Ideias De Uma Filosofia Renegada: Gabriel Tarde, Bruno Latour E Algumas Contribuições A Construção Da Naturologia (Leite-Mor, 2012)

Lucas G
Fórum Conceitual de Naturologia
16 min readJun 3, 2021

Paper publicado nos anais do congresso de naturologia de 2012.
Por Ana Claudia M B Leite-Mor Mestranda em Saúde Coletiva — UNICAMP

O presente ensaio tem mais o caráter de uma apresentação de ideias do que o objetivo de constituir uma argumentação com um fim conclusivo. Tal formato pode ser justificado por conceitos e ponderações dos autores em questão, Gabriel Tarde e Bruno Latour, como o será ao longo do texto. Se, ao fim deste ensaio, houver um entendimento ou vislumbre lógico das razões desta organização textual, posso considerá-lo bem sucedido. De antemão, vou apresentar como justificativa, uma questão fundamental da perspectiva de Tarde:

“a proposta de uma teoria social que coloca em suspensão (e suspeição) a antinomia entre o continuo uniforme e o descontínuo pontual ou, mais precisamente, que pense as entidades finitas como casos particulares de processos infinitos, as situações estáticas como bloqueios de movimento, os estado permanentes como agenciamentos transitórios de processos de devir (e não o contrário)” (Milet, 1970, apud Vargas, 2007).

Assumo esta proposição, e suas implicações, como base. Nada do que está aqui está pronto ou fechado. Tudo está em constante movimento, constante (re) construção, constante variação. Qualquer assertiva (fechamento conceitual) é válida, porém, transitória, visto que ela e o próprio mundo ao qual aludia, está em constante transformação. Não se trata de produzir uma tese, que ao concluída apresentaria uma verdade argumentada e validada, mas de assumir o próprio processo reflexivo como o constante fazer-se e refazer-se, na associação de ideias e experiências.

Estas reflexões não pertencem a mim, a Gabriel Tarde, Bruno Latour ou a qualquer outro que venha a discutir conosco. Existem a partir de que nos relacionamos e é isto, justamente, o que nos propõe Tarde e Latour, uma ontologia e uma epistemologia eminentemente relacionais (Latour, 2012; Tarde 2007).

Antes de dar continuidade a esta apresentação de ideias, apresento-vos, formalmente, os interlocutores:

Jean-Gabriel de Tarde: nascido na França (1843–1904). Gabriel Tarde obteve bacharelado em Letras, Ciências e Direito. Sofreu crises oftalmológicas que o obrigaram a viver longos períodos em locais escuros. Nesta faze escreveu poemas, fez longos percursos pedestres e obteve as suas primeiras instruções em filosofia.

Começou a sua trajetória de pesquisador na área de Criminologia, mas também publica nas áreas de Sociologia, Economia, Psicologia Social e Filosofia. Foi diretor da sessão de estatística criminal do Ministério de Justiça em Paris e, a partir de 1896, regente de disciplinas na École Libre de Sciences Politiques, Collège Libre des Sciences Sociales e Collège de France.

Bruno Latour: nasceu na França em 1947. Formou-se inicialmente em Filosofia, para depois tornar-se antropólogo. Leciona hoje no Centre de Sociologie de l’Innovation, na Ecole nationale supérieure des mines, em Paris, além de ser professor visitante na London School of Economics e no History of Science Department of Harvard University. É vice-presidente de pesquisa na instituição Sciences Po Paris.

Ao longo de sua trajetória acadêmica Bruno Latour se dedicou aos science studies (estudos da ciência), tendo construido uma consistente crítica epistemológica, sociológica e política as questões da produção do conhecimento e de suas repercussões nas demais esferas da vida social.

Ana Cláudia Mor: Nascida no Brasil em 1987. Bacharel em Naturologia. Mestranda em Saúde Coletiva na linha de Ciências Sociais em Saúde na UNICAMP. Dedica seus estudos a epistemologia, ciência política e antropologia; principalmente as vertentes da “linhagem filosófica” dos estudiosos apresentados.

