Fim da Pista Dupla

Leopoldo Jereissati
Fala Man
Published in
9 min readAug 3, 2018

Uma viagem por dentro

Há 5 anos venho pensando em fazer essa viagem, apenas eu e meu pai juntos. Tenho 32 anos e desde os meus 16 nos tornamos grandes amigos, acima de tudo.

O destino é a Fazenda Sta. Maria, em Ipezal — MS. São 620km de Mirassol— SP, passei minha infância toda nesse lugar, não consigo lembrar da minha história sem esse contato com o Mato, com os bichos, com a Cida e com a natureza para a formação do meu caráter, e do que hoje me tornei.

A ideia era fazer uma viagem sem roteiro. Fui apenas uma vez para lá nos últimos 14 anos e apesar das novas estradas e entroncamentos, o caminho era o mesmo e os personagens também. Era quarta-feira dia 31/08, tínhamos apenas a “Festa do Laço Comprido” para ir no final de semana, portanto o tempo era nosso parceiro, ele não passava rápido.

Como a viagem era longa, minha avó Thereza costumava fazer sanduíches de pão de forma sem casca, frios e queijo para saciarmos a fome no caminho. Na época não haviam postos a cada 50km na estrada. Minha avó se foi em 2008, mas quase como se ela quisesse participar dessa viagem conosco, pela manhã estavam na mesa todos ingredientes necessários para os lanches: a mortadela trazida pelo meu dindo Ivan no dia anterior, e minha “mamma” Elvira elucidando a ideia: “Por que não fazem sanduíches como a sua avó montava para vocês no caminho?”

Logo que pegamos estrada, em José Bonifácio, meu pai solta: — “Se o cara da Kombi de Laranja estiver naquele lugar, vamos ter que parar para comprar um saco!”; e lá ele estava, a Kombi era “nova”, ele mais velho, a laranja a mesma e lá se foi a primeira prosa. Não sabemos o nome dele, nem se ele realmente lembra de nós — já que passamos a infância comprando laranja ali. Compramos 2 sacos, meu pai vira pra mim como um Mestre e fala com propriedade de quem vive há 67 anos: “Isso que é gostoso na vida filho!”

Cada quilômetro rodado vinham novas memórias:

  • Aqui o Opala quebrou em 1991, estávamos com o carro lotado, tivemos que dormir em um hotel na estrada.
  • Seu Avô adorava comer o “Pastel das Italianas” em um posto de Oswaldo Cruz-SP;
  • Sua Avó gostava de parar aqui em Prudente -SP para comprar plantas.
  • Aqui nesse Rio, jogamos uma frigideira novinha e um garfo, fritamos um ovo e enrolamos em um lenço em uma Simpatia para sua alergia ir embora nas águas (super ecológica a iniciativa).
  • E assim ia…

Foi gostoso ver como a estrada é nosso habitat natural (pai e filho) e como o que mais gostamos na vida vem a tona nessas rodagens. Meu pai citou todos seus melhores amigos, sem exceção e uma história bacana com cada um deles, Tio Silvio, Tio Biba, Tio Luiz, Tio Zé Lois, Tio Chim, Tio Lito, Tio Eloy, Tio Quico e Tio Zé Oswaldo e o Tio Beto, claro. Também falou de um amigo novo; o cara da Rádio CBN de Rio Preto — ele nunca parou de fazer novos amigos… Existe um grande vínculo entre ele e todos esses caras; é nítido que os problemas deles são também do meu pai. Ele sofre junto com eles e comemora por eles. Ele fala com muito carinho dos filhos deles, parte são inclusive seus enteados. Esse é o meu pai, um homem rico de amigos, de histórias e de vida simples.

Nós paramos o carro em quase toda oportunidade que tínhamos. Era aquela parada de curtir a jornada da vida e não o destino final, literalmente. No Sucão do Japonês em Prudente, tomamos o tradicional Mamão com Laranja. Perguntei para a moça do balcão, que tinha um rosto familiar, há quanto tempo ela trabalhava lá: — Eu há 14 anos, o “Suqueiro” há 32. Minha idade. Conclui que nunca tinha tomado um suco dali que não fosse das mãos dele. Pedi para chamá-lo. Lá se foi nossa segunda prosa; e eu descobri o segredo do suco dele!

Quanto mais distante ficávamos de São Paulo, mais próximos ficávamos de nós mesmos. Essa experiência eu recomendo para todos. Hoje em dia está muito difícil conseguir isso; se tiver a chance, abrace. Faz muito bem para a saúde. Faz muito bem para você.

Chegando em Ipezal notei de cara uma mudança: as casinhas de madeira que acompanhavam a avenida principal agora eram de concreto, sobrados muitas vezes. As ruas internas estavam asfaltadas. A paisagem que era dominada por matas e palmeiras nativas, pastagem e gado hoje viraram cana de açúcar. É impressionante acompanhar de perto os efeitos da mudança, da influência econômica de uma região. A chegada da Usina, há pelo menos 15 anos, deu a chance aos fazendeiros de se libertarem, por quê não — de descansarem. Não era mais necessário se preocupar com a mão-de-obra difícil, a interminável manutenção das cercas, cochos, caixas d’água, açudes, “córgos”, pontes, Incra, Laça, Marca, Capa, Vacinas, Rações, a Tropa, a difícil decisão do embarque — o relacionamento com os frigoríficos. Os pastos. Tudo virou Cana. Um contrato com a Usina. Proprietários satisfeitos certamente, será que felizes?

