A representação da mulher nos filmes brasileiros

Fabrine Bartz
Fabrine Bartz
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12 min readFeb 26, 2021

Com base na lista de filmes brasileiros com mais de cinco milhões de espectadores da Agência Nacional do Cinema (ANCINE), o seguinte ensaio analisa como a mídia retrata as mulheres. Além disso, há uma reflexão sobre os conceitos de mídia e a realidade brasileira.

Imagem: Divulgação | Instagram: Jornal.Studies

Ser mulher significa força. Desde o surgimento da humanidade, de acordo com a crença religiosa cristã, a mulher (Eva) surgiu a partir da costela do homem (Adão). Embora exista esta crença, a mulher era, e continua sendo, responsável por gerar vida. Desta forma, nos tempos mais remotos da humanidade a figura feminina era valorizada e admirada exatamente porque a sociedade não compreendia como acontecia o surgimento de uma nova vida. No entanto, com o desenvolvimento da vida em sociedade quem ganhou visibilidade e passou a ter poder de aquisição foram os homens. Vemos esse fenômeno acontecendo, de forma clara, através da mídia tradicional e independente.

A Indústria Cultural, analisada por Theodor Adorno e Horkheimer, coloca a imitação como algo de absoluto. Reduzido ao estilo, ela retrata a obediência à hierarquia social. Com isso, vemos como as novelas, filmes e séries brasileiras retratam a presença da mulher com base no papel desenvolvido por ela na sociedade. “A cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema, portanto, cada setor é coerente em si mesmo e todos um conjunto. A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular”.

Na segunda semana de setembro de 2020, chegou ao fim o julgamento do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a jovem Mariana Ferrer, de 23 anos, durante uma festa em 2018. Ele foi considerado inocente. De acordo com o promotor responsável pelo caso, não havia como Aranha saber, durante o ato sexual, que Mariana não estava em condições de consentir a relação. Surge então, o termo “estupro culposo”, que, na verdade, não existe. O resultado do julgamento revoltou grande parte da população, principalmente, as mulheres pelo fato de ser inadmissível que tratem um caso tão sério, como o estupro, de forma superficial. O vídeo produzido pelo The Intercept Brasil, que explica a injustiça, circulou nas redes sociais na semana do dia quatro de novembro e ajudou a subir a hashtag #justiçapormariferrer nas plataformas digitais.

O caso trouxe à mídia o debate sobre questões de gênero. Infelizmente, essas reflexões só repercutem quando uma tragédia acontece, pois a ideia de “notícia boa é notícia ruim” permanece impregnado na mídia, mas essa questão daria um ensaio próprio. Aqui, vamos analisar como casos de violência, estupro, descriminação e preconceito contra as mulheres são retratados nos filmes brasileiros. Como vimos no caso da Mariana, o que acontece com as mulheres da classe trabalhadora, em geral, tem sido uma preocupação menor por parte dos tribunais; como resultado, são consideravelmente poucos os homens brancos processados pela violência sexual que cometeram contra essas mulheres.

Na lista de filmes brasileiros com mais de cinco milhões de espectadores da Agência Nacional do Cinema (ANCINE), “Minha mãe é uma peça 3”, “A Dama do Lotação” e “Dois filhos de Francisco” estão entre os 15 filmes com maior bilheteria. Mas como as mulheres são retratadas nesses filmes? Elas aparecem em cargos de poder ou em situação de vulnerabilidade? Estes são apenas alguns aspectos que não só o emissor, mas o receptor da mensagem deveria analisar.

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A série de filmes “Minha mãe é uma peça” é dirigida por André Pellenz, protagonizada por Paulo Gustavo e escrita pelo próprio em parceria com Fill Braz. Nos filmes, Hermínia Amaral é uma dona de casa, divorciada do marido, que a trocou por uma mulher mais jovem. Dona Hermínia representa 1,1 milhão de famílias compostas por mães solteiras, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2015. Assim como a realidade dos brasileiros, o filme demonstra momentos de crise e de felicidade. No entanto, Dona Hermínia, apesar da personalidade forte, sempre passa a impressão de que ser dona de casa não é trabalho e a mulher está sempre descuidada, enquanto os outros membros da casa, geralmente homens, estão tranquilos, limpos e arrumados.