Ana Claudia não conheceu Bruno Latour na academia, nas suas aulas de ciências sociais. Ela o conheceu por acaso. Emprestou de um amigo um livro, de cujo o título a havia chamado atenção¹. Ana enamorou-se de Latour e o carrega deste então, aonde vai. Bruno Latour apresentou a Ana, Gabriel Tarde, e foi, também, amor à primeira leitura. Estes “apaixonamentos” não se deram de forma arbitrária ou por mera identificação, mas por motivos objetivos. As suas perspectivas lançam luzes sobre um problema epistemológico fundamental que atormentava a naturóloga Ana: não é possível classificar o processo de saúde/doença como natural ou social. Não é possível classificar a existência humana como natural ou social! Como então estudá- la? Ela é os dois, sem que possamos determinar onde começa um e termina o outro. Por isso mesmo, poderíamos dizer também que a existência humana é nenhum dos dois pois, ambos estes campos ontológicos puros, natural e humano, são epistemologicamente contraditórios. Esta contradição gera um problema prático: Onde, então, situar a Naturologia academicamente? A Naturologia, já que pretende não recortar de antemão o fenômeno saúde/doença, é ciência natural ou ciência humana? A Medicina Tradicional Chinesa é natural ou humana? Em qual edifício ontológico e epistemológico vamos enquadrá-la?

¹ (O ensaio mais conhecido de Latour: Jamais Fomos Modernos (1994))

Tentamos lidar com as existências a partir destes edifícios ontológicos. Já levamos tudo para o social e caímos num relativismo sem solução. Já recolocamos o homem dentro da natureza, a mesma descrita em caracteres matemáticos, e não sabemos o que fazer hoje diante os cada vez mais numerosos situados nas margens de erro. Expandir a natureza ao extremo, à complexidade, e continuamos patinando nos problemas práticos, acusados de metafísicos. Assumimos que a cisão entre social e natural não mais resolve os nossos problemas e, diante a contradição, juntamo-nos todos em equipes e departamentos multi/inter/transdisciplinares. Nos demos conta, estupefados, de que não conseguimos nos fazer entender (Latour, 1994).

Desta contradição, os naturólogos são um belo exemplo. Sob o crivo de interdisciplinares, aprendem simultaneamente psicoterapia e fisiologia; morfoanatomia, histologia e medicinas vitalistas; sociologia, filosofia do Tao e técnicas de anamnese. Impressionante é que, quando atendem, misturam todas essas coisas em um mesmo espaço. Impressionante é que somos capazes de raciocinar todas essas coisas juntas, misturamos tudo e, o pior, quando explicamos nosso entendimento aos nossos pares, ou aos nossos interagentes, eles compreendem e, muitas vezes, concordam. Se nossos interagentes nos entendem, é porque dizemos respeito a sua experiência, e a experiência não é psíquica ou fisiológica, humana ou natural, mecânica ou energética; ela é tudo e anterior a qualquer possibilidade de interpretação ou enquadramento. Surge então a questão: porque separamos a experiência nestes tantos compartimentos classificados como ciência natural ou ciência humana? Bom, é disso que trata a história contada pelos nossos ícones.

Segundo Bruno Latour (1994) o que funda o mundo moderno é a cisão entre Natureza² e sociedade e, o que o mantém, é o conjunto de uma dupla de práticas, as práticas de mediação e as práticas de purificação.

² (Os termos grafados em itálico correspondem a conceitos de Latour ou de Tarde. Não é possível neste ensaio, devido ao número restrito de páginas, explorá-los. Para uma compreensão mais exata das reflexões sugere-se consultar o glossário presente ao fim do livro Políticas da Natureza (2004).)

Para elucidar a cisão ontológica que funda a modernidade Latour convoca uma disputa exemplar, datada do sec. XVII, entre Robert Boyle, criador do laboratório e do fato científico, e Thomas Hobbes, cientista político autor da noção de contrato social e precursor de diversas linhas de ciência política atuais. Estes dois pensadores discutiram o que é a realidade, o que é a Natureza e o seu poder sobre os homens.

