As Racionalidades Medicas, O Dialogo Entre Saberes E A Naturologia: Reflexões Para Uma Definição (Teixeira, 2013)

Lucas G
Fórum Conceitual de Naturologia
15 min readJun 9, 2021

Paper publicado nos anais do congresso de naturologia de 2013.
Por Diogo Virgilio Teixeira, Naturólogo e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.

Introdução

Todos aqueles que decidiram estudar e trabalhar com a Naturologia, em algum momento de sua carreira, e provavelmente em vários momentos, vão se deparar com a inevitável pergunta: o que é a Naturologia?¹ A Naturologia emergiu no Brasil, na década de noventa, como um curso de graduação da área da saúde que, desde sua fundação, procura abordar a saúde e a vida a partir de uma perspectiva ampliada. Esta ampliação da abordagem em saúde, leva em consideração os diversos aspectos da vida e a complexidade das relações entre estes aspectos. Entretanto, atualmente, a Naturologia não se limita a um curso de graduação, uma vez que muitos naturólogos já se formaram e vêm buscando abrir caminho no mercado de trabalho, na academia e no Sistema Único de Saúde. Na medida em que a Naturologia deixa os limites da universidade e passa a ser oferecida como pratica de atenção à saúde, defini-la como um curso de graduação da área da saúde passa a ser limitante e a elaboração de novas definições se fazem necessárias. Como explicar para as pessoas que procuram um naturólogo o que é a Naturologia? Como explicar para outros profissionais da saúde o que faz um naturólogo? Como definir os campos de saber e atuação deste profissional, para que se possa regulamentar sua profissão?

¹ (Mantenho a grafia da palavra Naturologia com inicial maiúscula, porque os naturólogos assim o fazem, embora eu não compreenda bem o porque.)

Perguntas como estas impulsionaram a criação do “I Fórum Conceitual da Naturologia”, que foi realizado junto ao “II Congresso Brasileiro de Naturologia” no ano de 2009, na cidade de Florianópolis. A ideia deste primeiro fórum, era a de pensar na elaboração de um conceito para a Naturologia, sendo que, aproximadamente dois anos apos este primeiro, o debate foi retomado no “II Fórum Conceitual da Naturologia”. Durante os debates que se desenvolveram neste segundo fórum apontei que, na minha opinião, um conceito qualquer não pode ser criado a partir de debates orais, senão a partir de aprofundamento teórico e pesquisas exaustivas. Propus, então, que pensássemos mais numa definição da Naturologia, do que num conceito para ela. Além disso, apontei a necessidade de se estudar os conceitos, ou noções, que embasam os saberes e práxis naturológicos, como as noções de: natureza, abordagem integral do ser, relação de interagência, entre outras. Já a partir do “III Fórum Conceitual da Naturologia”, uma nova forma de debates foi organizada, onde as discussões e reflexões foram realizadas a partir de papers escritos por naturólogos, professores e pesquisadores em Naturologia. No ano em que ocorreu o terceiro fórum, iniciei minha pesquisa de campo junto aos naturólogos, onde procurei investigar a forma como estes profissionais assimilam e articulam os fundamentos concernentes as diferentes tradições medicas, ocidentais e não ocidentais, com as quais trabalham. Nesta pesquisa investiguei, ainda, a forma como os naturólogos estão discursando acerca de suas principais categorias êmicas, a saber: natureza, abordagem integral do ser, relação de interagência e educação em saúde.

As vésperas da realização do “IV Fórum Conceitual da Naturologia”, que em algumas semanas antecipará o “VI Congresso Brasileiro de Naturologia”, me encontro profundamente envolvido com as noções e conceitos que embasam os saberes e práxis naturológicos, uma vez que estou terminando de redigir uma etnografia da Naturologia. Assim, as reflexões que permearão o presente texto são frutos das observações, analises e reflexões provenientes de um trabalho de campo antropológico, feito junto aos naturólogos formados na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). A parte empírica desta pesquisa foi realizada na referida universidade, em eventos acadêmicos (fóruns e congressos) e em diversos espaços onde os naturólogos estão atuando nos estados de São Paulo e Santa Catarina (consultórios, clinicas, spa, universidades, postos de saúde, entre outros). Creio que a etnografia que venho redigindo, como um todo, tenha muito a contribuir com as reflexões propostas para o “IV Fórum Conceitual da Naturologia”. Entretanto, por hora, me debruçarei na apropriação (realizada pelos naturólogos) do tipo ideal racionalidades medicas, numa possível definição para a Naturologia e em reflexões acerca da construção da visão naturológica.

