Vou-me embora pra Pasárgada

Renata Alchorne
Exploradores
Published in
12 min readJun 11, 2018
A caminho de Pasárgada

“Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei…”

O poema de Manoel Bandeira é um clássico que, provavelmente, a maioria dos brasileiros conhece ou, pelo menos, já ouviu falar, principalmente na época de estudos de literatura do 2o grau (ou Ensino Médio). Essa Pasárgada, tão fantasiosa e distante, tornou-se uma feliz realidade para mim em 2015.

O destino: Irã. Oficialmente República Islâmica do Irã, esse país de cultura, história e paisagens incríveis é tão injustiçado pela mídia ao mostrar apenas o seu lado conturbado de conflitos com países ocidentais, devido ao histórico dos governos iranianos, principalmente ligados a atividades de desenvolvimento de armas nucleares. Claro, o meu depoimento aqui não é para julgar a política ou a religião do país, que tem inúmeras questões polêmicas sobre economia, liberdade, direitos da sociedade e outros. O meu depoimento é de uma turista e esse eu afirmo: não sabia o que esperar e hoje eu confirmo — vale cada minuto!

A minha incrível passagem pela Pérsia (sim, os famosos e mais caros tapetes persas vêm do Irã! Falarei mais sobre isso…) compreendeu três cidades: Teerã, capital do país, Isfahan e Shiraz.

Para visitar o Irã como turista, é necessário visto. Solicitei ele através da embaixada do Irã em Brasília. Também há a possibilidade de obtê-lo nos aeroportos na chegada ao país (visa on arrival). Optamos pela primeira opção, porque há alguns relatos na internet de que poderia ser arriscado o visto online, pois as companhias aéreas poderiam impedir o embarque de passageiros sem o visto. Resumidamente, temos de enviar a documentação à Brasília e obter a aprovação do Ministério das Relações Exteriores do Irã e, para isso, é necessário contratar uma agência para realizar os trâmites. Para maiores informações: https://projeto101paises.com.br/ira-como-tirar-o-visto-de-turismo/.

A nossa chegada foi via capital Teerã. Previamente, li que, por ter o islamismo como religião oficial no país, as mulheres devem se vestir cobrindo todo o corpo. Algo muito comum que a população ocidental confunde (eu tinha essa dúvida uns anos atrás) é associar o islamismo ao uso de burca. Na verdade, existem vários “graus” de conservadorismo em relação à vestimenta das mulheres quando falamos de islamismo e, dentro deste assunto, existem os diferentes tipos de véus. No caso do Irã, a maioria das mulheres usam a “Shayla” para cobrir o cabelo, mas pode haver variações. Para quem quiser saber um pouco mais sobre os tipos de véus usados pelas mulheres mulçumanas: https://www.significados.com.br/burca/.

No vôo de chegada, é orientado que as mulheres cubram os cabelos, fazendo dos lenços um acessório fortemente comercializado no país, pois é uma peça obrigatória no guarda-roupas delas. Eu já levei um na mala e, claro, comprei uns para minha recordação.

Eu e minhas coleguinhas iranianas usando as shaylas num passeio noturno em Teerã.

Para tornar ainda mais emocionante a nossa chegada, o meu marido (Marcelo) teve a ideia de fazermos um couch surfing, que é um movimento mundial de pessoas receberem pessoas de outros lugares de graça em suas casas, emprestando seu “couch” (sofá) para dormir. O valor disso é a troca de cultura, experiências, conhecer novas pessoas, novas línguas. Nós tínhamos nos cadastrado no site www.couchsurfing.com e nos candidatamos a ficarmos na casa de alguém em Teerã. Um casal sem filhos nos aceitou e fomos pra casa deles de táxi.

Ao chegarmos lá, o casal nos recebeu super bem em seu apartamento. Conversamos bastante e eles nos explicaram algumas coisas da rotina deles e o que tinha na redondeza. Eles eram profissionais de Educação Física, ela, professora de basquete.

Nossos anfitriões queridos em Teerã.

Nessa altura da viagem, nós tínhamos já passado pela Jordânia (essa será uma outra história…) e nos deparamos com o Ramadã, que é o nono mês do calendário islâmico no qual os muçulmanos praticam o jejum do nascer até o pôr do sol. Neste período há uma intensa visitação às mesquitas. O mês do Ramadã foi o mês de revelação do Corão.

