Reflexões Acerca Da Naturologia, Trandisciplinaridade E As Racionalidades Medicas. (Portella, 2013)

Lucas G
Fórum Conceitual de Naturologia
6 min readJun 3, 2021

Paper publicado nos anais do congresso de naturologia de 2013.
Por Caio Fábio Schlechta Portella, Naturólogo, mestrando em Saúde pública, FSP/USP.
Este texto é parte do artigo “Naturologia, transdisciplinaridade e transracionalidade”, a ser publicado na Revista Cadernos de Naturologia e Terapias Complementares 2013/2.

Introdução

A grande especialização que se estabelece na área da saúde é fruto de uma cosmologia cartesiana e materialista onde não há espaço para o Doente, somente para a Doença. Desta crise surge a naturologia, profissão da área da saúde que busca o cuidado integral ao ser humano. A naturologia insere sua contribuição revendo as bases conceituais, inserindo elementos como o resgate de técnicas tradicionais e a construção de um pensamento que possibilite uma atuação diferenciada em saúde.

Este artigo visa explorar conceitos emergentes relacionado à transdisciplinaridade e ao diálogo entre racionalidades médicas especialmente no contexto do naturólogo e seu papel de atuação dentro de uma equipe de saúde transdisciplinar.

A trans-racionalidade e a naturologia

Não há referencias na literatura para o termo trans-racionalidade no contexto que é discutido neste artigo, porém é pertinente pensar neste termo como um corpo teórico que surge a partir das religações fruto da transdisciplinaridade.

Um exemplo pratico deste corpo teórico se fez em um curso(2) oferecido pela UNIFESP em parceria com a UMAPAZ — Universidade Livre do Meio Ambiente e Cultura de Paz, no ano de 2012: “Plantas Medicinais sob o olhar integrativo de racionalidades medicas”.

Pude participar do curso juntamente com outros naturólogos e muitos profissionais médicos, enfermeiros, farmacêuticos, profissionais da Medicina Tradicional Chinesa, Medicina Ayurvédica, biólogos, engenheiros agrônomos entre outros. A proposta era de dialogar e integrar a visão de quatro racionalidades diferentes: Antroposofia, Ayurveda, Medicina Tradicional Chinesa e Fitoterapia Racional (baseada no paradigma biomédico), no contexto de algumas plantas medicinais utilizadas sob a perspectiva destas 4 racionalidades.

Relativo à planta “espinheira santa” cientificamente chamada de Maytenus ilicifolia, cito abaixo um trecho do subproduto teórico do diálogo entre racionalidades, este documentado em 12 monografias a serem publicadas posteriormente em um livro.

O ponto de vista da medicina antroposófica é coerente com as constatações da fitoterapia convencional: a Maytenus com sua constituição química indica que é capaz de harmonizar a organização do EU, os processos calóricos o processo de luz e tônus do corpo astral dentro dos processos de quimismo vital digestivo — metabólico e, certamente, sobre o anabolismo renal e gônadas.
Na medicina tradicional chinesa, a associação deste processo é principalmente com o fígado, que está associado diretamente ao equilíbrio emocional. (…) por ser de penetração, principalmente no meridiano do Fígado ajuda a recuperar a calma e o controle, certamente relacionados à organização do eu que a antroposofia relata.
Já no ayurveda pela sua energia quente e seu sabor pungente atua diretamente nos processos calóricos e metabolismo (…) a temperatura neutra, o que significa que esta não causa nem “frio” nem “calor”, portanto de ação branda, no organismo, se confirma nos resultados dos ensaios de toxicidade que demonstraram que a Maytenus tem excelente tolerância terapêutica e toxicidade muito baixa. (p.16)

Nesta monografia, a partir destas relações estabelecidas conclui-se:

Analisando o produto das racionalidades médicas vitalistas (Ayurveda, MTC e Antroposofia), o elemento de ligação principal é uma ação reguladora e com interface sobre ação do emocional no corpo físico, poderíamos dizer organização do eu, harmonização do yin e yang, regulando o meridiano do fígado, atuar no equilíbrio dos 3 doshas. Nas três a planta mostra-se com características amplas e reguladoras, o que dá um amplo espectro de ação em tipos diferentes de desequilíbrios, no caso da Maytenus relacionados ao sistema digestivo, principalmente a gastrite, relação também unânime entre as 4 racionalidades. (p.16)

Ressalta-se que estas relações só puderam ser propriamente estabelecidas por meio de uma metodologia de observação fenomenológica da planta, portanto estabelecida com rigor metodológico e ao mesmo tempo com grande proximidade e intimidade entre os pesquisadores e a planta estudada(1). Neste sentido a relação de interagência possibilitaria esta ferramenta a qual concilia o diálogo entre conhecimento tradicional e científico.

No estudo que da Silva(3) realizou sobre a naturologia e a transdisciplinaridade, esta terminou o trabalho defendendo a ideia de que a naturologia é mestiça, sem fronteiras rígidas, fruto da mudança de paradigmas, esta que tem um papel importante na religação dos saberes e nas mudanças necessárias no atual modelo de saúde.

