A realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real

Fabrine Bartz
Fabrine Bartz
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4 min readFeb 26, 2021

Uma crítica, desenvolvida por Guy Debord sobre o consumo, a sociedade e o capitalismo

O que deu origem ao espetáculo e o que seria esse fenômeno? Provavelmente, você já ouvir falar sobre a Sociedade do Espetáculo e não se deu conta, pois você também faz parte dela. Guy Debord, escritor marxista francês, que serviu como base teórica aos manifestações estudantis do Maio de 1968, define a “Sociedade do Espetáculo” em um compilado de 221 teses, organizadas em nove capítulos, que demonstram essa crítica ao consumo, a sociedade e o capitalismo. O compilado resultou no livro “A sociedade do espetáculo” (Contraponto, Terravista, 154, páginas, R$36,40, 1997).

Foto: Arquivo Pessoal

O autor, influenciado por Karl Max, Georg Wilhelm, Friedrich Hegel e outros nomes do marxismo, aponta que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (p.14). Desta forma, com a crítica da cultura do consumo saturada por imagens, vemos que o espetáculo vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa. As próprias manifestações de Maio de 68 (movimento que teve início na França onde foram realizados debates universitário, ocupações e protestos de rua) fazem parte deste espetáculo de imagens, assim como as eleições presidenciais do Brasil, em 2018.

Durante o período eleitoral do Brasil, criaram-se dois principais grupos: os que eram a favor do Partido dos Trabalhadores (PT) e os que eram contra. Diante disso, o país enfrentava um conflito onde, para muitos, pouco importava as verdadeiras propostas dos partidos, mas sim a onda de ódio que rodeava e rodeia o país. Outro exemplo claro, mas dessa vez de 19 anos atrás, trata-se do ataque terrorista ao World Trade Center, em 2001. Naquele ano, as relações pessoais já eram mediadas pela imagem e o mundo praticamente inteiro foi capaz de visualizar o ataque.

Em uma leitura densa, mas relativamente curta, Debord demonstra como a humanidade está rodeada pelo espetáculo, seja nas relações pessoais, no mercado de trabalho ou na visão de uma possível realidade. Para ele, o espetáculo é uma condição em que o ser humano se vê governado por algo que ele próprio criou, funcionando como uma inversão concreta da vida, “a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real” (p.16).

O livro com base teórica do marxismo apresenta também a influência do surrealismo, um movimento significativo para arte, mas que falhou no processo de transformar a realidade, pois a ideia de criar uma sociedade com base no subconsciente não se concretizou. Com o fenômeno das redes sociais, principalmente com o Instagram, é possível ver como o ser humano almeja essa falsa realidade. Ter um grande número de seguidores e compartilhar as imagens somente no ângulo que mais lhe favorece faz parte da vida de 69 milhões de usuários da rede, no Brasil, em 2020, conforme a plataforma de gerenciamento de mídias sociais, Hubspot.

A origem dessa Sociedade do Espetáculo deriva da perda da unidade do mundo, e relacionado com isso, a perda da história e da memória sobre os acontecimentos. Debord defende que o raciocínio sobre a história é o raciocínio sobre o poder. Com as lutas históricas como, por exemplo, o machismo e o racismo, vemos a fusão do conhecimento com a ação, que colocam cada um dos termos a garantia da verdade.

Logo, ao perder a consciência e o senso crítico sobre estas questões sociais o indivíduo se coloca como parte do espetáculo. As teses de Debord são defendidas e utilizadas como argumento crítico aos partidos socialistas e comunistas, da mesma forma que atuam como crítica a sociedade do consumo, em várias obras relacionadas com a comunicação. O filósofo e sociólogo Pierre Lévy, inclusive, utiliza esta ideologia em “A inteligência coletiva” (1994) ao dizer que “a mídia audiovisual do século XX participou do surgimento de uma sociedade do espetáculo que transformou as regras do jogo tanto da cidade como no mercado” (p.58).

Com o vasto repertório de significados e exemplos no qual o espetáculo está presente, é difícil identificar um único conceito para o espetáculo. Talvez essa resenha até pode facilitar a compreensão do termo e a ideologia, no entanto senti falta de algo mais específico, algo que definisse de forma mais exata o que é, de fato, a Sociedade do Espetáculo. Claro que realizando a leitura é possível escolher ou até mesmo criar, com base nos argumentos apresentados por Guy Debord, uma definição mais precisa. Mas, se alguém lhe perguntasse o que é, exatamente, o espetáculo e como ele surgiu, você saberia responder? Eu diria que a obra é praticamente um dicionário sobre a Sociedade do Espetáculo, que nele você encontra as respostas encadeadas, mas é preciso repensar sobre o que a ideologia representa historicamente e, principalmente, o que ela significa na atualidade.

O modelo da leitura, em formato de teses, facilita o processo de compreensão dos termos. A edição de 2003 traz também dois trabalhos posteriores (um de 1979, outro de 1988) que apresentam comentários do autor sobre a obra, dando ao leitor mais uma oportunidade de compreender o que foi dito no decorrer dos nove capítulos. “A Sociedade do Espetáculo” tornou-se uma obra cinematográfica, em 1973, e 50 anos depois lançamento do livro original, diversos autores refletem se a Sociedade do Espetáculo ainda é válida na contemporaneidade. De acordo com eles ainda há muito para refletir sobre os pensamentos debordianos e a obra “A Sociedade do Espetáculo: Debord, 50 anos depois” é capaz de mostrar isso.

Esta resenha também foi publicada no Editorial J, Laboratório de Jornalismo Convergente da Famecos.

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Fabrine Bartz
Fabrine Bartz

Jornalista. Produtora da BandNews Porto Alegre e pesquisadora da interseccionalidade nos novos formatos jornalísticos