Breves considerações metodológicas

Não é segredo, para aqueles com algum aprofundamento em antropologia, a complexidade concernente a elaboração de uma etnografia. Desde as primeiras etnografias baseadas em trabalho de campo, escritas por Malinowski no inicio do século passado, ate as atuais etnografias experimentais e pós-modernas, muito já foi refletido e escrito acerca da pratica etnográfica. De acordo com Rocha e Eckert (2008, p.22):

A prática etnográfica tem por desafio compreender e interpretar tais transformações da realidade desde seu interior. […] Assim o oficio de etnógrafo pela observação participante, pela entrevista não-diretiva, pelo diário de campo, pela técnica da descrição etnográfica, entre outros, coloca o(a) cientista social, o(a) antropólogo(a), mediante ao compromisso de ampliar as possibilidades de re-conhecimento das diversas formas de participação e construção da vida social.

Estes autores estão salientando a importância da etnografia enquanto pratica que possibilita a ampliação do conhecimento acerca das diversas formas de se construir a vida social. Com relação a área da saúde, especificamente, Menéndez (2003) defende que, além de analisarmos a pluralidade medica existente na sociedade, é necessário estarmos atentos, enquanto cientistas sociais, a esses saberes e praticas não no que concerne a eficácia técnica, senão devemos “[…] reconhecer a existência deles, dado que o Setor Saúde (SS) e a biomedicina têm uma tendência a negar, ignorar e/ou marginar a maioria de saberes e formas não biomédicas de atenção aos padecimentos.” (MENÉNDEZ, 2003, p.17). Enquanto antropólogo pretendo, neste texto, apresentar alguns pontos interessantes da etnografia da Naturologia que estou elaborando. Vale lembrar que esta etnografia ainda não está pronta e, portanto, esta não é a síntese da mesma ou de um de seus capítulos, senão reflexões baseadas em meu trabalho de campo e no próprio processo da escrita etnográfica.

Racionalidades medicas ou medicinas tradicionais?

A partir de seu segundo projeto pedagógico, que entrou em vigor no ano de 2004, o curso de Naturologia da UNISUL passou a se fundamentar, pelo menos enquanto discurso, na “tríade das medicinas tradicionais”, composta pelas: “Medicina Tradicional Chinesa”, “Medicina Tradicional Ayurveda” e “Medicina Tradicional Xamânica”. De acordo com este projeto pedagógico:

A Naturologia vem resgatar essa integração do homem com o meio e baseia-se hoje, nas praticas, das Tradicionais Medicinas Chinesa, Ayurveda e Xamânica, utilizadas desde a antiguidade e que foram tendo seus beneficios comprovados ao longo da historia pelo uso, e por pesquisas cientificas. (UNISUL, 2003)

Embora eu não considere que as tradições medicas chinesa e ayurveda (ou “medicinas tradicionais” como chamam os naturólogos) sejam, de fato, os pilares da Naturologia, como se discursou alguma vez, o fato é que os saberes e práxis naturológicos são amplamente influenciados por estas tradições. A partir de algum aprofundamento teórico e de pesquisas relacionadas às tradições medicas não ocidentais, naturólogos e naturólogas que seguiram carreira acadêmica entraram em contato com o conceito de racionalidade medica. Este tipo ideal, criado aos moldes de Max Weber pela socióloga da saúde Madel Luz, é utilizado para comparar sistemas médicos complexos, dentre os quais: o sistema medico chinês, o ayurveda, e o biomédico. (LUZ e BARROS, 2012). Sendo a Naturologia um campo de saber que aborda fundamentos destes três sistemas médicos, o tipo ideal racionalidade medica foi rapidamente assimilado pelos naturólogos em suas pesquisas e reflexões. Entretanto, acho importante salientar que ainda existe alguma confusão no que se refere ao tipo ideal racionalidade medica. Para que possamos compreender esta confusão, é necessário que possamos entender, antes, o que é um tipo ideal. De acordo com Max Weber (1997) o tipo ideal é uma construção mental, onde:

Pelo seu conteúdo, essa construção reveste-se de caráter de uma utopia, obtida mediante a acentuação mental de determinados elementos da realidade. A sua relação com os fatos empiricamente dados consiste apenas em que, onde quer que se comprove ou suspeite de que determinadas relações […] chegaram a atuar em algum grau sobre a realidade, podemos representar e tornar compreensível pragmaticamente a natureza particular dessas relações mediante um tipo ideal. (WEBER, 1997, p.105, grifos do autor).