Discutiram o que é a sociedade, o que são os homens e seu poder sobre a Natureza. Ambos falaram de política, leis universais, matemática, interesse, natureza e social. Ambos fizeram filosofia, ciência política e ciência natural, no entanto, seus seguidores ao longo dos séculos que sucederam, operara uma ruptura (Latour, 1994). Boyle e seus descendentes, bem como Hobbes e seus descendestes terminam por inventar o nosso mundo moderno:

um mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social.(…) era preciso que desde então todos “vissem imagens duplicadas” e não fosse estabelecida uma relação direta entre a representação dos não-humanos e a dos humanos, entre o artifício dos fatos e a artificialidade do corpo político. (…) cabe a ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos cidadãos(humanos), mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e pela tecnologia.” (Latour, 1994, p. 33)

De um lado está o mundo factual, dos objetos, que responde estritamente a leis de causalidade, e por isso está para além (transcende) das decisões e interesses humanos. A Natureza é algo já posto, existente desde sempre, sem história. À este mundo, contrapõe-se ao mundo dos “homens-entre-eles”, regido pelos interesses, pelas disputas, pelo poder, pela subjetivação e pelo livre-arbitrio. Cria-se dois campos ontológicos separados que distinguem-se, um no outro, criando duas câmaras dentro das quais deve ser colocada, classificada, a realidade, a existência e os acontecimentos (Latour, 1994; Latour, 2004).

Hobbes e seus seguidores criaram os principais recursos de que dispomos para falar do poder — representação, soberano, contrato, propriedade, cidadãos — enquanto que Boyle e seus seguidores elaboraram um dos repertórios mais importantes para falar da natureza — experiência, fato, testemunho, pares. O que nós ainda não sabíamos é que se tratava de uma dupla invenção do repertório moderno. (Latour, 1994). Mais do que existirem separadamente, a criação simultânea destes dois campos ontológicos, aparentemente contraditórios, mostra como um dá suporte ao outro. “Jamais, desde as primeiras discussões dos Gregos sobre a excelência da vida pública, se falou de política sem natureza; ou além disso, jamais se fez apelo à natureza, senão para dar uma lição de política.” (Latour, 2004, p.58)

O que precisa ser observado é que as ponderações de Latour diferem-se um pouco das críticas pós-modernas. Latour coloca em questão a própria constituição da ontologia científica/acadêmica, não aceitando cisão e a disciplinarização como dada, mas abordando suas próprias bases constitucionais e históricas. Academicamente, nós continuamos formando profissionais enquadrados disciplinarmente. À posteriori, os estimulamos a constituir grupos interdisciplinares, colocando a guerra das ciências, e todas as suas contradições, dentro dos departamentos, com o objetivo de responder a um problema comum. Estou aqui, longe de criticar ou opor-me a constituição de grupos interdisciplinares. Muito pelo contrário, são esses grupos que explicitam o problema ontológico e epistemológico da ciência, e é exatamente, a partir deles que é preciso trabalhar. A maior produção da modernidade foram problemas comuns, que não podem ser enquadrados em uma ou outra ontologia, assim como diversos problemas de saúde. Esses problemas híbridos de natureza e cultura, obrigam-nos a dialogar, e à colocarmo-nos cientistas naturais, humanos e políticos, em uma mesma arena de debate³.

³ (Para Latour os grandes problemas ecológicos da atualidade são os melhores exemplos destas ontologias hibridas. Este assunto é amplamente discutido no livro Políticas da Natureza (2004))

E a Naturologia? Como fica em meio a esse problema disciplinar? Ora, a Naturologia é um monstro ontológico-epistemológico! Antes mesmo de formar seus profissionais disciplinarmente, antes mesmo de compeli-los a uma escolha partidária na guerra das ciências; a Naturologia quer, pobres naturólogos, que eles saibam tudo! Quer que eles operem na sua prática esses emaranhados de oposições e contradições. Quer que façam fisiologia e psicologia, medicina energética e patologia, anamnese e interagência.

Bem, agora uma possível solução:

Como disse, para Latour, a modernidade está fundada em uma cisão ontológica/epistemológica entre Natureza e sociedade, mas também opera no conjunto de duas práticas, as de mediação e as de purificação. A prática de purificação é esta que descrevemos até então, o procedimento de classificação dos acontecimentos, do mundo, nas duas câmaras ontológicas/epistemologicas. A prática de mediação consiste na mistura contínua, no nível do fazer, dos seres ontologizados naturais e humanos. A transposição feita por Latour, que o difere dos demais autores pós-modernos, é a de que: o movimento de mistura, a prática de mediação, sempre existiu. Não se trata de, a posteriori, juntarmos seres purificados como coisas ou humanos, para darmos conta de fenômenos complexos que, por algum motivo, misturam os entes das duas câmaras (que continuam lá postas). Trata-se de reconhecer que na prática nunca operamos a separação, nunca fizemos ciência sem política, bem como nunca fizemos política sem um apelo a Natureza (Latour, 2004). Na prática a purificação não ocorre, e esta é a razão pela qual nossos interagentes, imersos como estão na sua experiência de saúde/doença, são capazes de nos entender quando misturamos nas nossas explicações, números, dados, representações, coisas, desejos e sentimentos. Se os naturólogos conseguem misturar tudo no ato do fazer clinico, é porque na prática nós nunca operamos a separação.