Assim, ao chegar ao Irã, já tínhamos meio que nos adaptado a não comer nada durante o dia, apenas após o pôr do sol. Mas, o casal que nos recebeu nos explicou que muita coisa mudou na sociedade atual, principalmente entre os jovens. O ritual não é tão duro assim e, dentro de casa, as pessoas comem. A gente pôde beber água, chá e beliscar umas tâmaras (AS MELHORES DO MUNDO!) na casa deles. Ah, dentro de casa, as mulheres podem se vestir como querem, sem o lenço na cabeça (eu realmente não sabia como era em casa). E isso foi uma experiência do couch surfing, porque eu não ia saber disso ficando num hotel.

Nós dormimos na sala mesmo, em um colchão improvisado de cobertores. Uma surpresinha que eu não me liguei quando entrei no banheiro é que o vaso sanitário oriental é no chão (aquele buraquinho que a gente tem que fazer de cócoras), então os três dias lá seriam dessa forma. Mas, seguimos em frente.

Os iranianos são surpreendemente receptivos e gostam de conversar. Muito provavelmente, o fato do país ser bastante fechado ao mundo, faz com que estrangeiros no país sejam uma oportunidade para a população interagir com este mundo menos acessível para eles.

No primeiro dia em Teerã, nós saímos andando pela cidade, reconhecendo o terreno, meio sem destino. Havia uma torre, tipo a Stratosphere em Las Vegas, que avistamos e fomos em direção a ela. Era um shopping com vários bares e restaurantes. Pelo caminho, passamos por vários lugares muito arborizados e praças que as pessoas exploram para um bom piquenique em família ou entre amigos. No período em que estávamos do Ramadã, após o pôr do sol, as ruas e praças lotavam de gente! Seguimos nossa caminhada quase interminável até esse pólo gastronômico que estava bem cheio, até que nos decidimos por uma pizzaria que estava transmitindo a liga mundial de vôlei masculino (acompanho desde sempre!) com uma partida ao vivo de Brasil x Irã, no Teerã!!! Mas, por que eu não fui? Porque, no Irã, não é permitida a entrada de mulheres em ginásios e estádios de esportes… Comentários à parte, seguimos vendo o jogo pela TV e comendo uma pizza :)

Vida noturna em Teerã.

Nós tínhamos mais duas cidades no roteiro para visitar na Pérsia e ainda retornaríamos ao Teerã para o vôo de volta ao Brasil.

Dentre algumas histórias do povo solícito deste país, nós estávamos tentando nos localizar para voltar à casa dos nossos anfitriões de couch surfing e perguntamos a um casal como chegar ao ponto de ônibus. O rapaz nos perguntou aonde queríamos ir e ele não entendia tão bem inglês, mas estava tentando se esforçar. O que ele fez? Ligou para um amigo que falava inglês e nos colocou para conversar com ele pelo celular que nos orientou como chegar. Acabou que o casal nos ofereceu uma carona até próximo do nosso endereço. Entramos no carro e começamos a conversar. Eles nos disseram que eram da Armênia e moravam há algum tempo em Teerã, trocamos contato no instagram até hoje!

Percebemos ao longo da viagem que essa prática de tentar achar alguém para ajudar e oferecer carona é algo meio comum. Passamos por várias situações assim.

Em Teerã mesmo, acabamos por outra vez caindo numa pizzaria de novo, e não entedíamos o menu, pois estava tudo escrito em farsi (único lugar no mundo onde se fala essa língua) e, então, estávamos tentando pedir um sabor para o atendente que ligou para um amigo para traduzir o que queríamos pra ele! Acabamos conseguindo e comemos uma boa pizza de alguma coisa que não lembro com pepsi.

A gastronomia no Irã não é um ponto forte. A comida é boa, caseira, não é apimentada, mas não existe uma varidade de comidas típicas. Como não existem marcas de fora, a comida disponível é totalmente local, tirando a coca cola e a pepsi, como sempre presentes. Durante os 10 dias que ficamos lá, ficamos à base de arroz jasmim com açafrão (não é o açafrão da terra/cúrcuma comum aqui, é tipo um pólen de uma flor caríssimo que se coloca em cima do arroz), kebab de carne de ovelha e pão típico iraniano. Eles também bebem uma espécie de lassi que é um iogurte para acompanhar as refeições. Fora isso, nos mercados, víamos muitos doces locais com pétalas de rosa, pistache, tâmaras, bolos, chás, diversas especiarias e oleaginosas.