O tipo ideal é, portanto, um conceito construído racionalmente com objetivo de comparação com a realidade que, essencialmente, já difere em substancia desta elaboração mental. O tipo ideal nunca será igual a realidade, ele é apenas um instrumento de comparação. (COSTA, 2011). Neste sentido, não poderíamos supor, por exemplo, que as racionalidades medicas dialoguem. Como construções mentais poderiam dialogar? O tipo ideal racionalidade medica foi criado para comparar sistemas médicos complexos, é um instrumento sociológico, utópico e intelectual que não dialoga com ninguém. Podemos dizer que os saberes provindos de diferentes tradições medicas estão em dialogo tanto no ensino, quanto na pratica da Naturologia, mas quem faz este dialogo são os naturólogos, e o dialogo é estabelecido a partir de saberes de tradições medicas, e não de racionalidades medicas (que são apenas ferramentas teóricas). Outro ponto importante a ser levantado, é o fato de que, mesmo as tradições medicas abordadas pelo Projeto Racionalidades Medicas, e pela Naturologia, não devem ser vistas como totalidades homogêneas. A própria criadora do tipo ideal racionalidade medica aponta para o cuidado que se deve ter, no sentido de evitar a homogeneização de sistemas altamente complexos. De acordo com suas palavras:

[…] sabíamos que estávamos lidando com sistemas de grande complexidade, de constituição interna heterogênea, fruto de mudanças desenvolvidas ao longo dos séculos, como é o caso das medicinas chinesa e ayurvédica. Olhar esses sistemas médicos como uma totalidade homogênea e acabada, sem historia, seria cair na simplificação e na banalização a pouco mencionadas […] (LUZ e BARROS, 2012, p.29).

A pesquisadora está alertando para o perigo que existe em abordar sistemas médicos complexos como se fossem totalidades homogêneas. Ao meu ver, limitar a tradição medica chinesa, que é fruto de uma construção milenar e heterogênea, às descrições de alguns de seus traços essenciais (as seis dimensões das racionalidades medicas) é empobrecer esta tradição. E certamente não foi essa a intenção da professora Madel Luz. Concordo que o tipo ideal racionalidade medica é de fundamental importância e que ele vem cumprindo bem os objetivos para os quais foi criado, dentre eles: estabelecer que existe mais de um sistema medico operando no ocidente (o que vem de encontro com a suposta hegemonia da biomedicina) e estabelecer comparações entre estes diferentes sistemas médicos. (LUZ e BARROS, 2012). Mas não devemos utilizar esta categoria como se ela fosse, de fato, as tradições medicas às quais faz referencia.

Para uma definição da Naturologia

Como salientei no inicio deste texto, quando a Naturologia deixou os limites da universidade e passou a ser oferecida como pratica de atenção à saúde, emergiu a necessidade de explicar tanto para outros profissionais, quanto para a população em geral, do que se trata a Naturologia e qual a função do naturólogo. Para tanto, foram criados os fóruns conceituais da Naturologia, nos quais se pretende discutir as bases teóricas e epistemológicas dos saberes naturológicos, além de procurar uma definição para a Naturologia. Entretanto, definir um campo de saber altamente dialógico e dinâmico, como a Naturologia, não é uma tarefa tão simples, como os naturólogos vêm percebendo no decorrer destes fóruns conceituais. Em primeiro lugar, temos que saber o que é uma definição e quais são seus objetivos. A ciência que estuda os tipos de definição se chama logica e, de acordo com Irving M. Copi (1981, p.112): “[…] convém observar que as definições são sempre símbolos, pois somente os símbolos têm significados que as definições explicam.”