As memórias que tenho daqui são cheias de vida, mas a vida quem trazia à fazenda era a pecuária. A atividade precisava de gente, que então povoava a Colônia (casas onde os funcionários ficavam), que então eram cheias de filhos e filhas dessa gente, de todas as idades, que enchiam de alegria esse lugar. A carroça era usada para salgar os cochos, atividade dos mais novos. A tropa era selada para manejar o gado e todo dia pela manhã bem cedo saíam pasto a dentro, ora para “fazer a lida” — curar ali no próprio pasto algum umbigo de bezerro novo com um remédio roxo — ora para trazer o gado para o curral.

Lá pelas 9h ou 10h da manhã, ouvíamos quando mais novos, um pisoteado forte, vindo de longe. Um poeirão subindo, uns gritos de “Aaoooo”, “Vaaaaéééca”, mugidos graves dos touros, o estralar do laço, era o gado subindo em centenas para o curral. Na frente da sede fazíamos silêncio com a Vó, para a boiada não estourar. Quem trazia o gado eram os mais velhos, nossos heróis os primos, pais e tios além dos peões, é claro. Já mais velhos, com 10 anos para frente, chegara nossa vez de estar no meio deles, uma sensação inigualável. Uma adrenalina…

No pasto cada um tinha um papel; quando na frente da boiada, eu abria o caminho e quando olhava para traz, via aquela massa de força vindo toda na minha direção… forçava o trote do cavalo para não atrasar o passo. Já com mais confiança no cavalo e no grupo, quando ao lado da boiada, todos ficavam atentos para o gado não estourar. Eu fazia direitinho meu papel, mas no fundo torcia para uns dois ou três escaparem. Era nossa chance de galopar pelo pasto acidentado com um propósito, de sair do caminho traçado, de criar, inovar e duelar com os animais para trazê-los de volta. Era um jogo de estratégia, não de violência, e que perdia muitas vezes para as novilhas desgarradas.

No curral o padrão continuava. Cada peão tinha um papel. Os mais novos tocavam a boiada de um lado para o outro. Os mais experientes analisavam cada animal que passava pelo corredor, vacinavam, marcavam, castravam, e liberavam para o apartador — o lugar em que eu mais gostava de ficar. O capataz cantava “Cabeceira”, “É Vaca”, “É Bezerro”, e eu abria um dos portões pré-determinados e o gado ia entrando.

Ali eu tive a chance de conhecer o indivíduo, destacado do grupo. Assim como nós, eles reagiam de forma diferente quando em um papo olho no olho, e no meio de um grupo. Cada um se comportava de um jeito: uns passavam com tudo, sem questionar; outros pareciam me olhar nos olhos, desconfiados; Os mais experientes passavam sem qualquer pressa. Os mais jovens corriam tanto que não dava tempo de eu abrir o portão e virava um rolo ali dentro do curral, davam umas cinco voltas no próprio rabo antes de encontrar o caminho aberto.

A rotina era mais ou menos assim: 4:30h da manhã tiravam leite das Vacas Leiteiras — as que tinham nome. 5:00h fechavam a tropa no Barracão para escolher os cavalos do dia. Cada peão tinha seus cavalos preferidos em meio a tantas opções.

6:00h já saíamos para o pasto. Duas horas a cavalo e sempre parávamos em uma mina d’água diferente para lavar o rosto, tomar uma água fresquinha e continuar rumo à sede novamente, com ou sem gado. Quando menos esperava o Pai perguntava: — Onde está a Sede? Naquela imensidão, era difícil acertar; mas era necessário. Fui ficando bom nisso; hoje tem o GPS.

Meditávamos sem saber. O almoço saía as 10:30h ou 11h. A fome era imensa. Depois do almoço mais uma função no pasto. 15h e já era. Os adultos saíam para a cidade, nós saíamos para pescar/nadar nos açudes, mais tarde fechávamos os carneiros na Casinha para evitar os predadores locais. Subíamos nos pés de manga para chupar laranjas (vai entender), banho no chuveirão, arroz-feijão e Bife da Cida, jogávamos um baralhinho, os mais velhos tomavam um “purinho”, a noite caia - céu super estrelado. Começava tudo de novo no outro dia.

A fazenda continua linda, um lugar bucólico. “O Fim da Pista Dupla” retrata bem o sentimento de agora. As coisas mudam. A vida tem seus ciclos, com trinta e poucos é a primeira vez que olho para trás e reconheço isso.

Fica o desafio de encontrar uma forma de proporcionar toda essa alegria para a criançada que está nascendo agora. Tirar do celular/tablet já não é mais uma opção. Como integrar o real com o virtual deve ganhar força. A sede está cheia de pássaros, como nunca. As árvores viraram um reduto para eles. De baitacas a canarinhos da terra, sabiás, quitas, rolinhas e as sonoras galinhas d’angola. A Cida continua aqui, firme mas só. Todos seus filhos e netos vivem na cidade grande e tem épocas do ano que a cana e as máquinas da colheita são sua única companhia.

Se a vida tem seus ciclos, o que nos resta é aproveitar ao máximo cada um deles. É o que estou fazendo agora com meu pai. Duas crianças. Comendo bem, dormindo bem, tomando umas e dando boas risadas juntos. Nada como um pequeno susto para darmos valor às pequenas coisas na vida.

Com carinho, para a minha família Gottardi. Tutti buona gente!

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