Em outras obras brasileiras, a realidade das donas de casa e empregadas domésticas são retratadas da mesma forma. “Que horas ela volta”, um drama escrito e dirigido por Anna Muylaert, trata de conflitos que acontecem com Val (Regina Casé), uma empregada doméstica, e seus patrões de classe média alta. O tema central refere-se a relação de mãe e filha entre Val e Jéssica, mas como plano de fundo há essa narrativa do cotidiano das empregadas domésticas do Brasil, que representam 5,7 milhões da população do país, sendo a maior categoria profissional para as mulheres, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e o IBGE.

Imagem: Divulgação

A Dama do Lotação ocupa o sétimo lugar da lista de filmes com mais de cinco milhões de elespectadores, apresentando o público de seis milhões e meio. O filme pertence ao gênero erótico e foi dirigido por Neville d’Almeida, em 1978. Baseado no conto homônimo de Nelson Rodrigues, novamente, temos mais um exemplo de caso de estupro. Solange, personagem principal, se casa com Carlos, que na noite de núpcias acaba a estuprando. No Brasil, de acordo com o Anuário de Segurança Pública, ocorre um caso de estupro a casa oito minutos. A 14ª edição do Anuário de Segurança Pública foi lançada sob o contexto de pandemia Covid-19 e mostra que mais uma vez a violência de gênero vem crescendo no país. O anuário é o resultado do compilado de dados recolhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, baseado em informações das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social dos Estados.

Imagem: Divulgação

Já o clássico “Dois filhos de Francisco” alcançou a bilheteria de cinco milhões e trezentos mil. Lançado em 2005, dirigido por Breno Silveira, o filme é baseado na vida e história da dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano. Porém, mais do que a carreira profissional dos dois, a obra mostra como era a família dos irmãos. O foco da história não é a mãe dos meninos, Helena Siqueira da Camargo (Dira Paes), mas através dela vemos como era a realidade das mulheres na época. Mais uma vez, dona de casa e com filhos para criar enquanto o homem da casa, Francisco José de Camargo, trabalhava para sustentar a casa. Segundo o Datafolha, 19% da população se declarou dona de casa em 1993. Na atualização da pesquisa, realizada em 2019, esse percentual caiu para 7%.

Para os críticos Theodor Adorno e Max Horkheimer, a democratização da cultura promovida pelos meios de comunicação é motivo de embuste, porque este processo tende a ser contido pela sua exploração com finalidades econômicas. Diante disto, vemos que a indústria cultural é capaz de persuadir e promover reflexões sobre a realidade, através do senso crítico. Porém, ao relacionar a indústria cultural com a realidade é interessante pensar nos efeitos e consequências que a midiatização promove na sociedade. Roger Silverstone (2002) compreende que os conceitos de “mediação” e “midiatização” são diferentes, porém complementares, atuando em diferentes esferas teóricas da comunicação. Já Hepp (2014) também diferencia os dois termos e argumenta que a mediação descreve características gerais de qualquer processo de comunicação de mídia, enquanto a midiatização é um termo que teoriza a mudança relacionada à mídia.

A mídia, por sua vez, promove a reflexão de temas que atingem a população. Às vezes o debate sobre determinado tema surge através das atitudes de alguns personagens. As novelas da Rede Globo, por exemplo, contribuem para que esses assuntos sejam abordados nas conversas. Na comunicação, chamamos esse efeito de Agenda Setting-teoria que enfatiza a dinâmica entre os comunicadores e suas audiências. Nesta teoria, atributo é um termo genérico, que engloba o amplo leque de propriedades e indicadores que caracterizam um objeto; e a estereotipa a construção da imagem que envolvem a saliência de atributos são instâncias de segunda dimensão do agendamento. A novela Salve Jorge, exibida entre outubro de 2012 e maio de 2013 pela Rede Globo, trouxe o tráfico de pessoas como tema. A protagonista Morena Santos Ribeiro (Nanda Costa) foi vítima do crime e levada para Turquia, Istambul e Capadócia sendo obrigada a trabalhar com prostituição. A história foi inspirada na vida de Ana Lúcia Furtado, empregada doméstica que sustentava três filhos quando, aos 24 anos, recebeu uma proposta para trabalhar como garçonete em Israel. Vítima do tráfico de mulheres, em 1998, somente em 2013 Ana contou a sua história para o G1, que serviu de inspiração para criação da novela. Além disso, Ana representa a triste história de quase 2 mil brasileiros vítimas do tráfico de pessoas nos últimos vinte anos. Os dados utilizados são do Ministério da Justiça.