O lassi e o famoso pão iraniano.

Saindo da capital, nós fomos de ônibus para a próxima parada: Isfahan. Essa era, inclusive, a cidade natal da moça que nos hospedou em Teerã. Ela nos deu algumas dicas e falou que o hotel que íamos ficar era legal e histórico na cidade. O casal nos levou de carro até a rodoviária e passamos a noite viajando em um ônibus-leito, super tranquilo, com direito a lanchinho noturno. Ishafan fica cerca de 340 quilômetros ao sul de Teerã.

Lanchinho no ônibus para Isfahan.

Nosso objetivo nesta cidade era rodar por suas belíssimas mesquitas e praças, dentre elas a Praça de Naqsh-e Jahan (ou Meidan Emam) que se situa no centro da cidade de e é uma das maiores praças do mundo. A praça está rodeada por importantes edificios da era safávida. A Mesquita Shah no lado sul desta praça. No lado oeste se encontra o Palácio de Ali Qapu. A Mesquita de Sheikh Lotf Allah ao lado leste da praça e o norte dá acesso ao Grande Bazar de Isfahan.

Praça de Naqsh-e Jahan, em Isfahan.

Marcelo tratou de, através do site de couch surfing, marcar um encontro com uma iraniana nos arcos à noitinha para conversarmos. No horário marcado, conhecemos Marjan e o noivo Jon As, um alemão, que tinha saído de casa de bicicleta para rodar o mundo. Ele acabou parando em Isfahan, onde a conheceu e ficaram noivos. Ele estava ficando uma temporada lá para resolverem os trâmites do casamento, já que ele teria de passar um tempo no Irã para se converter ao islamismo e, assim, poderem se casar e ela ir para a Alemanha com ele. Conversamos cerca de 4 horas, contamos bastante histórias à base de chá e bolo que Marjan levou para lancharmos (em países oficialmente muçulmanos, é proibido por lei o consumo de bebida alcóolica). Ela contou que os sogros já tinham ido ao Irã pra as famílias se conhecerem e ela estava estudando alemão para poder fazer prova de línguas e ter direito, posteriormente, à cidadania. Por acaso, passamos depois em frente ao consulado alemão em Teerã e, realmente a Alemanha se mostrava, na época, muito aberto a receber iranianos, vimos filas grandes para obtenção do visto.
Hoje, três anos depois, eu e Marjan trocamos mensagens ainda, são um casal que também adora viajar pelo mundo e já os convidei a virem ao Brasil!

Arquitetura em Isfahan: cenário do nosso piquenique.
Encontro Brasil-Irã-Alemanha.

No outro dia, no jardim da Praça de Naqsh-e Jahan, estávamos caminhando, com tudo fechado devido ao Ramadã e, ao sentarmos num banco, um jovem nos abordou puxando papo, contou que estava fazendo graduação em engenharia e estava com data marcada para ir também para a Alemanha estudar lá. Falava bem inglês e ficamos batendo papo. Claro, depois ele nos chamou para visitar a loja de tapetes persas que ele estava fazendo um “bico” nas férias. Neste dia, não fomos, não tínhamos nenhuma intenção de comprar tapetes persas. Mas, no outro, ao parar num café, lá estava o mesmo rapaz fazendo outro bico! Reconheceu a gente e insistiu pra irmos na tapeçaria. Acabamos indo e tendo uma aula de tapetes. Eles realmente achavam que a gente estava com grana :P Eu, sem a menor noção de valor, perguntei quanto era um dos tapetes maiores e o rapaz falou 10 mil dólares. Fui diminuindo o tamanho, até chegar em um do tamanho da minha mão (sério) e esse custava 400 dólares: moço, o senhor não está entendendo, eu não tenho dinheiro não…! São realmente, uma obra de arte, os tapetes são de fio de seda, feitos à mão. Cada fiozinho do tapete é colocado lá manualmente, 90% dos tapetes persas do mundo vêm do Irã. Saí de mãos abanando mesmo e seguimos nosso caminho rumo às mesquitas.

