivo do fechamento das escolas. Mais provável que não estejam nem aí, jovens…

Encontro pessoas passeando com os cachorros, pessoas andando na rua, restaurantes abertos, crianças brincando no parque, senhores conversando nos banquinhos da cidade. “A Pregnana la vita continua normalmente” (Em Pregnana a vida continua).

A semana continua assim, tudo aparentemente normal, salvo o trabalho que agora é de casa.

No Brasil, as pessoas continuam seu carnaval nas ruas. Aqui vivemos nosso carnaval forçado dentro de casa. Ninguém do meu círculo de relações parece saber o que está acontecendo. Melhor não se preocuparem.

Quinta-feira, 27 de fevereiro: me chamam para ir ao trabalho com alguns outros colegas. Pego o trem das 7 da manhã e, para minha surpresa, encontro alguns lugares para sentar. Vejo algumas pessoas de máscaras.

Antes do trabalho, passo no bar de sempre, tomo meu cafe no balcão e converso com os proprietários, que agora trabalham de luvas. As coisas não são como antes, mas ainda tem um certo movimento.

Continuamos o trabalho que tínhamos deixado parado na semana anterior, sem ter certeza se as escolas reabrem na segunda-feira.

A noite, decido sair com meu marido para comer uma pizza. O restaurante está vazio e os proprietários dizem que até as telentregas diminuíram. As pessoas tem medo. A gente toma uma cerveja e confia: “logo isso passa”.

Recebo mensagens da minha família e amigos íntimos. As notícias começam a circular no Brasil.

Último fim de semana de fevereiro: em Pregnana a vida continua, mas já começam a se sentir algumas mudanças. Alguns restaurantes decidem abrir apenas com reserva de grupo. As compras no mercado online, que fazemos há anos, agora tem entregas apenas pra daqui 5 dias. O governo decide continuar com as escolas fechadas por mais uma semana. Não tenho ideia de quando terei que ir ao trabalho. Também não sei se será possível ver meus pais em uma viagem para Portugal a qual já tinha programado há meses.

Terça-feira, 03 de março: novamente, sou chamada à escola com os mesmos colegas da semana passada. O diretor nos convoca para uma reunião. Na pequena sala se encontram conselho administrativo, setor de comunicação, secretaria, coordenadores e alguns professores. Ao total somos apenas quinze pessoas, 1/3 de quem trabalha ali.

Levo lápis e papel pra eventuais anotações. O diretor parece nervoso, não está sendo fácil gerir a situação. Pede para que agora pensemos como cidadãos, não como empregados e dá a noticia: voltamos a abrir apenas dia 15 de abril. Por alguma razão minha cabeça ouve “15 de março” e não acho nada demais. Escrevo no papel a data “15/04” e exclamo: “abril?!” Isso é daqui mais de um mês.

Ele explica que está se tornando impossível organizar a escola com o governo que de domingo em domingo toma uma decisão sem aviso prévio. Além do mais, muitos dos nossos alunos habitam em outras regiões da Itália e não podem se deslocar para o norte, onde está a zona de risco, por medo de pôr a família em risco ou porque teriam que ficar 14 dias sem trabalhar, pois as empresas estão colocando em quarentena quem se desloca. Alguns alunos moram nas zonas vermelhas onde a saída não é permitida. Os alunos estrangeiros estão voltando para suas casas, principalmente os chineses. Sim, os chineses, que até então eram os que não podiam entrar no país, agora são os que mais querem sair dele por medo. Descubro que minha colega chinesa pediu demissão há uns dias atrás, em pânico com toda a situação da Itália, que até então é o terceiro país no mundo com mais casos.

Começamos a trabalhar em um plano de didática online para suprir os dias perdidos de aula.

Começo a ficar ansiosa sobre a viagem com meus pais para Portugal, olhando a cada hora o site da cia aérea e dos aeroportos. Muitos países estão restringindo a entrada de italianos, mas aparentemente os meus voos ainda estão regulares.