O cinema e a televisão estão recheados de histórias semelhantes. Novelas, filmes e séries em que as mulheres estão sendo submetidas à violência, física e psicológica, além do preconceito da sociedade patriarcal. Repito, portanto, o enfoque deste ensaio: a mídia trata as mulheres com desigualdade ou a mídia transforma a realidade em um espetáculo evidenciando em grau e número a desigualdade social e racial do país? Segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 2019, o número de mulheres no Brasil é superior ao de homens. A população brasileira é composta por 48,2% de homens e 51,8% de mulheres. Seguindo na pesquisa sobre raça, 42,7% dos brasileiros se declararam como brancos, 46,8% como pardos, 9,4% como pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas. Mas, falar sobre questões raciais envolve mais do que somente um número. O Brasil é composto por uma diversidade étnica e cultural muito grande, por isso surgem os debates sobre cultura afro-brasileira, apropriação cultural, preconceito e racismo, pois não podemos apenas dizer que há diversidade no Brasil, sem conhecê-la e respeitá-la.

A mídia, portanto, passa essa realidade para os telespectadores. Como mencionamos nos exemplos, as personagens representam, de fato, personalidades reais que enfrentam tais preconceitos. Não seria, então, o caso de mudar a realidade? O sistema capitalista, machista e racista em que vivemos reflete nas obras cinematográficas e audiovisuais, muitas vezes, como crítica e a população encara como incentivo. Mas, vale lembrar que casos de assédio e violência contra mulher ocorrem dentro e fora das câmeras, principalmente nos filmes e novelas direcionados para o público adulto. Em 2017, o ator José Mayer foi acusado de assédio sexual por Susllem Meneguzzi Tonani, figurinista assistente da novela “A Lei do Amor”. Susllem publicou um relato no Blog #AgoraÉQueSãoElas, da Folha de S. Paulo, no qual mostrava as atrocidades que o ator dizia para ela. Porém, assim como acontece com diversas mulheres, Susllem não levou a denúncia adiante. A Globo pediu desculpas para Susllem e suspendeu Mayer das produções por tempo indeterminado. De acordo com a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado sob o contexto da pandemia Covid-19, os homicídios dolosos de mulheres e os feminicídios tiveram crescimento no primeiro semestre do ano quando comparado com o mesmo período do ano passado.

Com a pandemia, o número de registros de violência contra mulher caiu. O número de vítimas de feminicídio no primeiro semestre do ano foi de 648. Porém, isso não significa que as vítimas diminuíram, pelo contrário. A pandemia fez com que as vítimas ficassem mais tempo próximas ao agressor, já que o Fórum de Segurança Pública aponta que geralmente o agressor é familiar da vítima. Desta forma, o processo de fazer a denúncia ficou ainda mais complicado. O Instituto Maria da Penha, por sua vez, evidenciou a propaganda contra violência doméstica mostrando formas de denúncia como o Disque 180, por exemplo. Além disso, códigos de alerta foram criados. Durante a pandemia, a propaganda “Máscara Roxa” ganhou força. A ideia é que as mulheres vítimas de violência solicitem uma “Máscara Roxa”, como senha, nas farmácias parceiras da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho. Assim, uma equipe especializada pode dar amparo à vítima. A campanha foi organizada pelo Comitê Gaúcho Impulsor Eles por Elas / He for She, ligado à ONU Mulheres. Após a coleta de dados as informações serão repassadas para um número de WhatsApp disponibilizado pela Polícia Civil.

