Efeito Madonna

Isis Rangel
Fagulhas da Olivia
Published in
6 min readApr 30, 2024

--

Um texto para minha madrinha, pra tia Adriana e para todos que perderam alguém importante

Imagem da cantora Madonna cantando sentada em um trono
A rainha do Pop (Foto: GettyImages)

Hoje é aniversário da minha madrinha. Eu quase nunca a chamava assim em vida porque ela também era minha tia e acho que aprendi pela repetição: minha irmã mais velha a chamava de tia Meire, então eu também a chamava assim. Ela começou a pedir pra eu chamá-la de madrinha quando eu já tinha uns 17 anos e aí era meio tarde pra mudar tal costume.

Em 2013, no meu segundo dia de férias depois do meu primeiro ano com greve na Unesp, com os protestos de 2013, com meu coração partido e tantos outros infortúnios, minha mãe recebeu um telefonema da minha outra tia — a Gorete — contando que, aparentemente, a Meire tinha morrido.

Ela falou mesmo o aparentemente, porque não tinha certeza. E mesmo sem ter certeza, o pânico se instalou nos talvez 20 minutos que nos separavam de colocarmos uma roupa desesperadas para correr até a casa da minha madrinha. Eu não lembrava a última coisa que ela tinha me falado. No carro, eu lembrei. Me forço a manter viva essa memória.

O mesmo sentimento me tomou na manhã do dia 13 de março de 2019. Foi quando, após mais uma noite mal dormida, eu acordei brevemente lá pelas 6h e decidi dar uma olhada no celular. Tinha uma mensagem da minha melhor amiga “infelizmente venho comunicar que minha mãe faleceu”.

Eu li aquilo ainda no pop-up e pensei que teria uma continuação para explicar que piada de mau gosto era aquela. Não era piada, claro. A Marina é tonta, mas não nesse nível.

Naquela altura eu já tinha perdido meu avô, minha madrinha e minhas duas avós. Cada morte leva um pouco da gente, bate diferente. Mas a da minha madrinha e a da tia Adriana foram parecidas porque foram de repente.

Meus três avós já estavam doentes há muitos meses quando se foram. Tenho pra mim que foi melhor eles terem partido do que continuar agonizando.

Ainda teve a morte da tia Gorete em 2022. Mas essa parece que eu já tinha me acostumado com esse lance do de repente e talvez doeu menos em mim. Também porque a gente nunca foi extremamente próximas. Doeu mais ver o desespero dos meus primos. Talvez por isso eu fui lá e passei batom na boca dela no caixão pra Julia poder tatuar o beijo dela depois.

Mas tergiverso. A questão aqui é que o avô de uma amiga querida partiu na semana passada. E toda vez que alguém morre, eu lembro dos meus mortos. Não sei se todo mundo é assim. Apesar de lembrar deles em várias ocasiões, hoje eu acabei esquecendo que era 29 de abril.

Amanhã faz nove anos que apresentei meu TCC da graduação. Dediquei o livro para minha madrinha e por isso, fiz questão de apresentar o mais próximo possível do aniversário dela. Minha banca foi um evento. Lotei a sala do DCSO, levei guaraná e salgadinho. Roubaram meu livro. Minha madrinha teria adorado aquela bagunça.

Minha tia Adriana também. O nome da Marina era para ser Marina Louise por causa da Madonna Louise. Tia Adriana conversava sobre Madonna, sobre Legião Urbana, Capital Inicial e Friends. Ela foi o mais próximo que cheguei de uma Lorelai Gilmore de verdade.

Ela fechava bar para comemorar seu aniversário. Em setembro, meu mês favorito desde sempre. Depois que virei adulta e passei a enfrentar o monstro da depressão, percebi que a tia Adriana também lutava a mesma batalha.

Toda vez que minha depressão me impede de comer, eu lembro que ela fez o mesmo com a tia Adriana. Então eu como. Prometi para ela que cuidaria da Marina. Então eu preciso ficar por aqui mesmo quando não tenho vontade.