Quinta-feira, 05 de março: desço na estação de trem em Milão. Agora, ao invés de propagandas publicitárias, os monitores mostram os 10 passos para se prevenir contra o vírus. Nos corredores jovens ensaiam suas danças com música alta e adultos fazem exercícios em colchonetes no chão com um personal trainer ou praticam yoga em grupo. Com as academias fechadas, cada um está se adaptando como pode.

Entro em um restaurante para comer um hambúrguer. O aviso na porta diz que temos que manter um metro de distância um do outro, mas o lugar é tão pequeno que isso só se tornou possível devido ao fato de estar vazio.

Continuo a controlar se ainda conseguirei ver meus pais. O voo de ida está confirmado. Tomo a decisão de partir, sem saber se conseguirei voltar para casa.

Sexta-feira, 06 de março: chego no aeroporto deserto e me dirijo para o controle de segurança. Mais pessoas de máscaras. A senhora na minha frente me oferece álcool em gel. Aceito, melhor prevenir.

Ninguém controla nossa temperatura. “Vai ver controlam antes de embarcar”, pensei. Ledo engano. Nenhum tipo de controle para sair do país.

O voo parte com uma média de 50 pessoas em um avião grande. Antes de decolar, as aeromoças passam entregando um panfleto sobre as precauções contra o corona vírus e números úteis para ligar em Portugal caso sinta algum sintoma. Além disso somos obrigados a preencher um formulário do Ministério da Saúde de Portugal com nossos dados e onde ficaremos no país.

Na chegada ao aeroporto, nenhum controle. Me tranquilizo um pouco.

Encontro meus pais. No voo do Brasil não tiveram que preencher nada, nem receberam panfletos.

Pegamos o carro e saímos para explorar o sul do país. Passo o dia sem ler notícias sobre a Itália.

Sábado, 07 de março: no sul de Portugal a vida continua normalmente. Ninguém usa máscaras, álcool em gel ou anda afastado das pessoas. Aproveitamos o dia para explorar lugares incríveis. O Algarve está cheio de turistas europeus com trailers. É bom ver gente na rua.

Nos reunimos para ver o pôr do sol no Cabo de São Vicente em Sagres, conhecido antigamente como o fim do mundo. Me sinto feliz por estar ali.

Domingo, 08 de março: É oficial, a Lombardia está fechada, assim como outras 11 regiões do norte da Itália. Passo o dia preocupada se conseguirei voltar pra casa, olhando a cada hora se meu voo do dia seguinte ainda está confirmado.

Aproveito o último dia em Portugal junto aos meus pais.

Segunda-feira, 09 de março: chegamos ao aeroporto de Faro. O monitor diz que meu voo parte em 2 horas. Me despeço dos meus pais, que continuarão a viagem por mais uma semana.

Para embarcar verificam os documentos e o local de residência. Se você tem documento italiano, embarca sem problemas. Se tem o passaporte de outra nacionalidade, é preciso demonstrar que mora ou trabalha em Milão. Se está apenas a passeio, não pode embarcar.

O voo parte vazio. Chego em Milão e medem minha temperatura. Pego o ônibus até o centro da cidade, agora com todos os passageiros usando máscaras. Fico confusa porque as máscaras são úteis apenas para quem foi infectado ou tem problemas mais sérios de saúde. As pessoas estão ficando neuróticas sem se informarem. Parece que o fim do mundo agora é aqui. Pego o trem vazio pra casa.

Terça feira, 10 de março: o trem continua cada vez mais vazio. Chego no bar, peço um café no balcão e o garçom me diz que tenho que esperar a ao menos 1 metro de distância, ele me chama quando estiver pronto.

Em Milão, as ruas estão desertas. Muitas lojas e bares decidiram fechar, principalmente chineses.

Começamos a organizar os cursos online, nunca feitos na escola. Cada um trabalha em uma sala. Só podem entrar poucas pessoas por dia na escola e o restante deve trabalhar de casa.

Na hora do almoço, o restaurante cada vez mais vazio, não pudemos juntar as mesas e temos que manter 1 metro de distância entre nossos colegas.

Abrimos as notícias e é possível que fechem todo o país por 15 dias: só mercados e farmácias podem ficar abertos. Não sabemos se isso pode acontecer de um dia pro outro, como com as escolas, então levamos pra casa tudo o que nos serve pra continuar trabalhando.