O que Latour propõe, longe de ser uma ruptura epistemológica, uma revolução paradigmática, um avanço do pensamento humano e da ciência, é um passo “atrás”: vamos reconhecer que a modernidade, a purificação (cientificização) do humano e do mundo não passou de pretensão. Não precisamos nos juntar a posteriori, pois na realidade, nunca estivemos separados. Nunca fizemos ciência sem política (e vice- versa), nunca deixamos de misturar tudo, coisas e humanos. Sempre fomos híbridos de natureza e cultura, nunca abandonamos a matriz antropológica.

Podemos agora aprimorar a nossa questão: porque inventamos uma separação, uma purificação do mundo em duas câmaras, se o âmbito da existência, a ordem da prática, nunca deixou de misturar tudo no mesmo espaço? A resposta é motivo da palavra “renegada” no título deste ensaio.

Vamos ao nosso outro interlocutor, Gabriel Tarde, que já foi bem apresentado. No entanto, omiti um dado de suma importância. Tarde foi contemporâneo e maior interlocutor de Émile Durkheim, renomado pai da sociologia. Assim como Boyle e Hobbes, ambos discutiram filosofia, metafísica, psicologia, sociologia, ciências, biologia e uma determinada noção de natureza. No entanto, o desfecho histórico desta história eliminou Gabriel Tarde da disciplina de sociologia. Tive inúmeras aulas sobre Durkheim e sequer uma citação de Tarde. Homogeneizamos historicamente as origens uma disciplina as custas da negação e do consequente esquecimento de um de seus precursores. Apagamos a diversidade de pensamento por motivos políticos, autoritários, que já foram abordados por alguns que vêm resgatando a filosofia de Tarde (Ribeiro, 2001).

O que disse, então, essa filosofia renegada de Gabriel Tarde, que vem sendo contemporaneamente resgatada por Bruno Latour?

Tarde parte de uma hipótese fundamental: existir é diferir. Funda essa hipótese no que ele chamou de uma Monadologia Renovada. Esta opera no elemento da diferença universal, a diferença diferente. Convoca da metafísica de Leibniz a noção de mônadas: partículas elementares que são diferenciadas (dotadas de qualidades que as singularizam) e diferenciantes (animadas por uma potência imanente de mudança contínua) (Tarde, 2007). Dizem respeito ao infinitesimal, ao infinitamente pequeno, que constitui toda a diferença. Pela monadologia, o universal só pode ser alcançado pela mediação do elemental. É assim, para todas as ciências que tiveram de resolver unidades aparentes em miríades de agentes infinitesimais, por exemplo, a ruptura do átomo em turbilhões subatômicos ou o rompimento da unidade orgânica em um número prodigioso de células (Tarde, 2007).

De Leibniz, Tarde apropria-se da noção de mônadas, mas refuta a noção de harmonia e em consequência a hipótese de Deus. Para o nosso sociólogo não há nada que obrigue as mônadas a parar! Cada uma delas é sempre composta, um universo em si, composta até o infinitesimal. Está aí a renovação. Abandonada a ideia de um direcionamento preestabelecido, as

“mônadas abertas por Tarde (…) são esferas de ação singularizadas em um ponto qualquer, que não tem outra essência, senão as atividades que exercem umas sobre as outras. Cada mônada está inteiramente onde age. A mônada, como o átomo, é um meio universal ou algo que aspira sê-lo, um universo para si, não apenas um microcosmo, mas o cosmo inteiro conquistado e absorvido por um único ser.” (Vargas, 2007, p.14/15)

O que Tarde propõe é substituir o grande pelo pequeno, as totalidades e as unidades pelas multidões, uma infinidade de mônadas abertas, cada qual contendo em si todas as outras pois: se a ação é a essência da mônada, é porque toda mônada já é multidão (Vargas, 2007).