De acordo com Copi (1981), existem cinco propósitos para a elaboração de uma definição. Estes propósitos podem servir: para aumentar o vocabulário; para eliminar ambiguidade; para aclarar significado; para explicar teoricamente e, finalmente, para influenciar atitudes. Dentre estes propósitos, creio que três são os que mais interessam à uma definição da Naturologia. O proposito de eliminar ambiguidades, ao meu ver, é importante, uma vez que a própria etimologia da palavra Naturologia confunde as pessoas que são levadas a crer que ela teria o mesmo viés das ciências naturais. O outro proposito para uma definição da Naturologia que me parece importante, é o de aclarar um significado. Este proposito é útil, sobretudo, para esclarecer a população acerca do que é a Naturologia e o que faz um naturólogo, uma vez que muitas pessoas já ouviram falar da Naturologia, sem saber direito do que se trata. E o ultimo propósito que acho relevante, é o de explicar teoricamente. Este proposito visa formular uma caracterização teórica adequada e cientificamente útil e, no caso dos naturólogos, é especialmente importante no dialogo com outros profissionais e na regulamentação de sua profissão.

Postos os propósitos para uma definição da Naturologia, devemos agora entender quais são os tipos de definição. Copi (1981) enumera cinco tipos de definições: definições estipulativas, definições lexicográficas, definições aclaradoras, definições teóricas e definições persuasivas. Existem motivos a serem debatidos, para não utilização de definições estipulativas, lexicográficas e persuasivas no caso da Naturologia. Entretanto, por uma questão de espaço, me dedicarei somente aquelas que me parecem uteis neste caso. As definições aclaradoras são especialmente uteis, pois servem bem ao proposito de aclarar o significado e podem ser utilizadas para esclarecer o que é Naturologia para a população em geral. O outro tipo de definição importante é a definição teórica, pois tenta formular uma caracterização teoricamente adequada para aquilo ao qual se aplica. Este tipo é interessante, pois as definições teóricas são substituídas por outras na medida em que a compreensão e o conhecimento teóricos aumentam. (COPI, 1981). Diante da grande dinamicidade da construção do campo de saber naturológico, da grande variedade de saberes que este campo aborda e das incertezas que um campo tão novo possui acerca de si mesmo, é importante ter em mente que qualquer definição teórica da Naturologia é provisória e pode ser modificada a qualquer momento.

Outro ponto importante na elaboração de uma definição, é a técnica de definição que será utilizada. Podemos dividir as técnicas de definição em dois grupo: as definições denotativas, ou extensivas, e as definições conotativas, ou de intensão (com “s”, diferente de intenção, com “ç”). As definições denotativas, ou extensivas, são construídas a partir da enumeração de diversos casos empíricos semelhantes, e são amplamente utilizada em dicionários de bolso. Esta técnica é limitada, pois ao enumerar, por exemplo, as praticas e o campo de atuação do naturólogo, também estaríamos enumerando praticas e campos de atuação utilizados por outros profissionais que não são naturólogos, como os terapeutas holísticos. Já as definições conotativas, ou de intensão, são uteis, em especial, para definir palavras que conotem propriedades complexas, como é o caso da Naturologia. Utilizar definições extensivas e intensionais, simultaneamente, não é um problema, entretanto, devemos ter em mente que quanto mais ampliamos uma definição intensional, menos poderemos ampliar a definição extensiva. (COPI, 1978). Por exemplo, ao definir a gastrenterologia em termos cada vez mais específicos, o gastroenterologista limita cada vez mais o seu campo de atuação ao aparelho digestório. Neste caso, uma definição intensional ampla (da especialidade medica), pode diminuir a possibilidades numa definição extensiva (enumeração dos campos de atuação deste medico).

A técnica de definição conotativa, ou intensional, também é chamada de definição por gênero e diferença, onde o gênero, utilizado para compor a nova definição, já foi pré-definido e a diferença, particular de cada caso, é utilizada para especificar o que desejamos definir. Para citar um exemplo bem simples, pensemos numa das primeiras definições de homem: o homem é um animal racional. O gênero animal é conhecido por todos, sua definição já preexiste e une o homem a uma grande quantidade de entes que possuem a característica de ser animal, mas não o especifica. Agora quando dizemos que ele é racional, estamos especificando uma diferença, uma propriedade especifica deste tipo de animal. Existem algumas regras que devem ser observadas neste tipo de definição: ela não deve ser circular, não deve ser excessivamente ampla, nem demasiado estreita, não pode ser expressa em linguagem ambígua, obscura ou figurada e não deve ser negativa quando pode ser positiva.

