Donas de qualquer parada

Fabrine Bartz
Fabrine Bartz
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7 min readFeb 27, 2023

Como o samba se tornou instrumento de resistência na luta pela igualdade de raça e gênero

Aline Dos Santos e Eliana Ribeiro ingressaram no Samba Delas já na nova confiração do grupo, em 2014

O copo de água permaneceu pela metade durante quase duas horas, era pouco tempo para contar praticamente dez anos de batucada e incluir paradas. Três das quatro integrantes da atual configuração do “Samba Delas” já se organizavam no camarim, antes das 19h30, naquela quarta-feira, no meio de setembro. Na voz de Eliana Ribeiro de Freitas, Nyaunu Wi Senna de Souza, Aline Mares dos Santos e Thayná Lima Fagundes, a Nega, — que chegou mais tarde — , a roda de samba surgiu com um objetivo: mostrar que mulher também pode!

Embora o show no Barcelos Bar, na Zona Sul de Porto Alegre, estava previsto oficialmente para às 22h, a ideia de inserir um grupo de mulheres no gênero musical não começou naquele porão. Até 1930 e 1950, quando o samba passou a ser caracterizado como símbolo nacional, dificilmente um grupo de mulheres estaria cantando pela capital. A elite branca, fortemente machista, excluía as mulheres das instituições, pois promoviam a aceitação dos sambistas, conforme os estudos da especialista de Gestão de Projetos Culturais Christiane Gottardi.

Como um dos reflexos desse período, o preconceito segue impedindo a repercussão de vozes femininas na atualidade, seja no samba, no esporte ou em qualquer outra área que coloque as mulheres de forma igualitária aos homens. Conectadas despretensiosamente por uma roda de samba, realizada pelas gurias do futsal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ainda em 2014, as vozes do “Samba Delas” ecoam por diferentes ambientes de Porto Alegre.

“As mulheres na nossa sociedade possuem triplas jornadas de trabalho, mas, no samba, isso também se aplica para homens, porque é algo que tu faz no momento de lazer. Porém, para nós, mulheres, que temos de cuidar da casa, dos filhos e de um outro emprego isso acaba ficando muito mais difícil”, lamenta a musicista Eliana.

Para acontecer o primeiro encontro do “Samba Delas”, após as aulas de educação física da UFRGS, foram necessários 39 anos desde a revogação do decreto n° 3.199/1941 que proibia a inserção de mulheres no esporte. Sem formação específica na área da música, a primeira vocalista do grupo, conhecia apenas as letras, o que foi o suficiente para atrair outras mulheres ao seu lado.

“Ainda em 2014, apareceram as primeiras oportunidades para fazer show nas festas dos estudantes da universidade. A ideia era tocar duas vezes por semana, pois todas elas tinham outras profissões”, lembra Eliana. Justamente devido a diversidade de profissões e a necessidade de priorizar outras atividades remuneradas, o grupo tornou-se dinâmico, permitindo o processo de seleção de novas musicistas.

O novo formato também possibilitou que a atividade lazer fosse vista e aceita como trabalho. “Na primeira formação, eram quatro meninas brancas. E, uma coisa que me orgulho muito é que, hoje, todas nós somos graduadas. Isso faz com que, pelo menos, as pessoas vejam que somos boas no que fazemos e nos respeitem”, diz Nyaunu Wi.

Sentada no sofá, encostado nos canos do banheiro do camarim, Aline acrescenta que apesar da mudança profissional e racial, a fama de que o grupo é composto por patricinhas ainda circula pelo público. “Talvez por conta do meu cabelo liso e por ela (Eliana) ser branca, mas isso muda quando as pessoas passam a nos conhecer melhor. Somos todas da periferia”.

Ainda em fase preliminar, a pesquisa Culturas de Periferia, sistematizada pela equipe do eixo de Políticas Urbanas do Observatório de Favelas, aponta que, no Rio de Janeiro, mais de 65% das mulheres que lideram rodas de samba são negras. Não é por acaso que o resultado final do estudo deve ser publicado no Dia da Cultura, em 5 de novembro, levando em consideração que historicamente manifestações artísticas fazem parte do processo de evolução e diálogo da sociedade.

Na configuração atual, Nyaunu Wi Senna de Souza foi última a ingressar no Samba Delas, há um ano

“Mulheres que amam”

“Nós somos mulheres de todas as cores, de várias idades e muitos amores. Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei. De Elza Soares, mulher fora da lei. Lembro de Marielle, valente e guerreira. De Chica da Silva, toda mulher brasileira, crescendo oprimida pelo patriarcado, meu corpo, minhas regras agora mudou o quadro”. A voz que transmite a mensagem de resistência também é do “Samba Delas”, por uma paródia composta pelo grupo “Samba que elas querem”, do Rio de Janeiro, da clássica música de Martinho da Vila, “Mulheres”.

A arte, assim como a pessoa responsável por sua produção, está conectada diretamente com a luta pela existência de maiorias minorizadas. Em um país em que 51,8% da população é composta por mulheres e 54% por negros, de acordo com dados do Instituito Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o samba evidencia esses dados por meio da batucada, da dança e das vozes propriamente ditas.