Com as mídias digitais, o processo de denúncia e mobilização por direitos iguais e humanitários vem ganhando mais notoriedade. Imagine como seriam as grandes mobilizações feministas da história como o movimento sufragista, por exemplo, se houvesse internet. A probabilidade de mais mulheres estarem envolvidas nessa luta seria maior, pois mais pessoas saberiam que determinada ação estaria acontecendo em determinado local. Sabemos desta reação, pois é exatamente o que está acontecendo no país com o caso da Mariana Ferrer. Da mesma forma, o Brasil realiza grandes mobilizações exigindo justiça pela vereadora Marielle Franco, assassinada pela polícia militar, em 2018. Com as eleições municipais de 2020, as mídias digitais realizaram uma grande força tarefa para eleger Monica Benício, viúva de Marielle, para vereadora do Rio de Janeiro. A ação significa a luta por justiça e representa a união das mulheres. A arquiteta Mônica Benício, 34, foi eleita no dia 15 de novembro sendo a 11ª vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro, com 22.999 votos.

Vemos, então, que hoje, a indústria cultural assumiu a herança civilizatória da democracia de pioneiros e empresários, que tampouco desenvolverá uma fineza de sentido para os desvios espirituais. Diante disso, ao analisar como a mídia retrata as mulheres é possível relacionar as características com diferentes linhas de raciocínio da comunicação. Katrine Tokarski Boaventura em sua pesquisa sobre recepção e estudos culturais compreende que os estudos de recepção se desenvolveram dentro e fora do saber comunicacional. Diferenciar audiência (quantidade) de público (conjunto de pessoas com características/ interesses comuns) faz parte do processo de expandir a informação. A preocupação com os efeitos da mensagem no público surgiram com os anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, limitados pelo uso persuasivo das palavras surge a Teoria Hipodérmica com base na manipulação.

Concluímos, portanto, que a mídia é responsável por desenvolver o repertório cultural do indivíduo. Na atualidade, o ser humano se vê diante das telas desde pequeno (como mencionei no ensaio sobre o impacto da teoria do entretenimento em meio à pandemia) seja através de animações infantis ou diante um vasto repertório sociocultural que é a internet. Assim, consequentemente, o indivíduo é influenciado pelo que a mídia repercute, sendo capaz de desenvolver, ou não, o senso crítico. A representatividade no ambiente televisivo é importante justamente por isso, para que as crianças, principalmente as mulheres, se vejam desde cedo em lugares de poder. Kamala Harris, vice-presidente dos Estados Unidos eleita nas eleições de 2020, traz essa representatividade ao ser a primeira mulher negra a ocupar o cargo. Assim como, Michele Obama inspirou diversas adolescentes a seguirem suas paixões, como relata ela própria em sua autobiografia intitulada “Minha história”. Surge a necessidade do Brasil tornar as mídias representativas incluindo ao invés de excluir a comunidade diferente do padrão imposto pela sociedade.

Imagem: Divulgação

Para que as novelas, filmes, livros e séries parem de menosprezar a presença feminina é preciso que a sociedade as inclua. É preciso, primeiro, colocá-la em cargos de poder dentro da sua empresa pública/privada para que ela possa aparecer nas novelas de tal maneira. É necessário empregá-la ao invés de demiti-la, auxiliá-la no lugar de abandoná-la. Não adianta a população criticar a mídia por transmitir violência doméstica se o homem desliga a televisão e violenta a esposa. Ressalto a importância de conhecer e entender a realidade brasileira, pois, infelizmente, o Brasil tem uma forte influência de idolatrar o exterior enquanto há exemplos de ensino, comunicação e entretenimento de produção nacional que exemplificam essas realidades. Deixo como sugestão o documentário original da Globo Play, Marielle. Erick Brêtas, diretor de Produtos e Serviços Digitais da Globo, em entrevista para revista Exame justificou a decisão da emissora em produzir o conteúdo da seguinte forma: “O inconformismo com a morte de Marielle não é de esquerda ou de direita. Opõe civilização e barbárie. E estamos do lado da civilização. Por isso, resolvemos jogar luz sobre o caso”. No crime, o motorista Anderson Gomes também foi morto. Ele também ganha destaque na série.

O ensaio em PDF com as referências está disponível aqui!

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Fabrine Bartz
Fabrine Bartz

Jornalista. Produtora da BandNews Porto Alegre e pesquisadora da interseccionalidade nos novos formatos jornalísticos