Prometi para minha madrinha que cuidaria das meninas também. Naquela longa noite de dezembro, levei as gêmeas pra casa e fiz cafuné na Julia até ela dormir. A Gabi acordou no meio da noite dizendo que teve um pesadelo horrível “sonhei que minha mãe morreu”. Falei que tinha sido só um sonho e ela dormiu de novo.

Levantei, passei um café pro meu pai e estendi a roupa que minha mãe largou na máquina logo cedo quando recebeu o telefonema. Chorei ali. Com medo de tudo. As gêmeas eram só crianças. Nós todos éramos muito novos. Inclusive minha madrinha. Ela só tinha 50 anos.

Quando cheguei no velório da tia Adriana, cinco anos e três meses depois do da tia Meire, já estava preparada para a batalha. Com casaco, dinheiro e disposição para ser o ombro que qualquer um ali precisasse. Lá pelas 4h deitei a Marina no meu colo e fiz cafuné nela tentando fazer ela dormir — sem muito sucesso, claro.

Quando Madonna anunciou o show no Rio, me deu uma vontade muito louca de ir. Eu, que odeio show porque odeio aglomeração. Passo mal mesmo. Fui em um único bloco de carnaval na vida e fiquei tonta muito antes da primeira cerveja.

Pensei: se eu tivesse um amigo próximo morando no Rio, eu ia meter esse louco. A passagem não é tão cara parcelada no cartão que eu nem tenho, mas minha mãe tem. Pensei que era por ser o evento da década. Cheio de LGBT e outros considerados degenerados pela direita conversadora desse país. O meu tipo de gente. Mas então hoje, é aniversário da minha tia. E me lembrei.

Lembrei de alguma versão minha mais jovem sentada na sala da Marina — talvez a sala que eu mais sentei na vida, além das salas das casas em que já morei — e da tia Adriana bebendo, fumando e falando sobre sua adolescência idolatrando Madonna. Lembro da voz e da risada dela

Lembro também do cheiro da minha madrinha. Lembro que nunca mais assisti Meu Nome não é Johnny porque a última vez foi ao lado dela. Lembro da última coisa que ela me falou:

— Vai voltar quando pra cá?
— Agora só no natal, tia. Quer dizer, madrinha.
— Então boa viagem, filha.

Não sei se minha madrinha gostava da Madonna, porque sei que o negócio dela era Roberto Carlos — a gente enterrou ela segurando um CD dele, inclusive. Mas que ela adoraria a balbúrdia, com certeza. Minha madrinha só não gostava de comemorar o próprio aniversário. Por isso a gente tinha que ter achado mais estranho ela comemorar os 50. Não que isso fosse evitar o infarto, mas quem sabe.

Eventualmente, quando eu faço um brinde, eu lembro das minhas tias. Todas as três. Elas gostavam muito de cerveja. Por isso fui a favor da gente comprar aquelas brahminhas no posto BR e brindar no meio do velório da tia Adriana. Aprendi com Renascer que isso se chama “beber o morto”. Deveríamos ter feito isso na minha família de sangue também.

(que fique registrado que quero que me bebam também)

A Madonna com certeza aprovaria.

Sábado vou assistir ao show pela Globo mesmo, mas com a Marina. E sei que, de alguma forma, com a tia Adriana também.

Voltamos a qualquer momento com mais reflexões, pitacos & gritaria.

E aí, curtiu o texto? Quer mais conteúdos desse tipo? A partir de R$ 5,00 mensais você contribui com o crescimento do Fagulhas da Olivia! É só assinar nossa campanha no Catarse para garantir mais textos e outras recompensas.

Para apoios pontuais, faça um pix de qualquer valor para fagulhasdaolivia@gmail.com — qualquer quantia ajuda :)

Você também pode contribuir dando 50 palmas pra esse conteúdo. Isso ajuda o algoritmo do Medium encontrar meu texto e recomendá-lo para mais pessoas.

Ah! E todas a imagens desse texto possuem descrição na ferramenta ALT Text.

Perdeu os últimos textos do Fagulhas da Olivia? Clica aqui e aqui aprecie sem moderação.

--

--