Tendo claro os propósitos, tipos e técnicas de definição, os naturólogos não precisam ter pressa em definir a Naturologia, mas já estão munidos do mínimo necessário. Como já sugeri anteriormente, dois tipos de definição seriam uteis para os naturólogos: uma delas é a definição aclaradora, a ser utilizada, especialmente, na divulgação da Naturologia para o publico em geral que já ouviu falar de Naturologia, mas não tem clareza do que se trata. A outra forma de definição importante para os naturólogos é a definição teórica, uma vez que pode formular uma caracterização teoricamente adequada ao dialogo com outros profissionais da saúde. Uma mesma definição pode servir aos dois propósitos, mas creio que uma definição aclaradora poderia ser mais sucinta, para facilitar o entendimento da população, e a teórica mais ampla, para servir aos propósitos teóricos e de pesquisa. O mais importante é ter em mente que estas formas de definição não devem ser definitivas, sendo que podem, e devem, mudar de acordo com aprofundamento teórico. Deve-se ter cuidado, com termos ambíguos e obscuros, que só trariam mais confusão, assim como com o excesso de conotação que, como vimos, pode limitar a extensão da definição.

Pluralidade de saberes em saúde

Tanto no ensino universitário da Naturologia, quanto na atuação dos naturólogos, diversas praticas e saberes são articulados e utilizados com vistas a educação em saúde. Dentre eles, podemos destacar aqueles referentes: a medicina chinesa, a medicina ayurveda, a antroposofia, o xamanismo, a fisiologia, a psicologia, as ciências sociais, entre outros. Quando fui a campo conversar com meus interlocutores de pesquisa, o que me inquietava era tentar compreender de que forma os naturólogos estão assimilando e articulando estes diversos saberes em suas reflexões e em sua pratica. Meu foco de pesquisa estava voltado, sobretudo, àqueles saberes referentes aos sistemas médicos que foram enquadrados no tipo ideal racionalidade medica (medicina chinesa, medicina ayurveda e medicina ocidental contemporânea). Optei por observar os saberes destas tradições medicas, especificamente, por dois motivos simples: se por um lado existe um discurso que profere que as “medicinas tradicionais” seriam os pilares da Naturologia, por outro, estas tradições medicas passaram a ser analisadas e refletidas, pelos naturólogos, a partir do tipo ideal racionalidade medica. Mas o que pude perceber, no decorrer da pesquisa de campo, é que eu não poderia nem compreender, nem tampouco descrever a forma com a qual os naturólogos estão assimilando e integrando estes diferentes saberes, sem antes dar atenção a uma visão de mundo que é bastante peculiar aos naturólogos e estudantes de Naturologia.

Dois dos professores mais antigos do curso de Naturologia da UNISUL, foram enfáticos em observar que o diferencial do profissional naturólogo não está nas “praticas naturais” que ele aprende em sala de aula, senão na abordagem diferenciada com o qual este profissional utiliza estas praticas. A esta abordagem diferenciada podemos chamar de visão naturológica. Observemos a fala de uma interlocutora que corrobora com isto:

Porque pra mim a questão da graduação em Naturologia, claro que habilita as pessoas para as varias praticas, ensina a pratica clinica, que são as praticas naturais. Só que é mais, é você formar um profissional que tá dentro da área da saúde e que raciocina diferente o processo de saúde e doença […] é um profissional que consiga dialogar as diversas perspectivas de saúde e doença, inclusive a perspectiva da própria pessoa que tá “doente”.

