Bolão: Ana Francisca seria contra a greve dos entregadores de app?

Isis Rangel
Fagulhas da Olivia
Published in
6 min readAug 17, 2020

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Entregador no processo antifascista do dia 01/06/2020 na Paulista (Foto: Nelson Almeida/AFP)

Uma das minhas ocupações da quarentena é fazer maratonas de Chocolate com Pimenta. Para quem não sabe, Chocolate com Pimenta é um dos maiores sucessos das 18h da Globo, exibida originalmente entre 2003 e 2004 e agora tá em reprise no canal VIVA.

Para quem não sabe a história, segue o resumo do enredo retirado do site Memória Globo (se você sabe da história, pula para o próximo parágrafo)

A comédia romântica é ambientada na década de 1920 na fictícia Ventura, uma pequena cidade cuja economia gira em torno da fábrica de chocolates e bolos artesanais Bombom, de Ludovico (Ary Fontoura). A protagonista, Ana Francisca (Mariana Ximenes), é uma menina humilde, ingênua e romântica que, após perder o pai, vai morar em Ventura com uma parte da família que não conhece. Mesmo sendo uma espécie de “patinho feio”, a caipira chama a atenção de Danilo (Murilo Benício), o rapaz mais bonito do colégio e a grande paixão da mimada Olga (Priscila Fantin), filha do delegado da cidade. Apesar das artimanhas de Olga para impedir o romance dos dois, Ana e Danilo começam a namorar. Para ajudar a família nas despesas da casa, Ana vai trabalhar como faxineira na fábrica de chocolates e conhece Ludovico. Ela descobre que está grávida de Danilo. Mas uma armação de Olga e da tia dele, Bárbara (Lilia Cabral), provoca a separação do casal. Ao ver o desespero e o sofrimento da amiga, Ludovico propõe casamento a ela, para dar um nome à criança.

Aí logo que a Aninha fica ryca, sua prima Márcia “sou chique bem” cresce o olho para a fortuna da prima já que uma de suas ambições sempre foi ter muito dinheiro. Mas o pai de Márcia, seu Margarido, logo corta o barato da filha num dos discursos mais inflamados a favor da meritocracia que eu já vi numa novela (ou que eu já prestei atenção, né). Entre outras abobrinhas, ele fala que tem muito orgulho de ter conquistado tudo que ele tem (um sítio caindo aos pedaços, deus que me perdoe) com o suor do trabalho dele e que não precisa de dinheiro nenhum da sobrinha (mesmo a mulher querendo dar uma vida mais confortável para sua família).

Será que essa bela viuvinha seria a favor da greve dos entregadores se eles trabalhassem pra fábrica de chocolates Bombom? (eu morro com esse nome)

Mas aí meu raio problematizador apitou. Tipo assim, o Margarido é o cozinheiro da fábrica (o único, pelo que dá a entender), logo o trabalho braçal dele é responsável direto pelos lucros da fábrica e consequentemente pela fortuna da Ana Francisca. OU SEJA, o suor do trabalho dele tá é pagando os vestidos lu$ho que a Aninha usa pra ficar desfilando pela cidade chorando pelo Danilo isso sim.

“Mas meu deus o que isso tem a ver com a greve dos entregadores de app?” — você deve estar me perguntando.

Bom, só quis exemplificar como o discurso maléfico da meritocracia tá presente na nossa cultura de massa e contaminando as mentes de milhares de trabalhadores precarizados que são convencidos que trabalhar 12h por dia entregando comida pra classe média é ser empreendedor.

A greve dos entregadores de aplicativos é uma das coisas mais importantes que aconteceram nos últimos anos nesse país. Enquanto eu trabalhava na Agência Cative!, a gente conversava muito sobre o empreendedorismo por necessidade e o quanto ele tá distante do discurso glamouroso do Vamos Acelerar o Empreendedorismo (VAE! Que o seu sonho pode acontecer!™).

