Pierre Lévy e o início do período Noolítico

Fabrine Bartz
Fabrine Bartz
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4 min readMar 3, 2021

A Idade da Pedra não é mais o sílex, mas o silício dos microprocessadores e da fibra óptica

A evolução do homo sapiens se deu a partir de pequenos avanços gerados pela população em forma de grupos. A teoria darwiniana sobre a seleção natural, por exemplo, demonstra que foi necessária a evolução de várias espécies, e não apenas de uma, para que a humanidade atingisse o grau de desenvolvimento que apresenta hoje. Desta forma, a inteligência coletiva também deve ser compreendida com a ideia de “trabalhar em comum acordo”. Esta é uma das ideias trabalhadas no livro “A Inteligência Coletiva” de Pierre Lévy (Folha de S. Paulo, 206 páginas, R$49,70, 2015).

Imagem: Arquivo Pessoal

Pierre Lévy, um dos grandes pensadores para entendermos o mundo contemporâneo, começa “A Inteligência Coletiva” questionando se as infovias e a multimídia não acabarão sendo apenas uma super televisão, anunciando a vitória do espetáculo e do consumo de mercadoria. Ainda na introdução, o autor argumenta que a “Inteligência Coletiva é distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real que resulta em uma mobilização efetiva das competências” (p. 26), sendo um processo de crescimento, de diferenciação e de retomada de singularidades. Diante disso, a capacidade de formar coletivos inteligentes irá se tornar uma arma decisiva dos núcleos regionais de conhecimentos específicos, o famoso termo “Savoir-faire” que Lévy tanto utiliza.

O livro é dividido em duas partes e conta com referências de Jean- Jacques Rousseau e Guy Debord, entre outros nomes importantes que também abordam o papel das máquinas na comunicação. Na primeira parte, o filósofo retoma conceitos históricos e aborda questões envolvendo o espaço antropológico, interligando com temáticas atuais do impacto das tecnologias nas relações humanas. Se antes a comunicação era de um para todos, com o advento da internet ela passou a ser de todos para todos. Com isso, criou-se o conceito de democracia sobre o espaço, através da capacidade de compartilhar ideias de forma mais simplista, ressaltando a importância do discurso plural e coletivo sobre as ações humanas. Com as redes sociais, o fenômeno da coletividade de informantes ficou ainda mais fácil de ser reconhecido. Em janeiro deste ano, o ataque de drones dos Estados Unidos ao aeroporto de Bagdá, no Iraque, matou o general Qasem Soleimani. O conflito entre Estados Unidos e Irã criou uma tensão mundial. Pelo Twitter a população brasileira ficou sabendo do ataque poucos minutos depois do acontecimento. Ou seja, enquanto a possível “Terceira Guerra Mundial”, como os internautas comentaram, estava acontecendo, havia pessoas colocando essas informações na rede, colocando a comunicação de todos para todos em prática.

Já na segunda metade do livro, Lévy volta a temática da Inteligência Coletiva para os quatro espaços do espaço do saber: a Terra, o Território, o Espaço das Mercadorias e o próprio Espaço do Saber. De acordo com ele, esse espaço não existe de fato, sendo então uma utopia, um não lugar. É nesta parte em que o autor traz um dos conceitos mais interessantes, o de Noolítico. Sabemos que a linha do tempo da humanidade é dividida em pré-história e história, no entanto, no capítulo 7, tomamos conhecimento da Idade da Pedra do Espírito. Neste período cunhado pelo autor, a pedra não é mais o sílex, mas o silício dos microprocessadores e da fibra óptica. Noolítico corresponde então a esse período em que, aos poucos, a vivência humana está rodeada por aparelhos tecnológicos e inteligência artificial, como representado na série de ficção científica Black Mirror (2011). A coexistência das quatro identidades contribui para que o pensamento, a invenção e o aprendizado coletivo ofereçam a cada indivíduo a multiplicidade de mundos, sendo possível que ele construa uma mensagem ao mesmo tempo em que é o mensageiro.

Imagem: Divulgação Black Mirror

Embora seja uma leitura complexa, com termos estrangeiros e com duplo sentido, o livro apresenta quadros que resumem o conteúdo apresentado e facilitam o processo de aprendizado. A divisão entre as duas partes da obra dá a impressão de que a primeira seção significa o antes, enquanto a segunda representa o agora e o futuro, quando, na verdade, a obra inteira trata da reinvenção da democracia por meio da tecnologia e das relações coletivas. A crítica à sociedade de consumo e ao espetáculo também está presente no texto “O que funda uma sociedade senão uma sociedade?” (p. 98). Inclusive, o autor argumenta que talvez seja necessário superar a Sociedade do Espetáculo para abordar a era pós-mídia, com as técnicas de comunicação servindo para filtrar o fluxo de conhecimentos. Para Lévy, as redes de comunicação e as memórias digitais englobarão em um curto espaço de tempo a maioria das representações e as mensagens do planeta. Ele até faz um paralelo comparativo ao mencionar que, quando a humanidade era nômade, construíram-se as pirâmides. Já com o ciberespaço (palavra de origem americana, utilizada pela primeira vez por William Gibson, em 1984), se terá o nômade urbano, o gênio informático que habita no Espaço do Saber.

Em resumo, ciberespaço é mais que uma mídia, mas um espaço de reunião de múltiplas mídias e interfaces constituído por: mensagens de qualquer ordem que giram em torno dos receptores, da escrita acompanhada da leitura e do plano semiótico desterritorializado. Desta forma, cada espaço corresponde a um tipo de identidade, com a presença de aspectos comerciais e humanitários. Pierre Lévy também é autor de “Cibercultura”, livro interligado com os conceitos empregados nesta obra.

A resenha também foi publicada no Editorial J, Laboratório Convergente de Jornalismo da PUCRS.

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Fabrine Bartz
Fabrine Bartz

Jornalista. Produtora da BandNews Porto Alegre e pesquisadora da interseccionalidade nos novos formatos jornalísticos