A fala desta naturóloga reflete a opinião de boa parte dos meus interlocutores de pesquisa. Neste sentido, o diferencial do profissional naturólogo não seriam as praticas ou saberes que articulam, mas a visão a partir do qual eles são articulados. Este fato, já parece contradizer o discurso que profere que os pilares da Naturologia seriam as “medicinas tradicionais”, uma vez que mesmo estas “medicinas tradicionais” são operadas a partir desta abordagem peculiar chamada de visão naturológica. Ao ser perguntado acerca de como realizava sua diagnose, um interlocutor de pesquisa me relatou:

Cara, mais com ayurveda. Mas, naturalmente, com a parte da anamnese naturológica, mas…na verdade Naturologia ayurvédica, eu diria assim. Porque não tem como, depois que você virou naturólogo, não tem como voce não ter uma visão naturológica também […]

Como podemos perceber, este naturólogo esta afirmando que a própria forma como ele utiliza a medicina ayurvédica é influenciada pela visão naturológica. O naturólogo não utiliza a medicina ayurvédica como um medico ayurveda o faz, ele a utiliza a partir de sua forma particular de abordagem. O que estou querendo apontar, é que as medicinas tradicionais não são pilares da Naturologia, primeiro porque pilares são estáticos, homogêneos e monolíticos, já as tradições medicas em pauta são construções dinâmicas, heterogêneas e plurais. Segundo porque, como vimos na declaração acima, estas próprias tradições medicas são operadas a partir da visão naturológica. Como elas poderiam ser pilares daquilo que as articulam? A própria analogia da Naturologia enquanto um conhecimento edificado em pilares, ao meu ver, deve ser repensada. A forma como as praticas e saberes são articulados pelos naturólogos é muito mais dinâmica e dialógica do que um edifício.

Como já salientei, não seria possível uma compreensão clara acerca da forma com a qual os naturólogos vêm assimilando os diversos saberes que abordam, sem antes compreender como se configura essa visão naturológica. A partir dos relatos dos meus interlocutores, elegi quatro categorias êmicas que parecem informar a visão peculiar destes profissionais e que, portanto, devem ser observadas e analisadas, exaustivamente, por pesquisadores e naturólogos. Estas categorias são: natureza, abordagem integral do ser, relação de interagência e educação em saúde. Em minha etnografia apresento, com maiores detalhes, a visão dos naturólogos acerca destas noções e mostro como elas estão intrinsecamente imbricadas na construção da visão naturológica. Entretanto, para este breve texto, vale ressaltar que os saberes e praticas das tradições medicas utilizadas pelos naturólogos, sejam elas ocidentais ou não ocidentais, são articulados a partir destas noções que constituem a visão naturológica. E é a partir desta forma peculiar de visão que a Naturologia deve ser definida.

Portanto, a própria visão naturológica é construída a partir do dialogo entre estes saberes todos que aborda, embora não se limite a nenhum deles. Estes saberes diversos são a “matéria prima” da visão naturológica, na mesma medida que a visão naturológica é o fio condutor do dialogo entre estes saberes. É a partir deste dialogo entre saberes (que a própria visão naturológica ajuda a conduzir), que esta forma de visão peculiar está sendo criada e recriada, como um caleidoscópio a partir do qual a espontaneidade da organização e reorganização dos elementos, e suas refrações, fazem emergir a beleza do inesperado, do indefinido, mas nem por isso caótico, essencialmente comunicativo.

REFERENCIAS

COSTA, J. H. 2011. Max Weber e a Objetividade do Conhecimento nas Ciências da Cultura: um breve guia para o texto A ‘Objetividade’ do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In: Revista Espaço Acadêmico. Nº120

MENÉNDEZ, Eduardo 2003. Modelos de Atención de los Padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. In Ciência & Saúde Coletiva. Vol 8 (1):185–208

LUZ, M. T. e BARROS F. N. 2012. Racionalidades Medicas e Praticas Integrativas em Saúde: Estudos Teóricos e Empíricos. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/LAPPIS

ROCHA e ECKERT. 2008. Etnografia: Saberes e Praticas. In: PINTO. C. R. J. e GUAZZELLI C. A. B. 2008. Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade.

UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA. 2003. Projeto Pedagogico do Curso de Naturologia Aplicada. Tubarao: UNISUL.

WEBER, Max; COHN, Gabriel. 1997. Max Weber : sociologia. 6. ed. São Paulo (SP): Atica.

COPI, Irving M. 1981. Introdução a logica. 3. ed. São Paulo (SP): Mestre Jou.

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