Eis então a monadologia renovada: monismo = miriateísmo. Não há um Deus absoluto, uma ordem transcendente; mas uma miríade, uma multidão de deuses.

Essa ontologia da ação resulta em uma noção de realidade: o real é apenas um caso do possível. O que existe no real são emergências produzidas pelos encontros fortuitos de inumeráveis séries repetitivas de mônadas. Somos nascidos de um encontro que nos fez diferentes de todo o resto do Universo, vamos nos esbarrando e nos alterando até a morte; e tudo isso é justamente chamado fortuito, acidental, “pois os seres que assim se cruzam não se buscavam, mas nem por isso seu cruzamento foi menos necessário e fatal” (Tarde apud Vargas, p.26). Não se trata de determinismo, nem de voluntarismo. Nada obriga as mônadas a parar. O real é um dispêndio de possível! Um excesso da potência sobre o ato!

Tarde quebra o abismo ontológico das ciências com um monismo levado ao extremo: “matéria é espírito, nada mais, então, espírito é matéria, nada menos” (Tarde apud Vargas, 2007). Latour observou que esta solução monadológica é saudável: não é possível dizer que as coisas existem em si mesmas. Se podemos dizer algo sobre elas é porque compartilhamos com elas mais do que costumam imaginar nossas filosofias e ciências. “Todo o universo exterior é composto de almas outras que a minha, mas no fundo semelhantes a minha.” (Tarde, 2007, p.65)

Tarde refutou as hipóteses do Homem e da Natureza. Logo, em Tarde a palavra social não define um domínio específico da realidade, ou uma zona ontológica particular reservada aos humanos, mas designa toda e qualquer modalidade de associação; de forma que, em vez de substancia, social é sempre relação, logo, diferença.

Tarde quebra o antropocentrismo. O poder, a vontade e o livre arbítrio não são restritos a um campo ontológico humano, mas, há sujeitos, pequenos deuses, por toda parte. Células tem vontade e crença, átomos tem vontade e crença.

“O antropocentrismo, em seu esforço secular para interpretar mecanicamente tudo o que está fora de nós, mesmo o que mais brilha em traços de gênio acumulados, as obras vivas(!); nosso espírito sopra, de certo modo, apagando todas as luzes do mundo em benefício de uma solitária fagulha. E se somos incapazes de perceber por toda parte almas outras que a minha, mas no fundo semelhantes a minha é por conta desse preconceito antropocêntrico que nos faz crer sermos seres superiores.” (Tarde, 2004, p.74)

O monismo monista de Tarde (quer dizer a rejeição do dualismo ontológico) tem derivações para as ciências e para as formas do conhecer. Por exemplo, coloca em questão a primazia dos acontecimentos passados, em detrimento dos acontecimentos futuros, quanto a sua capacidade explicativa das realidades. (Física quântica? Não exatamente, é sociologia do sec. XIX). Coloca em questão a busca pelo termo absoluto, pelas ideias superiores, as leis (e etc.) se a todo momento vemos proliferar heterogeneidades novas e mais radicais que nenhuma dessas ideias e leis são capazes de explicar. Tarde questiona as abordagens tipológicas das ciências (tanto humanas como naturais) pois: “os tipos são apensas freios, as leis são apenas diques opostos em vão ao transbordamento de diferenças revolucionárias, intestinais, nas quais se elaboram em segredo as leis e os ‘tipos’ de amanha.” (Tarde, 2007, p.106). A única lei é a de que a variação não varia, pois segue variando. Logo a identidade é apenas um mínimo, uma espécie infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é apenas um caso do movimento e o círculo uma variedade singular da elipse. Logo, diferenças é o que todos nós temos em comum. Diferença é o que nos salva do abismo.

Eis então, a mudança radical para os processos de conhecer: em vez de buscar a essência identitária dos entes, cabe defini-los por suas propriedades diferenciais, suas zonas de potência. (Vargas, 2007). Não pensemos nossos

interagentes pelo que eles são, o ser é sempre transitório. Ninguém é diabético, ninguém é doente crônico, ninguém é chicory. Todo estancamento, todo diagnóstico, é só um caso, de um longo processo de movimento. Não pensemos nossos interagentes pelo que eles são, pensemos pelo que eles podem! Pense seu interagente pelo que ele é capaz, pois ele mesmo (ou aquilo que neles seria a sua essência) está inteiramente onde ele age. Pensemos pela multidão de pequenos deuses que se fazem e refazem a todo momento.