As pautas da greve do dia 01/07 (Imagem: Comunica Infográficos)

Vender bolo de pote porque tá procurando emprego há mais de um ano sem sucesso está muito longe de empreender com planejamento e capital de giro etc. etc.

Virar camelô está anos luz de ter começado a trabalhar na empresa do papai e depois de um tempo alçar voo solo.

Ser entregador de aplicativos nunca vai te dar a fortuna do Velho da Havan™.

Mas os ricos querem que a gente acredite nisso.

(se você ganha salário de 20 mil reais, você não é rico, você é tão assalariado quanto a faxineira do shopping que você não esvazia a bandeja “porque tem gente que é paga para isso”)

A Ana Francisca, o velho da Havan, o Jeff Bezos (em vias de se tornar o primeiro trilionário da história), Bill Gates, o dono do Itaú. Esses são os ricos. E eles que promovem e incentivam produções como Chocolate com Pimenta, que reverenciam a meritocracia e fazem acreditar que nós, os trabalhadores, não temos um iate porque falta empenho de nossa parte.

É esse discurso que normaliza uma pessoa precisar pedalar por 40km todos os dias, embaixo de sol e chuva, no meio de uma pandemia sem EPIs, para ganhar em média 963 reais por mês. E ainda diz que essa pessoa é empreendedora, chefe de si mesma porque não deve nada a ninguém e ninguém deve nada a ela.

É isso que as empresas dos apps querem que a gente acredite. Mas não é verdade.

A alegação das empresas é que o produto que elas vendem é a tecnologia e não a comida e por isso não devem vínculo empregatício ou qualquer outra obrigação trabalhista com os milhares de entregadores cadastrados.

Mas se o entregador não levar a comida pro consumidor, o iFood & cia teriam lucro de bilhões ao ano? Não.

O que me anima na greve dos entregadores é ver uma das parcelas mais precarizadas e prejudicas da população correndo atrás dos seus direitos. É ver como um movimento com uma pauta clara conseguiu ganhar o mundo em um mês. É ver a força dos trabalhadores por mudanças.

Som na caixa DJ Billy!

Hoje, dia 01/07, a partir das 09h da manhã, entregadores de diversas cidades do Brasil — e do mundo! — vão paralisar. E você, consumidor, pode ajudar não aproveitando os descontos que certamente as empresas vão dar.

É só um dia, sua mãozinha não vai cair se cozinhar, ok?

A uberização do trabalho é um dos temas mais urgentes que temos em meio a tantas urgências do mundo que aí está. Não é um tema fácil. Eu não sou cliente de apps de entrega, mas eu dependo demais do Uber morando numa cidade com transporte público pífio e táxis com taxas exorbitantes, por exemplo. Mas a gente tem que discutir e se unir a esses trabalhadores para que essas empresas milionárias deem melhores condições de trabalho para eles.

“A expectativa da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) é de que o setor de aplicativos delivery feche 2018 com um faturamento de R$ 12 bilhões” (Fonte: Isto É Dinheiro)

Não vai ser fácil, mas nunca foi, né mesmo? A pandemia jogou mais forte na nossa cara todos os problemas que nosso queridíssimo (cof cof) capitalismo nos proporciona e como eu já disse por aqui, toda crise é encruzilhada e tá na hora da gente aproveitar que a merda foi jogada no ventilador e decidir qual o mundo que queremos.

Contamos com você. Chega lá na loja de aplicativos do seu celular e dá uma estrelinha e um xingo pro iFood, Uber, Rappi e afins vai?

Acompanhe a movimentação pelo insta Treta no Trampo e pelas hashtags #BrequeDosApps #ApoioBrequeDosAPPs

Volto a qualquer momento com mais reflexões & pitacos em tempos de pandemia.

Esse texto foi publicado originalmente em 01/07/2020 no meu perfil pessoal no Projeto Corongavairus, a série que deu origem ao Fagulhas do Olivia.

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