Ainda estamos aqui

Isis Rangel
Fagulhas da Olivia
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5 min readNov 29, 2024

Eu não esperava que um bilionário me fizesse refletir tanto sobre a vida

Encenação da foto da família Paiva (sem Rubens) na matéria da extinta Revista Manchete
A minha mãe também se recusa a sair séria em fotografias

Foi somente na terceira vez que assisti ao filme do ano (desculpe A Substância, preciso ser patriota agora), eu chorei de verdade. A primeira vez, assisti sozinha porque não aguentava mais esperar para poder me juntar ao hype nos grupos de cinema em que estou. Saí da sala reflexiva, preenchida por aquela história tão humana e tão bonita.

Da segunda vez, fui com uma amiga e me peguei com lágrimas nos olhos em partes diferentes do que da primeira vez. Principalmente no final, porque eu perdi meu avô com Alzheimer e essa doença talvez seja o maior gatilho que eu tenho na vida. Inclusive, para mim o título é tão bonito porque tem esse duplo sentido, porque fala dos que sobreviveram a ditadura, mas também dos doentes com Alzheimer que lutam até o fim para permanecerem aqui.

Na vez mais recente, eu chorei bastante (para o meu padrão atual, pois lotada de escitalopram). Eu estava segurando a mãozinha da minha mãe (que sinto que está cada vez menor) e assimilei que, se ela tivesse tido mais azar, eu poderia não ter nascido.

Como já falei por aqui em outras ocasiões, minha mãe foi militante durante a ditadura cívico-militar. Meu pai não foi tão atuante, mas tinha amigos comunistas, é claro. Então eu poderia ter perdido os dois ou somente um deles, e nesses multiversos, eu não existiria.

É uma sensação parecida com aquele dia em que eu descobri que minha mãe tirou o título de eleitor só com 27 anos. Eu cresci ouvindo as histórias dela sendo detida, panfletando, pichando muro e fugindo da polícia. Para mim, era difícil me deparar com outros adultos que nada fizeram ou pior — apoiavam o antigo regime.

Então chegamos em 2018, e minha mãe disse uma frase que me assombra até hoje

“tudo pelo que eu lutei desmoronou, filha”

Toda vez que eu penso em desistir, eu penso nessa frase e renovo a promessa secreta que eu fiz para minha mãe: eu vou honrar a sua luta, mainha.

Na sessão de terapia dessa semana, eu disse para minha psicóloga: é difícil eu não reclamar do mercado de trabalho, eu sou militante demais para isso. E isso saiu com muita tranquilidade da minha boca. Por não ter uma carreira estabelecida aos 31 anos, eu me vejo às voltas com o que vou fazer para ganhar dinheiro sem me adoecer muito. Às vezes, eu penso que eu deveria me conformar mais com receber pedido de urgência para um post do Instagram, porque assim minha vida seria mais fácil.

Mas então eu não seria eu. Não seria filha da minha mãe. Eu não quero abrir mão disso.

Então penso que eu estou velha demais para isso, ao mesmo tempo, eu me sinto tão confortável numa roda de conversa ou gritando “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar” que tenho percebido que já é hora de eu aceitar que não é uma fase. Vou ser assim para sempre. Como disse minha comadre outro dia: você nasceu para isso, amiga.

Adesivo grudado em uma porta de vidro com os dizeres: Diretas são inegociáveis (Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo).
Atualmente eu moro no apartamento da minha avó paterna e no antigo quarto do meu pai tem essa relíquia na porta da varanda

Se nasci ou não, eu não sei. Mas sei que hoje, sentada com meus pais numa sala escura assistindo a um filme tão importante, eu renovei aquela velha promessa. E é isso que me permite gritar FILME DO ANO enquanto questiono quantos mais filmes sobre a ditadura sob a perspectiva da classe média a gente vai precisar produzir para que um sob a visão da periferia ou dos indígenas aconteça.

É o mesmo sentimento de que tive logo no começo do filme, ao ver Veroca tomando um enquadro. Era para ser assustador (e é), mas poxa, eu já ouvi e vivi tantas vezes isso ao lado dos meus amigos negros que putz, sério? Não é como se isso tivesse acabado. Ao menos não para a maioria da população brasileira (que é não branca, caso você não saiba).

Até mandei mensagem para o meu companheiro dizendo “putz mor, comecei o filme achando ‘que bobagem branca’ e terminei em lágrimas”. Porque Ainda Estou Aqui fala, acima de tudo, de pessoas. E acho que todo mundo consegue se identificar em um ou dois momentos. Mas ter um bilionário, cuja família enriqueceu horrores durante o regime militar, por trás tira um pouco do brilho, isso é fato.

A família Paiva, sorridente, está reunida na sorveteria em cena do filme Ainda Estou Aqui
Quem não queria ter essa vidinha que eles tinham é maluco

São contradições inerentes ao nosso modo de vida. Apesar de rir muito com os memes de dar dinheiro pro Itaú, eu sei que muitos profissionais estiveram envolvidos na produção de um filme de tal magnitude e eles merecem nosso reconhecimento também.

Inclusive, preciso falar aqui sobre a atuação da empregada da casa dos Paiva, a Zezé. Pri Helena deu muito o nome e demorei dias para perceber que é a mesma atriz que está na novela das 19h. Os olhares, os trejeitos da Zezé entregam muito sem ela precisar dizer nada. Trabalho incrível. Tão incrível quanto das crianças. Como vi outro dia, “a gente termina o filme querendo ter cinco filhos” no que adicionaram: “de preferência com o Selton Mello”. E eu prestes a me laquear, tive que concordar.

Fico feliz que a vida de Eunice Paiva tenha ganhado um filme tão bonito e que os gringos estejam também dando atenção ao nosso cinema. A força dela e a insistência em ser feliz lembra demais a minha própria mãe. Uma mulher negra, militante aguerrida, que sofreu horrores (não só pela ditadura), mas que tá sempre com um sorriso no rosto.

Minha mãe carrega uma leveza que só quem é uma força da natureza carrega, assim como Eunice. E mulheres assim merecem muito ser celebradas.

Mamãe, eu e o braço da minha avó materna lavando louça

Então se ainda não ficou claro: apoie o cinema nacional e assista Ainda Estou Aqui no cinema mais perto da sua casa. Vale o ingresso.

Voltamos a qualquer momento com mais reflexões, pitacos & gritaria.

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