“O samba é o gênero do Brasil. Mas, infelizmente, não é o mais valorizado. A minha família é toda do samba, é toda de Carnaval, porque meu pai era músico. Nessa caminhada de formação, me encontrei no grupo faz um ano. Vejo que agora as coisas estão mudando. Meu vizinho, que era evangélico, agora escuta samba, e isso possibilita que o gênero musical cresça”, comenta Nyaunu Wi.

Se hoje, o vizinho de Nyaunu Wi curte um samba, isso não significa que a luta pela existência alcançou seu limite. Embora com certa relutância em se afirmar como ativista, o rosto, a voz, a cor e todas as características de Dona Ivone Lara, uma das primeiras mulheres a ingressar no samba, transformaram-se em um símbolo dos movimentos negro e feminista no Brasil ainda no ínicio dos anos 1980, no começo do fim da ditadura militar instalada no país, em 1964.

“Eu procuro sempre me referenciar nas mulheres que me antecedem historicamente. Sendo eu uma mulher negra e apaixonada pelo samba, preciso buscar as minhas referências. A Dona Ivone Lara é uma dessas mulheres. Percebi que ela e outras artistas como, por exemplo, Elza Soares, Alcione, Clementina de Jesus e Jovelina Pérola Negra, são mulheres que apresentam uma fala muito forte sobre quem são e quem representam”, comenta a atriz, cantora e ativista cultural Pâmela Amaro.

“Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180, vou entregar teu nome e explicar teu endereço. Aqui você não entra mais”, cantava Elza Soares em “Maria da Vila Matilde”, lançamento de 2015. Embora tenham se passado sete anos desde o lançamento, a canção transmite a mensagem que 3.774 gaúchas precisam ouvir. Apenas em agosto deste ano, esse foi o número de mulheres vítimas de ameaça, lesão corporal, estupro e tentativas de feminícidio, no Estado.

A composição é relativamente nova em comparação com todas as outras narrativas que Elza já representou. Além de coragem para resistir ao machismo, ao racismo e a outras formas de violência, o samba também permite que a mulher se identifique em outros espaços, incluindo locais de poder. Pelo menos, é assim que Pâmela canta a história de outras tantas que cruzam seu caminho. “As mulheres negras, quando vão para o samba, não têm o corpo objetificado como mulata. Elas têm esse outro discurso, que é falar que são mães, irmãs, tias, avós e mulheres que sofrem de amor, mulheres que amam, mulheres, que vivem a vida e trazem uma complexidade da humanidade de qualquer pessoa”, comenta.

Acompanhada pelo cavaquinho, Pâmela, também natural de Porto Alegre, traz consigo o álbum “Samba às Avessas”. Uma forma de contar para as mulheres pretas que elas podem ser rainhas, porta-bandeiras e passistas. Assim como também podem ocupar cargos de doutoras, engenheiras, empresárias, deputadas, arquitetas, enfermeiras e donas de qualquer parada.

“Quem são as Marias, Mahins, Marielles e malês?”

A manifestação de comportamentos femininos que ainda eram vistos como restrições, já ocorria nos festejos das escolas de samba nos anos de 1960, como argumenta a doutora em história pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Assis), Ellen Karin Dainese Maziero. Anos mais tarde, com o samba-enredo da Mangueira, em 2019, o gênero musical contínua resistência em um país de desigualdades.

Para o Carnaval de 2019, a ideia da Mangueira era justamente homenagear os heróis e heroínas que não aparecem na história contada por livros didáticos nas instituições de ensino. Entre elas, a vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018, no Rio de Janeiro, onde também ocorre uma das maiores festas de carnaval. Afinal, “quem são as Marias, Mahins, Marielles e malês?”

“As escolas de samba, ao longo do tempo, sempre acompanharam as discussões sociais e toda a linha político-social que aconteceram no Brasil”, explica o editor-chefe do portal de notícias Confraria da Folia, Edy Dutra, que também é enredista. O samba-enredo, portanto, investe no desconhecimento e prova reflexões sobre o avesso de um mesmo lugar.

Como destaca Ellen, Luíza Mahin foi uma mulher negra escravizada e um dos mais relevantes nomes que lutou na revolta dos Malês, em 1835. Já Maria é uma referência a outra mulher negra escravizada, Maria Felipa de Oliveira, que também está fora dos livros tradicionais de histórias do Brasil. Dessa forma, Luíza Mahin, Maria Felipa e Marielle Franco são mulheres que fizeram história, que escancaradamente não estão em registros oficiais, mas retomam nas vozes de Pâmela Amaro, do grupo Samba Delas, do enredo da Mangueira e de todas as outras vozes necessárias.

Símbolo de combate e resistência contra todo tipo de preconceito, é assim que o Samba Delas se define Imagem: Divulgação/Samba Delas

*Matéria produzida para disciplina “Produção em Revista”, da Escola de Comunicação, Artes e Design Famecos/Pucrs

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Fabrine Bartz
Fabrine Bartz

Jornalista. Produtora da BandNews Porto Alegre e pesquisadora da interseccionalidade nos novos formatos jornalísticos