É a proposta de uma teoria social que coloca em suspensão (e suspeição) a antinomia entre o continuo uniforme e o descontínuo pontual ou, mais precisamente, que pense as entidades finitas como casos particulares de processos infinitos, as situações estáticas como bloqueios de movimento, os estado permanentes como agenciamentos transitórios de processos de devir (e não o contrário). (Milet, 1970, apud Vargas, 2007).

E o que explica que as mônadas andem juntas? É que, “entregues a si mesmas nada podem”. Se as mônadas são meios universais é porque não há agência, ação, sem outrem, não há existência fora da relação e não há relação sem diferença (Vargas, 2007).

Gabriel Tarde, quando desfaz a ontologia do ser, da identidade, por uma ontologia da diferença, da relação; expande as possibilidades de composição de outros, novos, mundos.

Pergunto: Existe semelhança entre esta ontologia renegada e a filosofia de nossas medicinas energéticas? Existe diferença ontológica, para a Medicina Tradicional Chinesa, em se falar do processo de aprendizagem, supostamente psíquico; e do ato digestivo, supostamente biológico? Não. As medicinas que chamamos tradicionais, não-modernas, não operaram a cisão ontológica, não operaram a purificação.

Podemos, então, voltar a questão prática inicial: Onde situar a Naturologia academicamente? Ela é ciência natural ou ciência humana? Se levarmos a sério nossos interlocutores e assumirmos um não-dualismo ontológico como base, vamos reconhecer: não precisamos escolher entre um e outro. Não precisamos classificá-la. Já ela é ambos e nenhum dos dois simultaneamente. Parece contraditório? Pois é, a bela contradição que reproduzimos se continuarmos pensando como modernos, um mundo em duas câmaras. O que Tarde e o que Latour propõe é que não pensemos em duas câmaras ontológicas pois, sempre operamos em uma única câmara, um mesmo mundo comum. Se pensarmos por uma única câmara ontológica, os nossos problemas comuns, mistos de natureza e cultura, monstrinhos ontológicos diante os quais não sabemos o que fazer, ganham sua legitimidade de existência. Bem, para os naturólogos, isso não é difícil de ser realizado. Já o fazemos a todo momento, durante a nossa formação.

Atualmente nos vemos resgatando, tanto essas filosofias ocidentais que questionam as ordens transcendentes, os abismos ontológicos e a disciplinarização; quanto as filosofias orientais, que nem mesmo os criaram. Isso não é fortuito. O que estas ontologias, epistemologias e metodologias não-dualistas pode criar? Nós conhecemos bem o mundo que o abismo ontológico da modernidade criou. Que mundo podemos criar a partir de uma ontologia da ação? Que política seríamos capazes de fazer? Que ciência seríamos capazes de fazer? Nesse tempo pós- moderno não é mais possível fazer ciência fingindo não fazer política. Não é possível fazer política fingindo não afetar a tal Natureza(transcendente). Qual ciência-política a Naturologia quer fazer? Qual política-ciência a Naturologia quer fazer? Qual a potência destas ideias? “Ainda é possível liberar a política ontológica da polícia epistemológica e das guerras santas das ciências e voltar a experimentar outras metafísicas, aliás, como nunca deixamos de fazer” (Vargas, 2007, p.29)

Já que “entregue a nós mesmos nada podemos”, só me resta, desejar que a potência deste nosso encontro(fortuito), produza uma realidade pela qual valha a pena lutar e que contribua para o nosso mundo comum.

REFERÊNCIAS

Latour, Bruno. Jamais Fomos Modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Bauro, SP: Edusc, 2004.

. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador: Edufba, 2012; Bauru, SP: Edusc, 2012.

Ribeiro, Maria Thereza Rosa. Antes Tarde do que nunca. Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rev. Antropol. 2001, vol.44, n.1, pp. 325–330.

Tarde, Gabriel. Monadologia e Sociologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Vargas, Eduardo Viana. Gabriel Tarde e a diferença infinitesimal. In: Tarde, Gabriel. Monadologia e Sociologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.07–50.

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