A autora levanta a questão da naturologia fazer dialogar conhecimentos tradicionais/populares e científicos ressaltando que “o diálogo entre estas duas formas de pensar reduz o grau de distanciamento da ciência em relação ao fenômeno (…) permite compreender a complexidade dos fenômenos e religar sujeito e objeto”(p.75)(3).

A naturologia com suas religações caminha em direção a um corpo teórico que se forma, um conhecimento fruto da transdisciplinaridade e que vem se desenvolvendo de maneira semelhante com o exemplo supracitado.

Enquanto a transdisciplinaridade trata de diálogos entre disciplinas, estas situadas ou não dentro de uma mesma racionalidade, surge na naturologia a necessidade de criar pontes e elementos de ligação, que possibilitem de forma mais profunda o diálogo entre as racionalidades, uma trans-racionalidade se faz fruto para estabelecer conciliação e coerência entre as abordagens e a atuação do naturólogos.

Desta religação sujeito-objeto colocados sob o rigor metodológico transdisciplinar vem a possibilidade do surgimento de um corpo teórico. Este não deve ser enxergado como algo estático e definitivo, já que se toma como base a complexidade e a dissolução de fronteiras do conhecimento, porém que se faz, se refaz e se desenvolve ao longo do tempo, conforme o amadurecimento destas religações complexas.

Podemos perceber a formação deste corpo teórico e desse “pano de fundo” que dá coerência à pratica naturologica surgir em alguns trabalhos do curso.

Entra em consenso com a Medicina Tradicional Chinesa quando esta diz que os elementos Terra (Baço Pâncreas e Estômago) e Metal (Pulmão e Intestino Grosso) são a energia pós-celestial, ou seja, aquela necessária para a manutenção da vida após o nascimento. Da mesma forma, se harmoniza com a Medicina Ayurvédica, que considera o “estômago”, órgão responsável pela alimentação, o centro do corpo humano. O estômago é comparado ao Sol, e todos outros órgãos do sistema digestório, aos planetas; de forma que todos os planetas girem ao redor do Sol no sistema solar. Até com a Antroposofia a neuroimunomodulação entra em consonância, integrando os sistemas da mesma forma que fez Rudolf Steiner através da trimembração do ser. (p.79)(4)

Estas investigações multidimensionais e suas inter-relações cada vez mais são alvo do olhar, do processo terapêutico e da produção de conhecimento em naturologia.

Considerações Finais

Este artigo levanta questões fundamentais dentro das bases teóricas do novo paradigma em saúde, em especial discutindo a relação da naturologia com a pratica da transdisciplinaridade. Estudos mais profundos são necessários neste campo do saber, principalmente em relação à conceituação e produção deste conhecimento trans-racional, brevemente abordado este artigo. Desta forma questões aqui levantadas devem ser melhor exploradas em estudos futuros para que o conhecimento transdisciplinar avance.

A dialogia existente entre as técnicas que o naturólogo utiliza, para poder interagir com, por exemplo, o conhecimento biomédico, deve ser olhada a uma maneira complexa e que respeite a práxis de cada área e seu papel dentro desta estrutura de um pensamento transdisciplinar. Para tal se faz necessária a utilização de elementos organizadores e abrangentes como por exemplo o modelo quântico de homem.

Assim, fruto desta cosmologia e do ideal transdisciplinar, a naturologia se diferencia de outras profissões da área da saúde principalmente por usar de um olhar integrativo sobre racionalidades distintas já durante sua formação.

Este fenômeno e o produto emergente destas inter-relações feitas entre racionalidades faz e refaz a cosmologia na qual se embasa a própria naturologia, sendo a base portanto o próprio conhecimento trans-racional.

Para o naturólogo estes elementos fruto da aplicação pratica da transdisciplinaridade, são uma possibilidade de amadurecimento das bases conceituais da naturologia.

Para a saúde em geral a reflexão sobre a visão de ser humano e a contextualização da transdisciplinaridade, da adoção de um mesmo eixo para além das disciplinas em equipes de saúde, da possibilidade de uma trans- disciplina e uma trans-racionalidade, são sementes para um novo jardim que anseia por germinar e compor um novo paradigma emergente não só neste campo, mas que atue no resgate do ser humano e da integralidade em todos os âmbitos.

REFERÊNCIAS

GHELMAN R. Fenomenologia de Goethe aplicada. MIKLÓS, Andreas AW. 2001.

GHELMAN R. I Curso de plantas medicinais sob o olhar integrativo de racionalidades medicas. 2012.

DA SILVA AEM. Naturologia: um diálogo entre saberes. 2012:214.

DE SOUZA JP, Brentegani LM. A Visão Neuroimunomoduladora da Saúde Intestinal e Sua Importância Para o Naturólogo. 2013:124.

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