Agora para se deslocar é obrigatório levar consigo um certificado que indique o motivo do deslocamento (trabalho, saúde ou residência) em caso de controle da polícia.

Chego em casa e meu marido me diz que comprou o último cacho de bananas do mercado. Alguns produtos acabaram nas prateleiras, mas eles vão repondo todo dia. Não somos do tipo que enlouqueceu fazendo estoque de comida em casa, temos o suficiente para passar a semana.

Amigos de diferentes lugares do mundo me escrevem preocupados. Está tudo meio estranho, mas estamos bem.

Quarta-feira, 11 de março: trem cancelado, como tantos outros programados para não operarem hoje. A cada semana uma nova lista de trens cancelados, cada vez maior. Eu vou ter trem pra voltar pra casa?

No trabalho a gente se vira nos trinta para gravar aulas de forma profissional, porém urgente, a fim de recuperar os 16 dias de aulas perdidos. Em pensar que um mês atrás eu dei tchau pros meus alunos, disse o que trazer pra próxima semana e a próxima semana ainda não chegou. Na verdade já não temos mais certeza quando as aulas voltarão.

Desço para o mercado para comprar meu almoço. As prateleiras estão abastecidas. Chegando ao caixa dou de cara com uma longa fila e percebo que ela não está cheia de gente mas, sim, com apenas 4 pessoas a um metro de distancia uma da outra. No chão noto faixas feitas com fita durex delimitando o espaço de cada um.

Chego em casa exausta. Decido dormir cedo. As 22 horas meu celular já tinha 3 chamadas não atendidas, mensagens e mensagens no celular do meu marido. Fecharam tudo até fim do mês. Não se pode mais sair de casa até 03 de abril.

Sinto falta da normalidade e da rotina.

Sexta-feira, 13 de março: aproveito a manhã para dar uma volta com os cachorros. Em muitos prédios se vê cartazes coloridos feitos por crianças, com a mensagem “andrà tutto bene” (vai ficar tudo bem). Encontro algumas pessoas que também resolveram sair com seus cães, já que o trabalho está suspenso para todo mundo: bares, restaurantes, hotéis, escritórios, escolas, consultórios, academias, etc. Ninguém sabe muito bem como serão calculados esses dias de trabalho perdido. As empresas nunca tinham se encontrado em uma situação parecida com essa.

Uma das tantas faixa pelos prédios da cidade (Arquivo pessoal)

Enquanto os cachorros interagem de perto, os donos interagem de longe. Alguns usam máscaras. Estranho para todo mundo que era acostumado a se cumprimentar com, no mínimo, um aperto de mão.

Não se vê mais jovens reunidos na praça, a polícia está controlando aglomeração de pessoas e quem for pego sem uma boa justificativa na rua deve pagar uma multa de 200 euros. Ao menos é permitido sair com o cachorro, crianças também ou praticar esportes individuais uma vez ao dia. Por sorte a gente vive muito próximo a uma grande área de campos públicos. Nunca vi tanta gente circulando por ali, sempre mantendo a distância. A cidade está vazia. É estranho não ouvir mais o som das crianças brincando e ver senhorinhas fofocando nas praças.

Somos conscientes que as medidas do governo, apesar de drásticas, podem fazer tudo voltar ao normal mais rápido. Não temos medo do vírus. Sabemos que já estão faltando leitos nos hospitais para tratar as pessoas em risco: idosos e pessoas com patologias. É por isso que é melhor se cuidar para evitar a proliferação.

Uma camionete da polícia passa de rua em rua com um alto-falante anunciando: “fiquem o máximo possível dentro de suas casas. Mantenham a distância de um metro. Saiam apenas em casos de extrema necessidade.”

Lá fora o dia está lindo e tudo parece normal. É difícil conceber a ideia de que é perigoso sair na rua. Mas temos que nos cuidar para cuidar do outro, fazer nossa parte.

Eu continuo a seguir o conselho do meu escritor preferido, Douglas Adams: DON’T PANIC!

Andrà tutto bene.

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