Em algumas conversas que tivemos com os locais, a população jovem está demonstrando um comportamento mais moderno. Vimos casais de namorados ou casados caminhando de mãos dadas ou em encontros mais isolados em praças. Ainda não é um comportamento natural de toda a população, mas pareceu ser aceito. Isso me deixou mais à vontade de andar de braços dados com Marcelo sem maiores receios.

A partir de Isfahan, a gente decidiu ir para Shiraz de avião, para otimizar o tempo. Uma horinha de vôo até lá ou 7h de ônibus. Voamos então de Iran Air, com pequenas turbulências para dar uma emoção, só imaginando que estávamos voando por um país que faz fronteira com o Iraque e Afeganistão, por exemplo.

Em Shiraz, nós conhecemos um mundo, até então, bem distante: o país é o lar de uma das civilizações mais antigas do mundo. O Irã atingiu o auge de seu poder durante o Império Aquemênida, fundado por Ciro, o Grande, em 550 a.C., tornando-se um dos maiores impérios do mundo na época (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ir%C3%A3o). Foi realmente como entrar nos livros de história, conhecendo as cidades de Persépolis, Pasárgada e Necrópolis, a cidade dos mortos, com quatro tumbas gigantescas em pedra.

Persépolis

Ainda em Shiraz, conhecemos uma das mais belas mesquitas do país. Mais uma vez, separando os homens das mulheres, ao entrar na ala feminina, eu estava bem cansada do dia e do calor, sentei no cantinho e fiquei esperando o tempo passar. Uma moça vestindo Chador (um dos tipos de véus que, geralmente, é preto e cobre a da cabeça aos pés, mas mostra o rosto) se aproximou e perguntou de onde eu era, falei que brasileira e estava esperando meu marido. Ela pegou o celular e começou a usar o google translate pra gente se falar melhor. Ela explicou um pouco sobre a mesquita e que se chamada Fatemeh (ela escreveu pra mim). Depois de um tempo, falei que iria sair para encontrar Marcelo e ela saiu comigo, apresentei ela a Marcelo que já estava achando que eu tinha me perdido, pois acabei passando bem mais tempo lá dentro.

Fatemeh nos perguntou qual o próximo destino e nós íamos ao mercado. Ela falou que iria nos levar lá, que ia chamar o amigo taxista pra nos levar. Sério, ela insistiu MUITO e comecei a ficar com receio. Falamos que não precisava se incomodar; a gente não estava entendendo direito se ela queria nos levar pra dar um dinheiro pro amigo, não sabíamos. Até que, sem escapatória, ela chamou o amigo e foi conosco até o mercado. Não quis que pagássemos a corrida, que era uma gentileza, um prazer pra ela e ficou conosco no mercado! Ela queria agora me dar uma lembrança de lá, que eu escolhesse alguma coisa pra ela comprar. Comecei a despistar e dizer que não precisava MESMO! Não adiantou, ela comprou um pingente e me deu!
Depois disso, falamos que estávamos com horário para irmos para o aeroporto e realmente íamos voltar para Teerã.

Minha bff na mesquita em Shiraz.
Numa outra Mesquita que não permitia entrada de mulheres, esperando super satisfeita :)

De volta a Teerã, conhecemos a Embaixada dos Estados Unidos, cenário do filme Argo. Ela foi tomada por um grupo de estudantes radicais iranianos na manhã de 4 de novembro de 1979, apenas nove meses depois do triunfo da Revolução Islâmica que derrubou o xá Reza Pahlevi e levou o aiatolá Ruhollah Khomeini ao poder. Os revolucionários mantiveram 52 diplomatas americanos reféns durante 444 dias, até o fim do sequestro, em janeiro de 1981. (fonte: https://www.estadao.com.br/noticias/geral,ha-30-anos-iranianos-ocuparam-embaixada,461466)

Argo conta a tomada da Embaixada Americana pelos Iranianos.

Mais uma vez, mas acho que mais do que outras, a sensacional frase de Amyr Klink me reforçou o sentido de viajar pelo Irã: vá e veja com seus próprios olhos:

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver” .

Não vamos nos deixar levar pelo apelo da mídia, isso nos tira possibilidades inimagináveis de criar nosso próprio olhar sobre o mundo e o que somos diante dele. Ter me dado essa oportunidade fortaleceu ainda mais isso!

Até a próxima!

Gostou? Clique nas 👏 para que eu fique sabendo! Para continuar recebendo mais textos como esse, siga Os Exploradores.

--

--